"Preciso me sentir livre, assim como eu era antes. Porque viver de um trampo só, não tem graça."

Fazia mais ou menos três meses que eu renunciei meus poderes. Confesso que ainda não estou acostumado com as sensações humanas, o que é muito estranho, já que um dia eu era um deles.
Quando alguém fala comigo, eu não consigo responder de imediato, até porque antes, nenhum humano me via, e o único que realmente conseguia e que eu tinha mesmo contato, era Jamie. Agora, eu não sei muito bem onde ele está, e antes mesmo de eu me tornar humano, eu já não tinha mais contato com o garoto. Tenho certeza que Jaime agora é um adolescente, que nem eu.
Todos os dias penso no motivo pelo qual eu fiz a escolha de me tornar mortal. Acho que era porque cuidar das crianças já não me tornava tão feliz, ou porque mesmo com os outros guardiões ao meu lado eu ainda me sentia sozinho, ou porque eu não estava mais satisfeito com a minha vida.
Ser humano é um tanto estranho e bom ao mesmo tempo. É estranho pois não sei como eles conseguem sentir todas essas sensações; bom pois é legal ter algo a mais para cuidar, como minha casa, minhas contas, e outros.
Estava deitado em meu sofá com as mãos em meu abdômen, que estava roncando, e olhava para o teto marrom. O som dos gritos histéricos da mulher na televisão enchia o ambiente, e infelizmente o controle remoto estava longe demais.
Havia parado de assistir a televisão fazia um bom tempo, para poder encarar o teto, e depois de alguns segundos, os gritos da mulher foram superados por algo mais barulhento.
Virei minha cabeça para trás e olhei para a janela que era de onde o barulho vinha. Dei uma risada nasal com a cena que eu estava presenciando.
Eles estavam tentando entrar na mesma hora, o que era impossível. Ri mais um pouco e levantei, indo para perto da janela.
—Gente, um de cada vez.- falei para eles.
Os vi tentarem passar novamente, e depois de um tempo, viram lógica no que eu disse.
Observei Norte entrar com um salto em minha sala, acompanhado pela Fada, Coelhão, e depois Sand entra flutuando. Vê-lo voar me deu uma pontada no coração. Eu sentia falta do vento em meu rosto, da sensação de estar lá em cima, de pular de teto em teto, de andar pelos fios de eletricidade... de voar. Mas eu tenho que aguentar firme, afinal essa é a consequência de minha escolha.
Caminho até a cozinha, afim de preparar um sanduíche para matar minha fome. Esse negocio de cozinhar não era muito para mim, mas logo consegui preparar alguns pratos sozinho.
Não senti a presença de nenhum guardião no mesmo recinto que eu estava, talvez estejam assistindo televisão, pois eu sei como eles ficam fascinados pelas coisas terrestres.
Termino de colocar maionese e finalmente fecho o sanduíche, dando uma mordida grande logo depois. Dou de ombros e vou em direção à sala novamente.
Sorrio depois de ver que sobre o pensamento anterior, eu estava certo. Observo os quatro espremidos no sofá com a boca aberta e olhando diretamente para o telão, vendo nada mais nada menos que uma propaganda de um remédio para dor de cabeça.
—Esse humanos são realmente espertos.- comenta Norte.
Os outras concordam com um aceno de cabeça, e logo procuro pelo controle remoto, o vendl do lado da TV. Caminho até lá e olho para a imagem na televisão e para os guardiões, percebendo que eles nem sequer olharam para mim. Pego o controle com um pouco de força e acabo o derrubando. Escuto o barulho alto e desvio meu olhar para as minhas companhias, que nem se mexeram. Abaixo e apanho de novo o controle, desligando a televisão.
—O que?! Quê que aconteceu?- exclama Coelhão levantando em um pulo do sofá.
—É, eu também não sei o que houve.- respondo mentindo, coçando o queixo e assumindo uma pose de surpreendido.- Eu ainda não sei mexer muito nesse tipo de coisa.
—Jack, você precisa aprender então. Ou então comprar algo que preste.- fala Norte com o indicador apontado para o teto, e dessa forma, ele pareceu um pai dando bronca.
Quase dou risada, e depois, para disfarçar, dou outra mordida no sanduíche. Eu até ofereceria para eles, mas aí lembro que eles não têm fome.
Ficamos em silêncio por um tempo. Fico imaginado se eles têm algo para me falar, pois nunca aconteceu de todos estarem aqui ao mesmo tempo.
—E então?- pergunto arqueando uma sobrancelha.
Norte parece pensar no porque de estar realmente ali.
—Queríamos saber como estão indo as coisas.- responde, vindo em minha direção.
—Estão ótimas. Estou estudando, tenho amigos ótimos.- paro por um momento, sorrindo e me lembrando deles.- Tenho uma casa ótima... bem, tudo para sobreviver.
—E como você faz para pagar as contas?- pergunta Fada.
—Bom, eu não tenho emprego fixo porque eu realmente acho que não tem graça ficar trabalhando em só uma área. Já trabalhei entregando jornais, em mercados, entre outros.- explico.
—E hoje qual é o seu emprego temporário.- pergunta Norte.
—Eu ainda não sei. Estou esperando a ligação do cara que me arranja esses empregos temporários.- digo.
Logo depois de responder, escuto o telefone. Vou em direção ao mesmo, e atendo.
—Alô?
—E aí Jack?!- escuto a voz conhecida.
—E aí Charlie?!- respondo sorrindo, mesmo que ele não possa ver.
—Amanhã você começa em um cargo novo.- deu uma pausa, pensando que talvez eu iria falar algo.- Você vai ser entregador de móveis.
—Como assim?- pergunto confuso, pois nunca havia ouvido falar sobre algo assim.
—Você vai trabalhar com mudanças. Vai ter seu próprio caminhão.- explica.
Sorrio, já que, provavelmente, será divertido.
—Mais tarde eu te mando os dados da primeira família que você irá fazer a mudança, okay?- fala.
—Tudo bem Charlie.- respondo, desligando o telefone.
Fiquei parado por um tempo pensando se a primeira família seria legal e aonde eles moravam. Na verdade, sei que pensei muito mais coisas sobre o novo emprego, mas de qualquer forma, minha atenção foi desviada.
—O quê que era Frost?- escuto a voz do Coelhão, e depois me viro para o mesmo.
—Era do emprego que eu estava falando para vocês.- explico para eles.
—E de que é desta vez?- pergunta Fada animada.
—Eu irei fazer mudanças.- respondo. Eles não falam mais nada depois da minha resposta, aposto que ficaram confusos que nem eu. Coelhão olha para Norte e parece lembrar de algo muito importante.
—Norte, temos que ir. Preciso fazer os preparativos para a Páscoa.- anuncia Coelhão.
—Tudo bem Coelhão.- responde o outro.
Vejo o homem grande pegar um globo do bolso e jogá-lo pela sala. Vem uma luz forte e então a imagem da toca do Coelhão. Todos entram de imediato, menos Norte. Antes de ele passar pelo portal ele vira para mim, com um sorriso.
—Estou orgulhoso de você e estou orgulhoso que tenha conseguido a vida que sempre queria. Foi muito bom visitá-lo, fique bem e cuidado.- diz, e dou um sorriso mostrando os dentes antes de vê-lo pular portal adentro.

—Você contou pra ela?- escutei a voz de minha mãe atrás de mim.
—Sim.- respondi.
—Como ela agiu?- perguntou, se aproximando de mim.
—Bom, ela ficou histérica, depois chorou, depois falou que vai se mudar para o mesmo lugar que nós vamos.- disse simples.
—Há há há.- riu mamãe, porém, parou logo depois de ver que minha expressão era séria.- Espera, você está falando a verdade? Ela irá se mudar junto com a gente?
—Sim mãe.- respondi, indo para a cozinha.
—Ela é maluca?!- pergunta me seguindo. Eu teria brigado com a mulher por xingá-la, mas com certeza essa seria a reação de qualquer um. Então dispenso qualquer bronca.
—À princípio, eu pensei o mesmo, mas depois vi que Astrid não estava brincando.- respondi.
—E você não falou nada? Hiccup, ela irá deixar a família dela aqui, vai deixar pra trás tudo que construiu! Ela não pode fazer isso!- disse um pouco alterada.
—Eu sei mãe. Eu falei a mesma coisa para ela e ela ainda persistiu.- expliquei.- E além do mais, eu gostei muito da ideia. Eu quero ela perto de mim, já que é minha melhor amiga, a primeira e única melhor amiga. Não a quero deixar para trás.
—Hiccup mas você sabe das consequências do meu emprego, por que se tornou amigo dela?- perguntou e eu não acreditei nas palavras que saíram da sua boca. A encarei, no começo, sem falar nada.
—É o quê?! Como se eu fosse capaz de evitar. Para a sua informação, mãe, amizades acontecem, as pessoas não têm um melhor amigo só porque querem, amizades verdadeiras acontecem e persistem.- falei gritando um pouco, mas eu não queria brigar com ela, pois nunca acontece e quando acontece, ficamos semanas sem nos falar.
A mulher deu uma pausa, parecendo pensar na decisão de Astrid.
—Ela sabe que se mudar mesmo, vai ser permanente, não é?- perguntou finalmente.
—Sabe, eu já falei isso para ela.- respondi, abaixando meu tom de voz.
—Tudo bem, eu fico responsável...- afirmou.- A não ser que ela queira morar sozinha, ela quer?
—Não sei, mas acho que não.- respondi.
—Vê com ela, e depois você me fala. Semana que vem, eu irei lá no meu trabalho para saber os detalhes, e falo que terá mais bagagens, tudo bem?- pergunta se aproximando.
— Tudo ótimo mãe.- respondo sorrindo.
Ela se prepara para dar meia volta e subir a escada, quando dá um passo atrás e me olha com uma sobrancelha erguida.
—Hiccup, eu já tive essa dúvida, mas nunca achei necessário perguntar... Mas estou achando que essa é a hora. Você gosta dessa menina?- perguntou.
Dei um riso nasal olhando para baixo e balançando a cabeça. Teria rido mais, porém não o fiz.
—Sabe mãe, muito tempo atrás, eu já pensei que sim, mas... Não mesmo!! Astrid é como uma irmã para mim, seria muito estranho. Muito, muito estranho.- respondi rindo.
—Nossa... mas eu pensei que...- falou coçando a cabeça, parecendo realmente confusa.
—Todos pensam isso mãe, mas nenhum tem coragem de vir nos perguntar e saber a verdade. Já vão nos julgando.- falei ainda rindo.
—Então... que bom que eu tive, não é?- perguntou, sorrindo sem graça.
—Também acho.- respondi a encarando, sem tirar o sorriso do rosto, o que fez com a mesma desviasse o olhar. Ela estava com vergonha, e aposto que se arrependeu muito de ter feito a pergunta.
—Bom, eu vou subir para o meu quarto.- anunciou, já dando de ombros.
—Ótimo.- dei um risinho vendo que mamãe havia escutado, e caminhei até a cozinha.