Não seria mais possível adiar aquele momento, então resolvi que se era para compartilhar aquela noticia com a família que fosse breve e o mais indolor possível. Muitos acreditam que com o tempo nos tornamos imunes à dor do outro, mas isso é um ledo engano... Preciso de toda a concentração possível para me proteger de sangrar ao ver os parentes de meus pacientes em agonia nas salas de espera. Não há tempo que tire isso de mim...

Chovia desde cedo. Não era uma chuva mansa, dessas que acalma e dá aconchego, ao contrário, o céu ribombava em trovões e raios a todo momento e o tempo passava e nada da ferocidade da tempestade diminuir. No hospital já começávamos a receber vitimas de acidentes domésticos e até mesmo dos que se aventuravam a andar pelas ruas alagadas da cidade.

Eu já estava a caminho da sala de espera ter com a família de Ana Fonseca, quando me vi seguindo ao seu encontro primeiro. Se minha amiga Dra Evie, soubesse de algo assim, provavelmente me mandaria sedar e internar. Mas segui esse impulso e fui ver como ela estava.

Ao chegar no quarto, senti uma vontade irresistível de tocá-la, como se esse simples gesto pudesse me preparar para o que eu tinha que fazer. Ela estava com o mesmo semblante sereno, senão fosse pelos aparelhos, poderia afirmar que apenas estava em um breve cochilo. Não se via o curativo, que estava escondido pela vasta cabeleira castanha e sua respiração mostrava-se regular e tranquila. Assustei-me, quando um enfermeiro entrou para verificar, porque as luzes do quarto estavam acessas, assim que me viu, desculpou-se e seguiu em sua ronda.

Essa intromissão tirou-me dos devaneios e sem conter minha vontade, acariciei levemente sua face, inebriando-me com a maciez que senti. Pus-me a imaginar como seria o seu perfume, sem todos aqueles cheiros característicos de medicamento e produtos de esterilização...

Dr Lucio, definitivamente, algo esta muito errado com você . - Em uma vã tentativa de colocar um mínimo de lucidez em mim, disse em voz alta.

Olhei mais uma vez para a sua figura imóvel naquela cama e completamente alheia a fúria da natureza que açoitava os vidros da janela do quarto, e sem mais sai dirigindo-me a sala onde a família Fonseca me esperava.

Após responder algumas perguntas ao longo do trajeto e cumprimentar um colega que a tempos não via, deparei-me com a porta que me separava de um momento perturbador e que sem atinar com o porque se mostrava tão importante para mim.

Todos vieram ao meu encontro, aflitos para ouvir o que eu viera lhes dizer.

– Dr, que demora é essa? Há tempos estou aqui a sua espera.

Ninguém poderia me receber tão amavelmente como aquela senhora.

– Me desculpem, mas com essa tempestade outras questões requisitaram minha atenção...

Interrompendo-me novamente, a Sra Eva perguntou:

– Mas que absurdo é esse!! O que pode ser mais importante do que minha filha?

Respirando fundo e controlando o meu lado de gênio ruim, ignorei a pergunta e comecei a participar a todos da situação atual da paciente, afinal aquela senhora não era a única ansiosa por noticia apesar de a sua atitude demonstrar o contrario.

– A Ana, passou por uma cirurgia delicada, mas que resultou na estabilização de seu quadro. Havia uma hemorragia oriunda do trauma e foi difícil de ser localizada. Nenhum outro órgão interno sofreu qualquer dano, e isso é muito positivo. Ela agora precisa apenas de tempo para que seu organismo se equilibre e as funções celebrais retomem a normalidade. Não há indícios de que ela fique com alguma sequela. Mas uma avaliação mais completa somente será possível quando ela despertar...

– Mas como assim despertar? Você disse que ela estava bem! Eu exijo ver minha filha agora.

–Minha senhora, antes de qualquer coisa é Dr Lúcio, e eu já informei a senhora de que assim que for possível eu mesmo a acompanharei para ver sua filha. No momento ela ainda está em um semicoma, para que se recupere completamente. Além disso, eu não permitirei que estrague todo o trabalho que tivemos com sua filha, indo vê-la descontrolada como esta.

Os outros estavam paralisados diante do rompante de audácia e grosseria presenciados... E até mesmo eu comecei a ficar chocado em como aquela mulher conseguia tirar-me do prumo. A outra senhora, veio ter comigo quando um rapaz tentava em vão conter a D. Eva.

– Dr. eu peço desculpas pela minha filha, ela esta muito preocupada e isso a esta tirando do sério. Eu agradeço imensamente, tudo o que o Sr fez pela minha neta, uma outra doutora esteve aqui enquanto a cirurgia acontecia e disse-nos que o Sr é um excelente cirurgião e que nossa Ana estava em ótimas mãos. E vejo que ela disse a verdade. O senhor com a ajuda de Deus salvou nossa menina!

Ela dizia e lágrimas escorriam de seus olhos e essa imagem bastou para me acalmar e então eu tentei entender a dinâmica daquela família, perguntando-lhe porque a D. Eva não se mostrava tão aflita quanto ás outras filhas. Ela surpreendeu-se com a pergunta e olhou rapidamente para o rapaz que agora parecia discutir com a Eva.

–Dr Lucio, eu... elas não... Oh não!!

Quando olhei para onde aquela bondosa senhora estava a olhar, quase não reconheci a outra moça que estava no carro, e tudo aconteceu tão rápido que agi mais por instinto que qualquer outra coisa. A tempestade rugia lá fora como se compactuasse com o drama vivido ali, o vento era inclemente em açoitar as janelas e mais um estrondo se fez ouvir exatamente no momento em que a D. Eva viu a outra filha entrar na sala e quando vimos ela já estava para agredi-la acusando-a

– Você . Você é a única culpada. Você deveria ter morrido. Olha só o que você fez com a Ana?! - ela gritava completamente descontrolada. A confusão foi tamanha que alguém chamou um segurança e naquele momento também entrava na sala. E isso foi providencial para contermos essa senhora que se não fosse impedida iria espancar aquela moça na nossa frente.

E mesmo sendo firmemente segura ela continuava a gritar ferozmente acusando a pobre moça que agora estava apoiada pelo rapaz:

– Você Manuela, colocou tantas ideias na cabeça de minha filha que ela fez essa loucura. Mas eu já resolvi tudo. Esta me ouvindo Manuela? Para de chorar e vem me enfrentar sua ... sua, inconsequente, irresponsável, invejosa!

A mãe de Eva, D. Iná, alarmada com algo que ela disse em seu descontrole, perguntou:

– O que você fez dessa vez Eva? - O tom de voz que ela usou, conteve a todos com muito mais eficiência que braços fortes, e o silêncio como num passe de magica imperou-se, todos olharam para a Eva aguardando a resposta.

– Já chamei a assistente social e aquela menina já sai daqui para um orfanato. Pronto. Falei.

E a confusão recomeçou, com todos gritando e a Manuela dizendo que ela não poderia fazer isso. Que a Julia estava no nome da Ana ... e os berros eram abafados pela força da tempestade que não dava sinais de amainar...

Eu não estava entendendo mais nada. Quem era Júlia? Porque ela teria que ir para um orfanato? Ao que constava foi um acidente lamentável não havia culpados, mas a Eva insistia em acusar a Manuela de que ela era a culpada... Quem a final de contas estava certo nesta estória toda?

Depois de muito tempo e esforço, a Eva fora conduzida para fora do hospital com a mãe, D. Iná. O rapaz que depois dessa revelação queria brigar com a Manuela também estava mais calmo e conversava com a moça no quarto em que ela estava internada. E eu me sentia, um juiz de uma luta de boxe, ou melhor de uma luta de rua.

Muito tempo depois, com todos já mais calmos e a D. Eva longe do hospital, fui ter com a Manuela e tentar entender o que estava acontecendo. Fiquei frustrado, porque a encontrei também sedada e já adormecida, na cama de acompanhante o rapaz, que agora eu sabia chamar-se Rodrigo, também dormia. Silenciosamente, retirei-me do quarto e guardei minhas perguntas para outro momento. Até porque não havia sequer razão para que eu as fizesse.

Após verificar todos os meus pacientes e ajudar um colega em um diagnóstico complicado, aprontei-me para ir para casa. La fora a noite parecia calma, apesar de ter sido surrada pela chuva. Da chuva restavam apenas as poças no chão e grossos pingos caindo das folhas das árvores. Mas agora eu sentia a tempestade ecoar dentro de mim, e não sabia como fazer para acalmá-la.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.