EndGame

Nível IV. Fácil


“Às vezes, eu sinto que todo mundo é jovem e atraente

E eu sou um monstro na montanha

Grande demais para sair por aí, lentamente cambaleando até sua cidade favorita

Com o coração perfurado, mas nunca morto…

…Sou eu, oi, eu sou o problema, sou eu (eu sou o problema, sou eu)”

Anti-Hero – Taylor Swift

REY

É tão bom e traz tanta felicidade este momento. Ao mesmo tempo é tão assustador e desperta uma ansiedade peculiar. É como estar em uma montanha-russa e estou no alto prestes a despencar em alta velocidade e esse pode ser a melhor experiência da minha vida e uma lembrança feliz de um dia maravilhoso, ou ser algo tão assustadoramente traumatizante e seria mais uma daquelas situações que embrulha minha barriga mesmo depois de décadas. Seja o que for, não tem como evitar; porque tudo que sobe, consequentemente desce.

Afasto da mesa da recepção e me aproximo dele em passos vacilantes. Fiquei quatro dias esperando por ele, até que as meninas me contaram que ele viajou a negócios. Não foi uma surpresa, Kylo vivia viajando. Com certeza ele deve ter me avisado no chat – sempre avisou –, só não devo ter lido pelo simples fato de que decidi falar tudo pessoalmente para ele. Tenho convicção de quando falar pessoalmente, ele vai entender e me perdoar.

Paro ao seu lado e estudo mais de perto esta incógnita ambulante. Kylo Ren realmente possui inúmeras pintinhas pretas, marrom e outras no tom da sua pele; espalhadas pelo seu rosto e pescoço, seu nariz é bem marcante de perfil e seu terno é impecável e chega a reluzir em um tom de azul escuro.

Como nunca reparei no seu ar de homem de negócios que viaja? Conectei as viagens dele a um motivo presente na minha vida, Jannah também vive viajando devido o trabalho. Acreditava que, assim como ela, Kylo Ren trabalhava na marinha, ou no exército, ou nas forças aéreas. Era bem mais lógico para mim.

— O celular está bom? – sua atenção é voltada completamente para mim com o movimentar sutil de sua cabeça.

Kylo olha, por cima do ombro, algo logo atrás de nós. Ele realmente é bem mais bonito de perto. Seus olhos são castanhos escuros, lábios mais carnudos de perto e seu cabelo está quase batendo no ombro esta semana.

— Sim. – seu tom é frígido, conseguindo gelar até a minha barriga.

— Que bom. – não sei mais o que falar. Droga, é tão difícil me comunicar e buscar algo para conversar.

Costumo travar ou falar em demasiado em interações sociais com outras pessoas pela primeira vez. A verdade é que eu só me iludi durante essas semanas achando que seria como no chat, que em poucas palavras nos conectamos e tudo ficaria tão mais fácil. Só que não, ainda tenho essa bomba gelada na minha barriga devido a ansiedade.

Meu otimismo tenta me impulsionar contra a muralha fria que Kylo é com um simples “Vai dar certo”. E tem que dar certo, não sei o que fazer se não der certo.

— Eu também tenho um desse modelo. – tenho um leve surto de ansiedade misturado a esperança e desato a falar sem parar sobre modelos de celular, configurações que poderiam evitar incidentes como aquele e sobre os tipos de saladas existentes e o melhor acompanhamento para elas, é que no final comecei a ficar sem rumo. – Qual você mais gosta?

— Uhum. – o tédio em sua voz aciona um alarme na minha cabeça.

Começo a ficar angustiada. Como poderei contar a ele quando Kylo Ren claramente não está interessado em trocar mais do que uma palavra comigo. É como se eu fosse um nada, isso é tão mal educado.

O que eu fiz para deixá-lo entediado? Não sabia que era possível uma pessoa começar uma conversa já desinteressada. É algo em mim? Será que estou mal vestida?

De repente as gêmeas têm razão e ele se importa muito com a vestimenta das pessoas com quem conversa. Não sou uma pessoa despreparada, na primeira semana tinha treinado o que dizer e acordava cedo para me preparar para ele. É que depois da primeira semana fiquei com preguiça de me arrumar todo dia e nunca encontrá-lo. Deveria ter continuado seguindo a dica delas e ter vindo arrumada todo dia.

Kylo Ren está impecável em seu terno azul escuro alinhado perfeitamente no seu corpo, o cabelo dele está bem penteado, sua gravata parece caríssima, seu odor não é meloso ou enjoativo, é encantador e uma leve fragrância forte de perfume masculino.

Em contrapartida tem eu, que vesti a primeira coisa que vi hoje e sai com o cabelo despenteado. O que ocasionou em fazer três coques, enquanto corria pelas escadas, para facilitar o meu dia e não deixar óbvio os embaraçados do meu cabelo. É que hoje acordei atrasada por motivos de força maior, ontem fiquei até tarde vendo Inventando Anna.

Fui pega de surpresa com o aviso delas, tinha acabado de voltar do almoço com Rose e Connie – onde falamos de Inventando Anna. Estou começando a achar que estava certa em esperar até amanhã para conversar com ele. Não ia subir hoje, mas Rose insistiu e disse que seria bom fazer logo o que estava me deixando ansiosa. Em duas semanas pude perceber que ela é bastante observadora e tem uma capacidade incrível de ler qualquer um. Rose me trata da forma que esperei que Kylo fosse tratar, pacientemente e bondoso.

— Você deveria trocar o celular, já que ele apresenta problemas. – elevo minha voz e indico o celular em sua mão.

Estou enrolando muito e falando nada com nada. O elevador já está chegando e seria melhor contar tudo aqui e agora. Depois de sua resposta irei levar a conversa para o lado que desejo e contar toda a verdade, aposto que ele irá compreender e será gentil. Ou então eu solto tudo logo de uma vez. A segunda parece a melhor escolha. Respiro fundo.

— O problema foi gente enxerida mexendo onde não deveria. – Kylo responde impacientemente rude.

Pisco absorvendo lentamente suas palavras. Eu fiz isso, fui enxerida e mexi onde não deveria. O que eu faço? Ele vai me odiar. Fui do céu para o inferno em menos de dois segundos.

Minha visão está meio amarelada e borrada, algumas cenas passam diante de mim em câmera lenta, outras são cortadas. Ouço as pessoas como se eu estivesse submersa em um rio que me traga mais e mais para baixo. Sinto meus braços pesados e lentos, ao mesmo tempo não me lembro dos movimentos e não os ordeno. É como se eu funcionasse a cada inspiração profunda.

Sinto meu rosto molhado, mas ao invés de suor normal, transpiro algo gelado e vasto. Foi uma decisão horrenda a que eu tomei. Ele vai me odiar pelo resto da vida. Pior, ele vai me rejeitar e parar de falar comigo. Kylo vai me tratar como aqueles pais que me devolviam quando eu errava ou falhava em lhes agradar.

Aquele sensação azeda que me acompanhou por quatorze anos ressurge. Ele vai ver esse defeito e eu sei exatamente o que irá fazer logo em seguida porque eu vivi isso muitas vezes. Primeiro irá me jogar fora e depois irá ignorar tudo de bom que vivemos. O único que julgava que ficaria ao meu lado, vai me descartar facilmente como os demais.

De algum jeito, estou dentro do elevador hiperventilando e zonza. Esse elevador já viu mais crises minhas do que meus pais e Finn. Minha cabeça pesa mais do que a cadeira que me sento todo dia, todo o peso do meu corpo é mandada para ela. Toco em meus dedos em busca de algo que me traga para a realidade, não sinto nada além dos movimentos fracos e lentos.

Saio do elevador ao reconhecer os tons quentes do laranja neon, o amarelo vivo e o azul reluzente da parede do meu andar. Caminho arrastando meus pés e com um grito crescente em minha garganta.

Vai acontecer de novo, serei rejeitada pela quadragésima sétima vez. Não queria ter que passar pela rejeição novamente, mas desta vez não posso procurar por motivos escondidos; é bem óbvio o motivo desta vez. Rejeitada por ser intrometida.

Mãos enormes me param, no meio do caminho para minha mesa, e perco meu equilíbrio momentaneamente. Ouço picotado uma gritaria de Unkar, não consigo focar em nada. Estou aérea a tudo ao meu redor, inclusive a mim.

— Inútil... Protegidinha... Retardada... Asiática... Seu povo... Se tratar... Doentes...

Deixo ser levada pela pequena mão cheia de calos nas pontas dos dedos. Só faço besteira, como deixei alguém como ele entrar na minha vida? Como posso agir por impulso e ser enxerida? De repente seja um castigo divino.

— Rey. – só presto atenção nela devido a sua mão balançar o meu ombro. – Você está bem? Amiga, dá sinal de vida.

A única coisa que consigo fazer é negar com a cabeça e passar as mãos pelo meu rosto. Vivi a realização dos medos que tinha. No final do dia, minhas cicatrizes estavam certas o tempo todo.

— Ignora o que ele disse, tá bom?

Não dá, a voz dele fica repetindo a mesma frase toda hora na minha cabeça. Eu quero sumir.

— Você não é nada daquilo e ele é só um babaca que precisa atacar outras pessoas para se sentir melhor. – pego o copo de sua mão. De onde ela tirou esse copo?

— Do que você está falando? – questiono genuinamente perdida.

— Do show do Unkar. Você... Você não ouviu? – movimento a cabeça em negação. – Você está bem? Aconteceu algo lá em cima? Porque você desceu meio estranha, meio zumbi.

Possivelmente a vida tenha me transformado em zumbi. Provavelmente tenha me quebrado hoje e não foi pelo motivo que julguei que me quebraria, eu. Quem sabe, eu tenha feito algo tão mirabolante que de certa forma levou ao problema que me quebrou. Ou então, ele e o medo de perder a única pessoa que realmente me entende e me aceita... Aceitava... Já não sei.

Na verdade, não é mais um medo e sim um fato. Eu acabei de perder a segunda melhor coisa na minha vida, aquele que afastava a solidão em um simples “oi” e me fazia rir com coisas nada haver.

Talvez tudo tenha sido coisa da minha cabeça e eu tenha conversado durante anos com um personagem. Porque o meu alguém especial – sim, ele era isso e só agora percebi – não agiria assim, não é este homem bem arrumado e babaca.

Supremo Líder tem um senso de humor esquisito, às vezes autodepreciativo; ama carros, não liga se nas fotos que mando do meu canto das plantas esteja um caos e é bondoso comigo, o ser mais carinhoso e compreensível que já vi. Encontrei reconforto e cumplicidade singular nele e percebi que ele encontrou o mesmo. É como se fossemos um só.

Eu desconheço esse Kylo Ren. Não sei nada além de que ele é grosso gratuitamente e que as gêmeas tem razão, Leia é cega sobre a pessoa que Kylo é. Só isso para explicar o fato dela conversar com alguém tão mal educado.

— Você está chorando?

— Vai passar. – limpo as lágrimas. – Uma hora passa.

— Você quer ir embora? – nego com a cabeça.

Vai passar, uma hora vai passar. Não tem como ficar triste por uma semana inteira. Eu não sou assim, nunca fiquei mais que um dia triste.

»×«

Eu tive um pai adotivo que agiu da mesma forma que Kylo Ren agiu comigo. Quando contei à esposa dele que o vi perambulando por aí com a vizinha, ele disse que eu era enxerida e que esse deveria ser um dos motivos pelo qual o meus pais biológicos me deixaram. Mas a culpa não foi minha, ela tinha perguntado e eu só respondi inocentemente, eu tinha oito anos e não vi maldade alguma. Depois disso parei de ser enxerida, porque algumas famílias não gostavam disso e era mais um motivo para a conta “Por que devemos devolver a Rey”.

Eu esqueci de algumas coisas, como essa, com o tempo em que cresci e vivi nesse lar cheio de amor que os meus pais me deram. Eles até apoiavam a minha curiosidade. Ultimamente sinto saudades deles, conversar pelo celular não está bastando para mim. Queria tanto rever eles pessoalmente.

Estou triste há onze dias. Não suporto mais, chorei mais nesses dias do que chorei nos últimos treze anos. É um show de tristeza e sorvete, não sabia que sofrer com sorvete era tão bom. Rose e eu nos aproximamos muito esses dias, ela é ótima em dar dicas que sigo e finjo que deram certo para não magoá-la. Se bem que as dicas do sorvete e do chocolate deram totalmente certo.

Tentei me curar com os meus hobbies, mas nem posso jogar porque ele está lá e era com ele que conversava para fazer a dor e a tristeza sumir. É muita maldade só Kylo Ren fazer o lado ruim da vida sumir. Não importa quem eu procure, não funciona. Nem com os meus pais amorosos, minha nova amiga carinhosa, meus primos doidos e meus tios esquisitões. Nunca mais deixarei a minha felicidade e válvulas de escape nas mãos de outra pessoa.

— Por que sempre que venho aqui ou você está deitada, ou você está no computador? – sento assustada no sofá ao reconhecer a voz.

— Mãe? – papai acena para mim ao lado da mamãe.

— Quem mais viria aqui para arrastá-la para fora desta casa?

— Quero que chova pipoca! – jogo a coberta para o lado e saio em um salto só do sofá.

— Que? – é a última coisa que mamãe diz antes de ser agarrada.

Envolvo o pescoço de mamãe e fico na ponta dos pés para poder envolver o pescoço de papai também. Os puxo para o abraço, me divido entre beijar a bochecha barbuda dele e beijar a testa dela.

Eu os amo tanto, eles são o meu mundo todo. Sinto tantas saudades deles, mas não quero preocupá-los e obrigá-los a sair da sua zona de conforto. Meu amor compreende que o melhor para eles, pode não ser o melhor para mim e está tudo bem retribuir com altruísmo. Durante anos eles viveram ao meu prol e abriram mão de inúmeras coisas por mim, agora é a minha vez de fazer isso por eles e continuar lutando para honrar as coisas que eles fizeram por mim.

— Oi, meus amores. – ver meus pais é como tirar aquela dor do meu peito. Mas tenho ciência de que quando eles voltarem para a casa deles, levarão consigo a sensação de conforto e alívio.

— Oi, minha menininha. – mamãe beija minhas bochechas sorrindo.

Aperto o abraço à medida que a angústia espreme o meu coração. Esperava vê-los nas festas de finais de ano, que serão no final desse mês que começou. Estava me convencendo que aguentava mais algumas semanas até o natal.

— Eu estou tão feliz de ver vocês. – sugo meus lábios para não chorar, sendo que dessa vez seria um choro diferente, seria de felicidade. – Estava cagada de saudade.

Termino o abraço só para sinalizar para papai o que disse. Percebi que ele está sem o aparelho auditivo e não me ouviria tão claramente. Papai nasceu com mudez, a surdez moderada ele desenvolveu após um acidente automobilístico – o mesmo que o fez parar de correr. Antes do acidente papai era corredor de Fórmula 1 da empresa dele e do Han, após quase morrer, muitos anos antes da minha chegada na família, mamãe o convenceu a ser como o padrinho, o homem atrás da mesa. Papai ainda ouve, porém, pouco e utiliza um aparelho auditivo, mas às vezes, como hoje, ele não utiliza e quase não ouve o que falamos. Nos comunicamos por meio da linguagem de sinais devido a sua mudez.

— Eu também estava todo cagado. – papai ri cúmplice. Assim como eu, ele sabe o que essa simples frase irá gerar.

— Vocês sabem muito bem o que eu acho sobre essa frase. Usam para implicar. – ai, que saudade disso.

Não via meus pais há seis meses, pelo menos pessoalmente. A cada semana faço chamadas de vídeo para eles, só nas duas últimas que tive que fazer chamadas telefônicas porque estava com o rosto choroso.

— As chamadas de vídeos. – digo ao me tocar sobre o motivo pelo qual eles vieram.

Sendo sincera, não esperava que eles viessem por causa disso. Julgava que eles aceitavam as desculpas que dei, me sentia mal por mentir para eles e por dificultar uma conversa com papai – que só pode por chamada de vídeo. Deveria ter me tocado que mamãe não deixa nada passar despercebido, a mulher é praticamente um polígrafo ambulante.

— Isso também.

— E qual é o outro motivo? Posso saber?

— Viemos tomar café da manhã com você. – mamãe diz em um tom suspeito de continuidade.

— E? – incentivo ela a continuar a frase. Sigo ela até a cozinha.

— E seu pai veio almoçar com você e o seu padrinho.

— E a senhora? – pergunto, porque ela não se insere na frase.

— Vou rever a sua tia, faz muitos anos que não vejo aquela mulher.

— Quer ajuda? – caminho apressada para o seu lado e ajudo a colocar as sacolas na bancada.

São ao total sete sacolas. Meu Deus, se bobear ela fez de novo a compra da semana. Bom, se pelo menos for a compra da semana, é melhor do que ela fez da última vez – a compra do mês.

— Aconteceu alguma coisa, minha menininha? – mordo meu lábio inferior.

— Nada. Vou te ajudar. – faço o mesmo ato de tirar as compras das sacolas. Quase grito de prazer ao ver a sacola de frutas.

— Obrigado. – mamãe começa tirando embalagens e mais embalagens de queijo, presunto e qualquer coisa que possa ser colocado dentro de um pão. Aposto que esse café será o completo oposto do que tomo todo dia, um café e uma bisnaguinha. – Tem visto a novela?

— Sim. – ultimamente é isso que tenho feito a noite. – Ainda não acredito que ninguém descobriu que ele é o gêmeo bom. Tipo, a mulher está há um bom tempo com o cara, como ela não percebe?

— Breves momentos bons tendem a nos cegar e ludibriar.

— Tendi nada, mas concordo completamente com a senhora. – coloco os limões no meio da bancada.

— Como anda o curso?

— Tem sido bom, tiro notas boas tanto nas provas como nos trabalhos. – tiro as laranjas da sacola e as ponho perto dos limões. – E estou só esperando as notas para saber se finalizei a faculdade.

— Falta pouco para a pós, não?

— Sim! O tempo passou tão rápido.

— E o trabalho?

— Tá tudo indo bem. – sei que isso não é verdade e se não complementar ela não irá cansar até ter a verdade. – Estou fazendo de tudo para dar orgulho a vocês e a Han.

— Você já nos dá. – coloco o cacho de banana no canto da bancada, perto da parede. – Lembre-se de tomar cuidado com a sua saúde.

— Eu tomo, não fico doente há meses. Nem uma gripinha sequer.

— A mental também, minha menina. – solto um pequeno e discreto risinho. Essa daí já era, se foi com o criador aos seis anos de idade. – Como tem sido o processo de se adaptar ao trabalho depois de ter sido efetivada?

— Tá bom. – eca, ela trouxe uvas passas.

— E a saúde mental nessa adaptação, está boa?

— Tá bem também. – coloco os morangos perto das bananas.

— Andei conversando com Finn e Jannah. – hum, senti o golpe vindo. Mamãe percebeu que pressenti o golpe e cai em sua armadilha. – Você quer falar?

Não sei o que eles disseram, geralmente reclamo de Unkar, mas nunca digo as coisas que ele me diz e como me sinto horrível, um lixo. Só digo que não foi um dia bom, que foi bem ruim, que uma hora ficarei bem e as coisas irão parar de me machucar. Semana passada Finn me ligou bem na hora que chorava vendo uma cena de morte de cachorro no filme, não tem como não chorar em cenas assim. Minha voz estava chorosa na hora e aposto que foi isso que o fez conversar com mamãe. Já Jannah me ligou justo no dia que “conversei” com Kylo Ren, minha voz estava mais do que chorosa. É compreensível o motivo que os levou a falar com mamãe, não tem porque sentir raiva; muito pelo contrário, fico feliz em saber que eles se preocupam comigo.

— Por onde começar. – coço minha cabeça.

— Que tal a parte que o trabalho a deixou infeliz ao ponto de chorar diariamente e vem te machucando. – mamãe apoia o corpo na bancada e leva a mão esquerda a sua cintura.

— Não foi o trabalho que me deixou triste e chorosa, só para começar. E tá tudo bem se me machucar no processo de adaptação, o importante é deixar vocês e Han orgulhosos de mim. – coloco a uva do lado do cacho de banana, na região oposta dos morangos. – Uma hora tudo fica bem. É só uma fase ruim, o importante é continuar no trabalho dando orgulho a vocês.

— Rey, você não precisa se machucar para nos dar orgulho.

— Uhum. – talvez ela mude de assunto.

— Se você não se sentir bem, saia do trabalho. – ou não.

— Mas eu preciso continuar no trabalho. – falo como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, e é.

— Por quê? – boto as minhas preciosas maçãs do lado dos morangos.

— Para retribuir tudo que fizeram por mim. – tá bonita a área das frutas? Acho que sim. – Sabe que tipo de pessoa eu seria ao abandonar o trabalho de uma hora para a outra? Uma ingrata. Ninguém ama ou sente orgulho de uma ingrata.

— Reyhan, – hum, lá vem esporro. Ela só me chama pelo meu nome Rey, quando me chama pelo meu primeiro nome completo é o momento em que irá chamar a minha atenção. – você não é obrigada a fazer nada por nós.

— Eu sei. – digo, ciente que um biquinho surge logo em seguida.

— Tudo que fizemos e fazemos, por você foi, é, e para sempre será, movido pelo o nosso amor por você.

— O meu também é movido pelo amor.

— Não, minha menininha, não é amor quando você se machuca por outro. O meu amor e orgulho por você não muda se você decidir mudar de trabalho por estar se sentindo mal. Ele permanece se você decidir largar tudo e ir viver da sua arte na praia, mesmo quando sabemos que a única arte possível para você é a de se quebrar e fazer merda. – seu indicador põe uma mecha minha atrás da orelha. – Quando tudo parar de existir, a única coisa que lutará e permanecerá no vazio, será o meu amor por você e o orgulho de ser sua mãe. E digo isso pelo seu pai também. Aquele grandalhão fica minúsculo quando o assunto é você, sempre ficou.

Abraço mamãe e choro silenciosamente em seu ombro. Agarro forte o seu corpo e tenho medo de largá-la e perdê-la. Minha mãe é mais que mãe, é mais que a mulher que me tirou de um orfanato pobre; ela é a minha amiga, é meu exemplo de mulher a ser seguida, é a mulher que ficava acordada até tarde comigo seja por doença ou porque tive um pesadelo.

Suspiro aliviada, do que? Eu não sei. Mas é bom estar nos braços de mamãe, cercada pelos seus braços e pelo seu amor.

— Tá tudo bem agora, mãe, de verdade. Tem sido ótimos dias no trabalho ultimamente.

E é verdade, Rose conseguiu aliviar o clima no setor. Até estou conversando vez ou outra com o pessoal do setor, eles só não sabiam como se aproximar de mim sem serem demitidos por Unkar, que deu uma ordem de ninguém falar comigo e caso descumprisse seriam demitidos. De algum jeito Rose quebrou isso e agora há conversas. Inclusive, eles concordam que Rose deixa o clima do setor mais trabalhável e menos tóxico. Há um antes e um depois de Rose, é como se ela fosse uma santa lutando contra um ser das trevas.

— E o motivo de estar triste.

— Conto depois. – afasto dela e beijo sua bochecha. – Me perdoa por não ter falado quando as coisas estavam ruins?

— Só perdoo se você fizer a única coisa que eu desejo que você faça, de forma obrigatória por nós.

— O que?

— Que você pare de roubar as blusas do seu pai e as minhas calças moletons. – toco em seu rosto e a acaricio ternamente.

— Nunca! – a felicidade volta a banhar a minha voz.

— Seu pai te mima muito, minha menina. Por isso tá assim, uma sucateira de roupa de idosos.

— Que idosa? – finjo procurar pela cozinha.

— A eduquei corretamente, minha menininha.

— Por que tem uma planta no meio do seu quarto? – papai sinaliza com os olhos arregalados.

— Não é qualquer planta, paizinho. – sinalizo de volta. – É uma samambaia chorona.

— Não acredito! – mamãe para na hora de separar o queijo e o presunto em pratos e sai apressada.

Mamãe nutriu tantas coisas boas na minha vida, o amor pela natureza é uma delas. Somos amantes de plantas e flores. Papai Chewie nos acha estranhas por termos plantas espalhadas pela casa.

— Planta boa? – ele pergunta rindo.

— Das boas. – gosto de conversar com ele em linguagem de sinais.

— Onde compro para ela? Sabemos que sua mãe irá revidar os moletons com a samambaia.

— E você não quer a sua filhinha triste. – mamãe volta radiante, é perceptível no seu tom de voz. – Sempre mimando o seu filhotinho de raposa.

— É para mimar a minha bela esposa desta vez.

— Bela esposa? – mamãe imita a sinalização de papai.

— Bela esposa. – papai confirma, sorrindo bobo para ela.

— Esse homem ainda sabe me desarmar depois de anos. – mamãe tomba a cabeça para o lado. – Por isso me casei com ele, sabia que esse grandão continuaria com essa habilidade depois de décadas.

— Tão difícil a vida de solteiro. – resmungo risonha.

— Já falei do filho da nossa vizinha?

— Mãe, pelo amor do criador, ele é babaca. – e eu estou sendo modesta, porque ele é muito pior.

— Você quando não gosta de uma pessoa passa a ver como se fosse uma cobra.

— Nem para cobra ele serve.

— Te falei que você mimou muito ela. – ela bate nos bíceps dele.

— Você também. – papai revida rapidamente.

— Eita!

— Quando? Nunca mimei minha filha. – meu coração bate rápido, ainda fico boba ao ser chamada assim. – Muito pelo contrário, às vezes até acho que sou rígida demais com ela.

Mentira. Mamãe sendo rígida e um eclipse solar tem o mesmo grau de acontecimento. Ela só é rígida quando sou teimosa, quando faço alguma besteira colossal ou quando vai chamar a minha atenção. Os dois me mimam muito e eu retribuo na mesma intensidade.

— A vez do computador, do quarto ecológico, quando ela cismou em subir em cima de uma árvore podre e quando ela quebrou o braço porque subiu nessa árvore e caiu.

— Entendi, entendi. – mamãe bate levemente nas enormes mãos de papai Chewie. – Também cometi alguns deslizes.

— Não faço ideia do que vocês estão falando, não sou mimada.

— Uhum. – mamãe termina de montar a mesa do café da manhã em cima da bancada e sai para o quarto.

— Mãe, você veio aqui para me ver e não arrumar minha casa. – falo porque sei o que ela foi fazer.

— Não sei como você ainda chama isso de casa.

Papai e eu trocamos olhares risonhos. Mamãe é tão teimosa, Han costuma dizer que puxei a minha teimosia dela. Talvez ele tenha razão. De algum jeito, eu fui preparada e feita para ser a filha deles desde que estava dentro do saco do meu pai biológico.

Mamãe volta rapidamente com panos que ela vive tirando de lugares desconhecidos por mim – e a casa é minha. Ela aponta com o dedo em direção às frutas, hora de trabalhar cortando frutas.

Corto em silêncio, pela primeira vez sem vontade de chorar devido ao silêncio profundo e torturante. Termino rápido, anos de experiência. Passo para papai o prato com um sorrisão no rosto.

— Por que você está triste? – ele questiona após arrumar o prato na mesa e passar os talheres sujos para a mamãe.

— Você também, meu pacotão?

— Conhecemos o nosso pacotinho remendado de peças humanas. – de todos os apelidos que possuo, Pacotinho remendado de peças humanas é o maior, o mais realista e o que me faz rir toda vez.

Duas vezes o braço esquerdo, quatro o direito, ao menos quatro dedos das mãos mais de uma vez, as duas pernas duas vezes, o dedão do pé, já desloquei o ombro uma vez e dei jeito várias vezes no pescoço, coxa, braço, ombro. Eles tem razão quando dizem que a qualquer toque desmontarei como uma casinha de madeira sem pregos, ou como Finn gosta de falar, cairei no chão que nem os bonecos de Toys Story quando os humanos chegam.

— Vocês são podres na hora de escolherem apelidos. – dou as costas para ele não me ver rindo horrores.

Sento na cadeira e espero eles terminarem de arrumar a bancada. Papai e mamãe conversam com o mesmo vinco entre as sobrancelhas, eles não percebem que estou vendo tudo pelo reflexo do microondas. Eles estão demorando porque estão discutindo e sinalizando rápido, mesmo assim compreendo tudo. São treze anos vivendo com eles, sou boa em linguagem de sinais.

Ah, eles estão conversando sobre mim. Mamãe fala que eu contei sobre o trabalho e que eles irão conversar sobre isso em casa, mas que eu não contei o que tem me deixado triste e chorona nesses onze dias. Mamãe insiste para papai conversar com o padrinho e juntos ambos perguntam o que aconteceu e se eu não contar, fica nas mãos do padrinho para ele falar com a pessoa que me botou lá. É a Leia Organa! Ela irá ligar tudo e a casa vai cair.

— Foi uma consequência de um ato estúpido meu. – o único segredo que consigo guardar deles, envolvia o trabalho e o ambiente podre; não que isso tenha mudado muito, só falei superficialmente. Fora isso, somos extremamente francos e realistas um com o outro.

— Que ato? – suspiro cansada, vai ser uma longa história.

Conto tudo de uma forma que omite alguns fatores e mude o contexto para fora do trabalho. Até porque eu não quero que o meu pai vá lá tirar a limpo a história com Kylo Ren.

Em resumo, digo que uma pessoa do prédio me pediu para consertar o celular do sobrinho e sem querer loguei a conta do jogo no meu computador, depois de poucas horas descobri que se tratava da conta do meu melhor amigo no jogo e eu olhei algumas coisas como suas anotações pessoais que eram bastante íntimas. No dia seguinte me senti mal e que no final do dia planejava conversar com ele, mas ele viajou por mais de uma semana. Quando voltou e fui falar com ele, esse meu amigo foi grosso comigo e disse que o problema no celular dele era gente enxerida; me senti muito mal e tenho evitado jogar e estou triste porque conversava com ele todo dia e me sentia feliz em sua companhia. Termino dizendo que não sei o que fazer e que não quero falar com ele e venho evitando vê-lo pessoalmente.

— Não irei passar a mão na sua cabeça só porque você é minha filha. Você está errada, as palavras dele de certa forma podem servir a você e, no fundo, você sabe que ele está certo, Reyhan. – sugo os lábios para não fazer biquinho. – Mas, seu erro não anula o dele, ele errou em ser grosso com uma desconhecida atoa, ponto. Ambos cometeram erros e ambos devem reparar esse erro. Você não irá sumir sem dar explicações, você irá pedir desculpa, Reyhan. Você deve arcar com as consequências do seu ato de forma adulta e direta, deve ser menos autopunitiva e parar de alongar sua ferida.

— Eu sei. – pisco para afastar as lágrimas, mas isso só as põe para fora. – Vou fazer tudo isso.

Papai anda até mim sorrindo. Talvez mamãe e meus tios estejam certos e eu amoleça o coração do meu gigante peludo. Abraço papai o mais forte que consigo. Eu me sinto bem e segura nos braços deles.

— Eu sei que vai. – mamãe põe uma mecha atrás das minhas orelhas e acaricia meu rosto, cheia de ternura e amor. – Você é uma menina boa, filha. Um tanto quebrável, um tanto impulsiva e um tanto teimosa. Mas uma garota com um coração enorme e carinhoso.

— Eu amo vocês. – percebo que desatei a chorar, novamente, após falar isso chorosa.

— A gente também te ama, filha. – e esse amor de mamãe é perceptível em sua voz.

Papai apoia o queixo no alto da minha cabeça e toca três dedos nas minhas costas na altura do coração, essa é a forma secreta que dizemos “Eu te amo”, três letras e três dedos no lugar ao qual eu vivo – no coração dele.

É TÃO bom ter alguém para poder abraçar e dizer que amo e receber o mesmo amor e carinho em resposta. É TÃO bom ter pais que se importam comigo e nunca me abandonariam em um lugar caindo aos pedaços. É tão bom não ser mais abandonada e ter uma família para chamar de minha. É uma sensação indescritível a que os meus pais me oferecem.

— Vamos comer, vocês vieram de longe para tomar café comigo. – afasto bem melhor que antes.

Aponto para a bancada, o ódio eterno de mamãe. Por mais que ame a minha independência e a mania de comer a hora que quiser, sinto saudades de tomar café da manhã com os meus pais às oito, almoçar meio-dia e meio, lanchar às três e jantar às oito e ponto.

— Alguma outra novidade? – mamãe pergunta abrindo o saco de pães.

— Eu fiz uma amiga! – conto empolgada. O completo oposto do que estava minutos atrás.

— Diga tudo sobre ela. – mamãe me passa o pão, empolgada com a notícia.

— O nome dela é Rose Tico, é um ano mais velha que eu e ela também é imigrante, de Otomok.

— Uh, sudeste asiático. – mamãe possuí alguns parentes morando no sudeste. – Esse país fica ao lado do país que a minha prima Xun está morando com aquele marido escroto dela. Bing Bing que estava certa em casar com o primo dele, que é psicólogo e não é um homem que a traí até com a própria sombra.

— Uhum. – papai ordenou que não incentivasse esse lado realista de mamãe durante as conversas sobre a nossa família. Da última vez ela e as primas brigaram porque mamãe disse que a avó delas tinha deixado um jarro para ela e a prima Xun foi escrota, que nem o marido dela, e quebrou por inveja. – Ela e a irmã são asiáticas como a senhora. Só não é do leste asiático.

Papai também é asiático, mas do sul. Gosto de deixar claro qual parte da Ásia que eles são pelo motivo de ter ouvido de Unkar que meu pai não era asiático, porque, segundo a vozes malignas, escrotas, xenofóbicas e racistas na cabeça dele; meu pai não tinha “olhos puxados” e era “marrom bombom” e com isso só poderia ser do continente africano. Fiz uma queixa no RH, mas não deu em nada; na verdade, até que deu em algo, porque foi nesse dia que descobri que a esposa de Unkar Plutt é a responsável pelo setor do RH e por isso não adianta muito dar queixas sobre ele para o RH. Eu fiquei surpresa que alguém beija aquela boca e não morre devido a radiação.

— Como vocês se conheceram? Ela é daqui do prédio? Será que ela aceita vir tomar café da manhã com a gente? É sua primeira amiguinha. – mamãe está genuinamente feliz por mim.

Quando fiz vinte e três anos percebi que para mamãe continuo tendo quatorze anos e sendo aquela menininha miúda de tão magra que era. Não que tenha mudado muito, continuo magra e pequena, mas ao menos não possuo inúmeros ossos aparentes.

— Ela é do meu setor, supervisiona uma coisa ou outra, mas não é supervisora. – tem o trabalho de uma supervisora, age como uma, mas por culpa de Unkar não é uma supervisora e sim uma funcionária explorada por ele para fazer o trabalho dele. – Não é daqui do prédio e levaria uma hora para ela chegar até aqui e eu tenho que me encontrar com o padrinho daqui um hora e meia.

— E ela joga o mesmo joguinho que você?

— Sabe que não sei, eu nunca perguntei.

— Fico feliz dela não ser mais uma louca por Star Wars como você e seus primos. – a pessoa joga por um tempo e mamãe já classifica como viciado.

— Eles nem jogam mais.

— A Jannah, querida, porque Finn é ruim de sair do jogo que nem você.

Finn mal joga, nem tem mais a conta. O que Finn faz é trabalhar para as empresas Ani, que desenvolve o jogo.

— Tá bom, mãe. – respondo rindo.

— É verdade, você não para de jogar nunca.

— Eu não jogo já faz quase quatro semanas. – mamãe solta o pão no prato.

— Reyhan, você quer ir para casa? Podemos fazer tudo que você deseja para te deixar feliz.

— Mãe, eu estou bem. – ou vou ficar.

— O papai e a mamãe fazem suas comidinhas prediletas. Até te levamos para adotar outra ovelha. – começando a cogitar que nunca fui normal, até porque tive uma ovelha de estimação. – Você pode dar esses nomes esquisitos, harmonia? Sanza?

— Hermione e Sansa, mãe. – e eu escolho os nomes mais fáceis, queria ver quando tacasse um Rhaegar, Drogon, Nestha ou Elain. – E não precisa, vou voltar a jogar depois que conversar com ele, como a senhora me aconselha.

— Eu fico feliz, filha, mas fico preocupada também.

— Eu sei. – mordo meu pão pela primeira vez. – Agora vamos comer.

Mamãe realmente está em estado de alerta vermelho, visto que ela não me repreendeu por falar de boca cheia. Conversamos por um bom tempo sobre Rose e como ela tem me ajudado e aconselhado, mamãe já adora ela.

— Já volto, vou pegar mais um pano para tapar as frutas.

Papai me passa uma salada de frutas e lança olhares para onde mamãe foi, o meu quarto.

— Você está certa. – papai espera mamãe sair para poder expressar o que sente.

— Como assim? – pergunto rindo.

— Ele foi um babaca com você gratuitamente, alguém assim não merece a minha filha amável em sua vida. – papai olha rapidamente para a porta do quarto antes de continuar. – Você está certa em não querer falar com ele. Minha filha não é obrigada a aguentar gente ignorante e sem educação.

Ah, se papai soubesse da verdade de tudo sobre a minha vida. Unkar Plutt não existiria mais. Uma vez um garoto, do ginásio de esgrima que frequentava em Takoodana, ficou com raiva quando o venci em um duelo banal e me perseguiu até em casa me xingando e tacando pedrinhas. Papai o colocou para fora das suas terras no sentido literal da frase. O segurou pelas axilas, o ergueu em um segundo, com cara de poucos amigos, e no outro segundo o jogou para o meio da rua. A altura, força e destreza de papai sabe intimidar como ninguém. Sua carranca é só um bônus.

— A mamãe também está certa.

— Não completamente, diferente de você. – a famosa passada de pano. – Ele foi mau com você sem necessidade.

— Nisso estamos de consenso.

— Consenso do que?

— Que precisamos sair agora para não chegarmos tarde no encontro com o padrinho. – sou boa em evitar o caos.

— Mas já? Você vai assim? De pijama? Tem amor a sua mãe não, garota maluca?

— Eu vou me arrumar rapidinho e vamos. É quarenta minutos daqui até lá.

— Mas nem terminamos de comer.

— Depois de comer, mãe.

— Acho bom, já estava pensando que queria se livrar de mim.

— De você? Nunca! – sacudo a garrafa de vitamina de banana antes de abrir. – De quem eu roubaria os moletons?

— Tá rindo do que? – mamãe pergunta após o tapa estalado em papai. – Ela rouba suas blusas também.

Finjo não saber de nada e continuo comendo tranquilamente a minha salada de fruta. Comemos em um clima agradável com eles me informando sobre a vida deles, o que eu amo ouvir.

Papai conseguiu uma venda grande de vinho, a fazenda da mamãe está indo de vento e poupa. Estão pensando em adotar uma cachorrinha e tem uma surpresa para mim, que só irão dar em Janeiro. Espero que seja a cachorrinha a surpresa, quando fui adotada eles tinha um cachorro velhinho. Falcon já tinha inúmeros pelos brancos e morreu quatro anos depois que cheguei, era um bom cachorro e papai o amava imensamente.

Depois que terminamos o café, pego as coisas e vou para o banho. É bem rápido até e em seguida me arrumo. Saio e meu coração se aquece vendo meus pais rindo e flertando enquanto arrumam a mesa.

Eu quero isso, viver cada segundinho gostoso e lutar ao lado daquele que possui o meu amor. Não namoro porque não encontrei nada assim. Meus pais elevaram muito o meu nível de exigência para namorar. Mamãe sorri para mim com lágrimas nos olhos, ela odeia despedidas. Caminho até ela de braços abertos.

— Até logo, minha vida. – aperto o abraço. Não gosto de me separar deles, são meus pais e é magnífico cada segundo junto a eles.

— Até logo, mãe.

— Vou ficar mais um tempo aqui e irei para o almoço com a sua tia.

— Tá bom, não precisa arrumar nada não. – ela vai.

— Pode deixar. – ela vai tentar arrumar o máximo que conseguir. – Aqui, – mamãe me passa o aparelho de papai. – levou exatamente seis horas até ele perceber o que tinha esquecido.

— E você não deu só para ensiná-lo uma lição sobre o quão esquecido ele é, correto?

— Esse homem só não esquece de respirar porque é algo automático do corpo dele, se não esquecia e morria. – beijo sua bochecha uma última vez.

Caminho para perto do meu grandão, que está me esperando na porta. Aceno para mamãe e murmuro chorona um “Tchau mamãe”. Mordo minha bochecha interna para não chorar como um bebê. Passo para papai o seu aparelho, que agradece feliz.

O percurso até o carro acontece sem uma única conversa, até porque ele está concentrado em botar o aparelho e eu concentrada em averiguar se ele está colocando corretamente.

Assim que chegamos no carro, destranco o meu lado e só depois abro a porta para papai, carro antigo às vezes apresenta umas dificuldades que os carros de hoje em dia é algo fácil de resolver ou sequer existe.

— Você já viu o novo carro da empresa? – e lá vamos nós. – Eu gosto do seu carro, também tive um fusca caindo aos pedaços.

— Ouch! – digo rindo. – Já vi, assim como vejo você sem cinto. – ligo o carro e saio do estacionamento. – Isso daqui não tem airbag não, ein.

Papai coloca correndo o cinto. Foi amor à primeira vista, não abro mão desse carro por nada. Não importa quantas vezes meus tios e meus pais digam que eu preciso de um carro que abra as janelas e o rádio não quebre com frequência. Falando no rádio, papai o estuda como se fosse um objeto estranho.

Ligo fazendo todo o trabalho de dar um leve soco, rodar o botão até ele ficar firme e aperto o botão de ligar ao mesmo tempo que aperto o botão de volume; hoje está meio travadinho.

— Qualquer dia desses esse carro te mata passando tétano. – papai ri e eu o acompanho porque sua risada é contagiante. Suas pupilas se expandem como o sol e ao redor dos seus olhos verdes surgem ruguinhas.

— Deixa de implicar com BB8.

— Sua mãe tem razão, você só escolhe nomes estranhos.

— Sério? Vocês estão falando isso? Meus três nomes são estranhos e peculiares até em seus países de origem.

— Cada um tem um significado, sabia?

— Descobri com a ajuda de Finn.

— Finneyral não tem muito que falar sobre nomes.

— Tio Lando judiou dos filhos, né. Finneyral e Jannachan.

— Seu tio Han foi o único que soube escolher um nome normal para o filho. – o sorriso de papai morre aos poucos.

Eu acho o filho do padrinho um escroto, ele faz o meu pai sofrer a cada festa de final de ano, a cada aniversário dele e a cada aniversário do desnaturado. Papai ama tanto esse renegado e sofre com o afastamento maluco dele. Eu sei que esse moleque deve ter o seus motivos, mas o que leva alguém a se afastar de um homem que só o ama incondicionalmente como um filho?

— Ei, – cutuco sua barriga assim que paro no sinal vermelho. – pega o CD aí no porta malas. Tá escrito “Paizin”.

— Espero no mínimo as músicas do Tarzan.

— Óbvio que tem, não seria paizin sem as suas músicas favoritas do Tarzan.

Vemos todo final de ano Tarzan, papai e eu chegamos ao consenso de que eu sou uma versão quebrável do Tarzan.

— Vou pegar tétano mexendo nisso daqui não?

— Pega logo. – aponto para o porta malas rindo.

Papai abre o porta malas e CD's de várias cores pulam para fora. O dele é o verde claro, o da mamãe é o laranja, Finn o vermelho, Jannah o amarelo e do padrinho um verde mais escuro. Catálogo cada CD por cor.

A primeira música do CD dele é a primeira música que dançamos juntos. Se não me engano, tinha quebrado um dedo meu na aula de educação física, de novo, e, como quebrar um braço foi o estopim para um casal me devolver aos dez anos, estava jurando que eles iam me devolver, ainda estavam dentro do prazo de tempo que as pessoas passavam comigo – no máximo oito meses. Estava sentada chorosa perto do lago que há nas terras deles. Me recordo com perfeição dele chegando e perguntando porque estava chorando, fiquei uns quarenta minutos desconversando até dizer que eu compreenderia se eles quisessem me devolver para o orfanato. Primeiro parecia que eu tinha dado um tapa na cara dele e chamado mamãe de arrombada e ele de filho da puta, papai ficou tão surpreso e indignado que alguém pudesse devolver uma criança só por ela fazer coisas de criança. Depois ele disse que nunca me devolveria, que seria meu pai até o fim da sua existência e, então, ele fez a coisa que mais adoro, papai botou Happy Together para tocar no celular e começou a dançar. Foi inevitável não ir dançar após rir por um tempo. Desde então essa música é a minha predileta no mundo todo e em seguida vem a música que ele e mamãe cantavam para mim antes de dormir, No meu coração você vai sempre estar – a música do Tarzan.

Dirijo cantando enquanto papai utiliza linguagem de sinais para dizer por meio da música o quanto me ama, cada um tem uma linguagem de amor e papai expressa seu amor por mim utilizando músicas.

O percurso passa tão rápido, acredito que seja pela atmosfera amorosa e engraçada que papai cria. Paro o carro no estacionamento perto da oficina do padrinho, espero a música acabar antes de desligar o carro. Papai gosta sempre de sinalizar a parte final da música do Tarzan para mim, creio que ele já queira que eu vá para a cama.

— Basta fechar os olhos. É só fechar os olhos. Quando fechar os olhos. Vou estar aqui.

— Já querendo me botar para dormir é? Tá querendo vencer o padrinho no poker sem mim?

— Nunca jogo sem a minha companheira de carta! – bato levemente no seu braço.

— Continue assim, nós somos os vencedores por três anos consecutivos.

— E eu quero deixar de fazer os seus tios chorarem? Claro que não.

Seguro seu braço para atravessar; sim, ainda sou criançona nesse nível. Andamos com passos sincronizados, quando papai ia me buscar costumávamos brincar de “Nós andamos iguais” até chegar em casa.

Somos recebidos por uma garota de cabelo roxo, digo o nome de Han e ela nos leva até uma agradável mesa perto da janela, onde meu padrinho já se encontra sentado.

— Benção padrinho.

— Benção minha filha. – sou completamente ignorada na hora do abraço e trocada pelo meu pai. – Cheewiiieee!

É como o reencontro de duas crianças que não se veem desde que as férias começaram. E lá vamos nós para mais um dia de surto atrás de surto com as conversas deles e a criação de traumas peculiares. Da última vez descobri que mamãe conheceu o meu pai ao chupar o abdômen dele, que tinha cachaça e limão. Suas histórias são sempre educativas.