Enquanto você dormia — capítulo único

A respiração de Yugi parecia estar mais leve e calma do que na noite anterior, quando teve um pesadelo enquanto dormia, ele parecia relaxado mesmo com o corpo encolhido na cama de solteiro. Dormindo tranquilamente enquanto era observado de perto pelo espectro de seu pseudo clone, que sentado a frente da escrivaninha, dividia sua atenção entre o jovem duelista e o céu estrelado da janela, esperando que algum destes lhe desse as respostas que buscava.

Se é que ele buscava por algo...

Sua mão transparecia as estrelas e o sentimento de inconsistência, de não pertencimento, se apossava dele de forma tal como as perguntas que voltavam quando todo o resto ao seu redor se aquietava e consequentemente, ao redor de Yugi, aquele que resolvera e portava o enigma no qual ele estivera preso por milênios como se fosse um acessório exótico demais para que os outros ao seu redor se importassem com a procedência da pirâmide que carregava no pescoço.

E era em noites como essa que ele imaginava como seria não ter tomado consciência de que o corpo de Yugi não era o seu, de que quando se apossava dele na realidade estava subjugando aquela consciência a sua própria e que bem algum poderia estar fazendo ao garoto com seus jogos mentais, diante de figuras que tentavam subjugá-lo a bel prazer por causa sua da baixa estatura.

O que dividiam desde então era tão dual que por vezes ele falhava em discernir o que era ele e o que era Yugi - provavelmente aqueles que conviviam ao redor deles conseguiam dizer com mais facilidade quando um dava lugar ao outro - mesmo quando apenas observava de longe a vida do garoto, de dentro do enigma, separar emoções e sentimentos conseguia ser cruel o suficiente e não seria difícil dele se ver incomodado diante de algo dito propriamente para Yugi.

Era em noites como aquela que ele imaginava o motivo por detrás do laço que ambos dividiam graças ao enigma, se entretendo com o pensamento de que aquilo que o trouxera até o garoto não passava de uma série de eventos pontuados. Eventos estes que precisavam ser seguidos intrinsecamente para que assim e somente assim, o grande evento enfim pudesse acontecer e observar as estrelas naquela noite especialmente o sugeria algo predestinado. Tal como um seleto conjunto de estrelas sendo ligadas pelos dedos daqueles que as observavam para assim constelações serem nomeadas, tal como aqueles que as usaram em um passado longínquo como guia para chegar ao seu destino.

Seria Yugi Muto o seu guia afinal?

E se fosse, em que direção ele o levaria então?

Se dependesse dos labirintos em seu coração talvez levasse mais tempo para que ele, em sua branda memória que se erguia com base nas memórias de Yugi, enfim encontrasse suas respostas se é que estas viriam tão facilmente como ele esperava que viriam e como se sentisse a atenção que recebia, o corpo do jovem duelista se virara em sua direção, enrolando-se ainda mais no edredom. A expressão tranquila sugeria que ao menos ele parecia estar tendo um sono tranquilo.

Fora assim que sua atenção divergira dele para a escrivaninha, que estava mais desarrumada que o de costume, tendo apostilas e jogos sortidos se misturando facilmente entre si quando era comum destes estarem seletamente organizados - um detalhe enfadonho vindo de Yugi e seu entusiasmo por jogos - e somente quando seus olhos repousaram sobre um dos cadernos de anotação dele, ocasionalmente aberto com um lápis e canetas coloridas sobre, tendo algumas palavras rabiscadas e outras grifadas que ele pareceu enfim entender o motivo por trás de tamanha bagunça. Pensando que o caos poderia ser a melhor fonte de criatividade para uma de suas tarefas de escola, ele provavelmente fizera aquilo e cansado demais para arrumar tudo decidira apenas por dormir, talvez ele pudesse fazer tal tarefa pelo garoto, não seria problema deixar que sua consciência dormisse enquanto ele tomasse posse do corpo para algo tão corriqueiro, francamente ele já o fizera em situações mais adversas logo não seria difícil de fazê-lo novamente, isso caso naquele momento ele não estivesse entretido demais tentando distinguir o que falhava em conseguir ler dada a caligrafia preguiçosa do garoto.

O pouco que entendera o fizera questionar mais uma vez como eles conseguiam estar um na mente do outro com tamanha facilidade.

"Enquanto você dormia tanto aconteceu. O tempo virou e choveu por uma semana inteira de outono. As estrelas desalinharam mais uma vez e quando o céu abriu um arco-íris cortou o caminho de volta para casa e no fim dele estava um sarcófago onde você se escondia.

Enquanto você dormia eu juntava as peças de seu enigma imaginando se assim conseguiria um amigo, quem sabe alguém com quem conversar.

Enquanto você dormia eu sonhei com um deserto e no fim dele era onde você estava."

Se sentindo impressionado demais para esboçar qualquer pensamento que fosse seus dedos passaram sobre as canetas coloridas, notando as letras grifadas enquanto relia o poema com uma sensação nova preenchendo o que deveria ser seu peito para então perceber os números agrupados abaixo do texto, cada qual com uma cor diferente e em questão de segundos ele entendera o real motivo dos jogos estarem espalhados sobre a escrivaninha, pois nem mesmo em uma produção de texto Yugi Muto deixaria de expressar seu entusiasmo por jogos. Uma mensagem criptografada. Ele colocara uma mensagem no poema e pelo jeito, uma que apenas ele entenderia.

Ele e o espírito que habitava o enigma em forma de pirâmide que carregava no pescoço como se fosse um simples acessório exótico, grande demais para um garoto tão pequeno.

Com o que seria o seu coração elevado ele fora em direção a cama, se sentando no espaço livre do colchão e observando mais uma vez o garoto dormir, mas dessa vez sem o cenho franzido e com um meio sorriso colorindo sua expressão taciturna, tal como as canetas que grifavam a mensagem secreta.

O nome pelo o qual Yugi o chamava.

"Outro eu".