Em Busca das Almas Perdidas

A bordo do palácio voador do amanhecer


Nós encaramos a deusa à nossa frente pasmos por alguns segundos, mas o sorriso de Eos não se desfez. Então Mors deu alguns passos à frente e parou encarando os pégasos da deusa. Mors estava tão encolhida que nem parecia minha companheira de viagem. Ouvi ela se comunicar por pensamento com um deles.

O-o-oi. Eu sou Mors.

Ela proclamou timidamente. Espera, ela gaguejou? Ah, pai, dê um jeito em Afrodite. Nem o cavalo ela deixa em paz? Eu ouvi a resposta imponente do dourado invadir sua mente.

Sim, sei disso. Eu sou Laos. Este é Faetonte. Claro que você já sabia disso, égua.

Ele a olhava de cima. Me enfureceu tanto que se eles não fossem pégasos divinos, e muito provavelmente, imortais, eu teria jogado-os no Tártaro. Mas ignorei, focalizando novamente a Aurora.

Ally tinha lágrimas nos olhos vibrantes.

- Mamãe? – ela perguntou trêmula.

Thalia encarou a garota, e depois a deusa e murmurou para mim baixinho:

- Elas têm olhos iguais.

- Eu sei. – retruquei.

Eos sorriu ainda mais para a filha e a abraçou relutante, murmurando baixinho coisas no ouvido da menina. Ok, eu tenho absoluta certeza de que nós três trememos nas bases de inveja.

A maior demonstração de carinho que eu já havia ganho do meu pai... hum... acho que seria o fato de ele ter me chamado para morar com ele. Ah, e também teve aquela vez em que ele sorriu pra mim e disse que estava orgulhoso. Ou aquela outra vez em que ele tentou me dar alguns conselhos sobre garotas, mas eu sei que ele só fez isso porque Perséfone insistiu.

Eos se afastou da filha com lágrimas nos olhos e um sorriso tão grande que ela poderia muito bem representar o Coringa do Batman. Ela nos analisou e falou:

- Bom, crianças, subam a bordo. Temos um caminho longo. E só a Aurora é propícia para viagens.

Luke a encarou confuso e perguntou:

- Espere um pouco. Ah... a senhora irá nos levar até Nova York?

Ela riu de leve.

- Não, bobinho. Vou levá-los até a Carolina do Norte. E se tiver tempo, os trarei de volta. E não me chame de senhora, querido. Me chame de Eos.

Continuamos pasmos. Então Mors veio até o meu lado e me tirou do transe com pensamentos apaixonados.

Ele é tão lindo! Quer dizer, Faetonte é também, mas Laos... ah, ele é maravilhoso! Sua cor parece ouro... Não acha, Nico?

Não. Ele é chato e metido. Só porque é de uma deusa. E você fez papel de boba se encolhendo para ele.

Ela me ignorou. Eos foi até a carruagem e a porta se abriu sozinha. Ela fez sinal para que entrássemos. Ally foi primeiro, seguida de Thalia e Luke. Eu ainda lancei um olhar maligno para Mors. E depois entrei.

E se eu estava pasmo antes, não se comparava nem um pouco à minha situação agora. Para começar, o teto do lugar era tão alto que eu só via borrões que deviam ser pinturas. Era tão espaçoso que faria a Sala dos Tronos no Olimpo parecer uma barraca de acampamento.

Era todo de ouro, mármore e turmalinas, rubis, quartzos e outras pedras preciosas que não reconheci. Era construído no estilo grego, e era claramente um palácio impressionante. Tinha colunas que iam do chão ao teto, muitas, muitas, muitas portas, todas de ouro, com maçanetas de turmalinas ou qualquer outra pedra cor de rosa. Era fantástico. Havia um grande tapete dourado na entrada, obviamente feito de pele. Eu não queria saber de quê.

Nas paredes à direita e esquerda havia desenhos incrustados no mármore. Mostravam imagens interessantes. Havia deuses com suas esferas de poder. Mas não eram os Olimpianos, eram deuses estranhos, como os primordiais Morfeu e Hélios. E também os titãs. Havia imagens de semideuses estranhos, cujos olhos eram de pedras brilhantes incrustadas. Era tão interessante quanto o palácio de meu pai. Era mais delicado.

Então eu reparei que coisas flutuavam de um lado para o outro. Bandejas, pilhas de roupas e toalhas, cestinhas de frutas, vasos de flores.

- Criados invisíveis? – Luke arriscou.

- Sim. Muito eficientes. Exceto quando estão nervosos. Ou curiosos. Você nunca sabe se eles o estão espionando. Calipso adotou o mesmo método. – Eos respondeu.

- É... fantástico! – Ally exclamou. Eu a olhei e fiquei preso temporariamente no brilho vibrante de seus olhos cor de rosa. Ela fixou os olhos nos meus. Thalia me despertou do transe.

- Aquilo são presentes? – Thalia perguntou apontando para algo em que eu não tinha reparado.

À nossa direita havia um coelho gigante. Bom, não vivo, mas era tão bem feito que parecia. Ele tinha os braços juntos, e no vão entre eles havia presentes, muitos presentes. Eos olhou na direção que Thalia havia apontado e riu.

- São sim, Thalia. Aliás, feliz Páscoa! – Eos desejou.

É mesmo. Eu nem tinha me lembrado, mas era Páscoa. Todos sorrimos uns para os outros e dissemos ao mesmo tempo:

- Feliz Páscoa!

Então rimos. Ally e Thalia correram para o coelho e ficaram pulando, tentando alcançar os presentes.

- Abigobaldo é muito curioso. Ele só lhe entregará seus presentes se lhe contarem o seu segredo mais profundo. Algo que ninguém mais saiba. – Eos explicou.

- Abigobaldo? Deu ao coelho o nome “Abigobaldo”? – perguntei.

Eos me olhou divertida.

- Você é um filho de Hades interessante, Nico. Gosto disso. E sim, o nome dele é Abigobaldo. Deveria ser esse o seu nome também, não acha? – a deusa disse.

Eu corei. E estremeci de leve ao imaginar que me chamasse Abigobaldo. Imagine a entrega de um prêmio entre os deuses: “Eu chamo agora o nosso herói: Abigobaldo di Angelo, filho de Hades!”. Seria ridículo.

- Eu quero meu presente, mamãe! – Ally exigiu.

- E você o terá, meu bem. Conte a Abigobaldo um segredo. Pode falar-lhe na orelha. Suba pela escada. – Eos falou e uma escada de ouro apareceu, com o topo levando à orelha do coelho.

Ally subiu cuidadosamente as escadas e se apoiou nas orelhas grandes do coelho, curvando-se até sua orelha e sussurrando-lhe algo bem baixinho. Ela se afastou e o coelho apoiou todos os presentes em apenas um dos braços, pegando com a outra pata um embrulho roxo e estendendo-o na direção de Ally, que o pegou sorrindo e desceu, sentando-se em seguida no tapete e desembrulhando seu presente.

Thalia fez o mesmo. Mas tremendo pela altura. Ela agarrou-se às orelhas de Abigobaldo como se a vida dependesse disso. Sussurrou algo para o coelho. E eu não pude deixar de me perguntar o que ela teria dito. O coelho lhe entregou um embrulho azul cintilante. Ela o agarrou e desceu muito cuidadosamente. Mas ela não abriu seu presente, ficou de pé parada com o embrulho nas mãos.

Luke foi depois. Ele sussurrou para o coelho e este o entregou um presente embrulhado em um papel da cor de seus cabelos. Luke desceu e parou ao lado de Thalia, sem abri-lo.

Eu fui depois. Subi devagar pensando no que diria. Algo que ninguém soubesse. O que? Havia minha conexão com Mors, então eu teria que falar algo de muito tempo atrás. Pensei em Bianca. E no Cassino Lótus. E sabia o que dizer.

Debrucei-me sobre a orelha de Abigobaldoe sussurrei baixinho:

- A melhor época de minha vida foram os anos que passei no Cassino. Porque eu tinha visões estranhas. E me divertia com elas. Visões assustadoras. Eu via mortos lá. E gostava. Me divertia. Assustava, mas divertia.

O coelho pareceu pensar sobre minha fala. Ele hesitou. E só depois me entregou um embrulho preto como meus olhos. E um prateado como a lua. Peguei os dois presentes e desci surpreso. Senti os olhares sobre mim, mas ignorei. Fui direto a Eos e lhe estendi o presente prateado. Ela negou com a cabeça e disse:

- Não. É seu. Não sei porque ele lhe entregou dois, Nico, mas se o fez, são seus.

Assenti e me sentei ao lado de Ally, que segurava uma caixa de madeira e parecia relutar em abri-la. Thalia e Luke sentaram-se ao nosso lado. Eu abri o presente preto primeiro. Havia uma concha negra nele. Passei a mão por sua superfície e apareceram palavras em grego antigo. Elas formavam as seguintes frases numa caligrafia caprichada: Aquele que foge da vida é um fraco. Deixe essa fuga para aquele que foge da morte. Esse é o bravo.

Refleti um pouco sobre aquilo. Não fez sentido para mim, então deixei para lá e observei Ally abrir a caixa de madeira. Ela tirou de lá uma espécie de diário. Tinha uma capa de couro dourado, com pedrinhas negras e cor de rosa. Era selado por um cadeado de mármore, e quando Ally sussurrou algo para o diário, ele se abriu. Havia folhas limpas nele. Ally folheou e olhou para a mãe, que lhe sorriu sugestivamente.

- O que faz? – Thalia perguntou gesticulando para o diário.

- Me mostra minhas memórias. E... abre portais para que eu fale com pessoas que amo, eu acho. – Ally respondeu.

Thalia murmurou um ‘legal’ inexpressivo e tirou de minha mão a concha. Ela a analisou e passou a mão onde eu havia passado.Apareceu outra frase na superfície. Ela tentou esconder de mim, mas eu a li do mesmo modo. Dizia: O amor é aquilo que existe de verdade. Se você não sente amor, então não existe.

Luke tomou a concha das mãos de Thalia e fez a mesma coisa e outra frase surgiu: Traição é algo muito relativo. Não importa o que você pense, traidor, sua traição só existiu se você se arrependeu dela a cada instante. Se não, é escolha.

Ally puxou a concha da mão de Luke e passou a mão por ela, e outra frase surgiu: Se o amor é como a criança que deseja tudo o que vê, a paixão é como o velho que vê tudo o que deseja.

Todas as quatro frases não faziam sentido algum para nenhum de nós.Mas ignoramos.

- Esta manhã será dourada como o ouro, vermelha como o sangue, negra como o ônix, branca como o mármore e prateada como a prata. Porque esta manhã seus pégasos guiarão minha carruagem. – Eos disse.

Thalia puxou meu braço e sussurrou em meu ouvido:

- Onde estão Thalia e Nico?

Demorei alguns segundos para entender o que ela queria dizer. Então sussurrei de volta:

- Os gatos? Você quer ficar com os gatos?

- O que? Mas é claro que quero! – ela sussurrou de volta.

Suspirei e olhei para a deusa.

- Senhora Eos, eu e Thalia temos que ir buscar uma coisa lá fora. – falei.

- Se quiserem suas barracas, elas já foram trazidas para dentro. – ela disse.

- Não, não são as barracas. Mas é importante. Por favor. – retruquei.

- Podem ir, então.

A porta se abriu sozinha outra vez e eu ajudei Thalia a levantar. Passamos pela porta dourada e ela se fechou atrás de nós. Suspiramos juntos e localizamos os dois gatinhos brincando sob a árvore de ontem. Thalia correu até eles e pegou um com cada mão, dando em “Thalia” um beijinho. Ela deu no topo da cabeça de “Nico” um beijinho e me entregou o macho, ficando com a fêmea.

Nós olhamos em volta.

- Não quero voar, Nico. – Thalia murmurou baixinho.

A encarei pasmo.

- Como assim, Thalia? Onde foi parar a filha de Zeus que enfrentou tudo? – perguntei.

- Não sei. Tenho um mau pressentimento sobre Eos. – ela disse, se aproximando de mim.

- Vai... vai ficar tudo bem... – disse relutante.

- Não quero ir. Podemos ir só nós dois, podemos concluir essa missão sozinhos. – ela propôs.

Ri de leve e passei um braço pelo seu ombro.

- Não podemos lutar contra uma profecia, Tha. Sabe disso.

- A profecia não dizia que ficaríamos todos juntos até o fim.

- Não, mas dizia que deveríamos achar as almas juntos.

Ela ficou emburrada.

- Aposto que conseguiríamos sozinhos. – ela disse.

- Mas é claro que conseguiríamos. – falei. – Mas é melhor irmos juntos.

- O que você acha que sua concha quis dizer para mim com a minha frase? – Thalia perguntou.

- Não sei. Talvez dissesse que você precisa ter mais amor. Ou talvez que tudo pelo que você já passou por amor tivesse lhe feito existir. Não sei.

Ela suspirou.

- É. Pode ser.– ela sorriu maliciosamente.

- O que foi? – perguntei assustado.

- Aposto que posso fazer você tremer nas bases de vergonha. E ainda corar mais que os olhos de Ally. – ela desafiou.

- Ah, é? – retruquei. – Duvido.

Meu grande erro.

Thalia sorriu de lado sedutoramente. Ela se aproximou de mim ainda mais e pendurou os braços em meus ombros, aproximando o rosto de minha orelha. Por mais que eu lutasse, já pude sentir meu rosto esquentar e meu coração se acelerar tanto que eu rezei para que Thalia não percebesse.

Thalia encostou a boca em meu pescoço e murmurou:

- Viu, Nico? Eu disse...

Então ela tocou os lábios nos meus, tão rápido que eu mal senti e se afastou, me deixando com o gostinho tortuoso de quero-mais. Então ela riu e disse:

- Idiota!

Eu sabia que tinha sido tudo só uma brincadeira, mas por um momento eu desejei que fosse de verdade. Dei um tapinha no seu ombro de leve e ela riu ainda mais. Eu era uns dez centímetros mais alto que Thalia, ainda que ela fosse mais velha. Se bem que eu passei uns oitenta anos no Cassino Lótus, mas tudo bem.

Eu ri também. E nós fomos nos empurrando até a porta dourada da carruagem de Eos. Quando nos aproximamos, a porta se abriu sozinha, e nós vimos eles lá dentro. Ally estava de pé, e Luke tinha uma ampulheta delicada nas mãos, onde corria não areia, mas brasas. Sério, em vez de areia havia mínimos pedaços de brasas que ainda estavam vermelhas.

Ally olhou para mim e Thalia rindo juntos, eu ainda corado e fez uma cara magoada. Ela falou algo para a mãe e entrou na primeira porta à esquerda. A cara que Luke fez dizia claramente: “O que é isso que vocês têm em mãos?”

Eos se aproximou de nós e viu os gatinhos em nossas mãos.

- Que fofura. Gatinhos. – ela disse

- Onde vamos ficar, senhora? – Luke perguntou.

- Seu quarto, Luke, é depois do de Ally. Nico, o seu é depois do de Luke. Thalia, você fica no quarto depois de Nico.

- Obrigada. – Thalia disse.

Eu me abaixei e peguei o embrulho prateado e a concha preta, ainda com “Nico” no colo. Thalia pegou o embrulho azul e Luke foi com a ampulheta em mãos para o quarto que lhe fora designado. Eu fiz o mesmo. Thalia me seguiu. Assim que fechei a porta, escutei os choramingos de Ally. E me joguei na cama.