Eles por ela e ela por gatos

Grandes mistérios de um dia chuvoso


Os passos estavam ficando cada vez mais próximos e eu ainda não tinha uma boa idéia para justificar aquele sangue todo. Fui até o meu armário, pegando uma blusa de gola alta e coloquei, puxando algumas mexas do meu cabelo para frente, conseguindo cobrir o meu pescoço, peguei a colcha marrom que estava na poltrona e joguei em cima da cama, no local a onde tinha sangue, embolei tudo ali, deixando bem bagunçado. Não dava para ver mais sangue no quarto. Uffa.

– Amélia?

– Sim vovó? – perguntei normalmente me virando e sentando na cama

– Você estava demorando para descer, então vim aqui te buscar... não acha que está indo dormir muito tarde? – ela perguntou com aquele tom de repreensão

– Não vovó, só estava precisando mesmo dormir um pouco... sabe, descansar mesmo...

Era verdade, eu estava precisando mesmo descasar, mas como eu estava com aquele baita problemão nas costas, não dava para fazer nada a não ser mentir, mentir e mentir mais um pouco. Ela pareceu se convencer do que eu tinha dito, porque começou a falar um monte de coisas ruins sobre a juventude de hoje, como o quanto a gente não para, ou o quanto deveríamos sair mais em vez de ficar falando no telefone e a internet. Vó, se fosse só isso, eu juro que estaria feliz...e entediada, mas feliz.

Sabe quando a gente descobre que era feliz e não sabia? Então, estou meio assim agora, é, nesse exato momento da minha estou com aquele sentimento de angustia na ponta do meu estomago quase me matando por dentro. E eu não posso fazer nada quanto a isso, a não ser enfrentar.

Logo minha avó foi embora, me deixando sozinha com as lembranças da noite passada e algumas outras lembranças chatas. Me veio aquela vontade de ter uma crise de existência e ficar deitada o dia todo, mas estava me sentindo tão nojenta com aquele pescoço melado que primeiro, banho.

Enquanto voltava a minha rotina normal comecei a pensar seriamente que iriam começar a nascer orelhinhas e rabo de gato em mim, porque até agora eu só tinha visto esse negocio de mordida no pescoço em filmes e de vampiros, mas pensando agora até faz sentindo o que Serafim disse ontem, que muitas coisas precisam de sangue para sobreviver. Pelo que parece ele não precisa para sobreviver, mas para se transformar em gato novamente... por isso que terá que ser toda noite? A não! Isso dói ! Não é justo... quando foi que concordei com isso? Como eu sou idiota, meu deus do céu. Antes de descer, me olhei no espelho, vendo duas marquinhas de dentes cravadas no meu pescoço que ainda doíam. Isso não vai sair tão cedo daí..

Desci as escadas encontrando Missy e mais alguns gatinhos brincando no corredor que logo ao me verem saíram correndo. Não consegui guardar o sorriso bobo que tive ao ver eles assim, tão inocentes e despreocupados. Quando estava indo para a cozinha o telefone tocou e como já sou de casa, atendi sem problemas.

– Alô?

– Amélia?É você, me diz que é você! – Uma voz aguda gritou do outro lado do telefone

– Sim Thais, sou eu... – falei um pouco chateada, não queria ninguém me ligando

– Menina! Você sumiu, não deu referencias e estamos loucas atrás de você a certos dias, sabia disso? – Thais disse zangada

– Desculpa, estava precisando de um tempo sozinha Thais, olha eu preciso desligar tá... – disse seca

– Você ainda está mal com aquilo? – ela perguntou cuidadosamente

– É, estou... olha, eu juro que quando melhorar eu ligo, não estou bem mesmo... desculpe Thais, tchau e eu amo vocês... – falei calma desligando o telefone sem esperar uma resposta dela.

Eu sei que isso vai deixar todas elas muito irritadas comigo, mas eu preciso de um tempo sozinha, longe do mundo e perto das pessoas que eu amo e são minha família e ainda por cima não posso colocá-las nessa enrascada que eu, brilhantemente, me meti. Porque quando é pra se meter em algo ruim eu só a campeã! E eu já ferrei com a vida de muitas amigas minhas por causa disso, então é melhor elas ficarem fora disso e longe de mim.

Fui para a cozinha tomar meu bom café da manhã, mas vi a porta do quintal aberta e fiquei curiosa, por isso deixei o maravilhoso cheirinho de pão de lado e fui até lá, vendo minha tia parada, olhando para o céu.

– Tia, já guardou os gatos? – perguntei preocupada – Porque?

– Vai chover, não está vendo o céu? – ela perguntou calma apontando para cima

É mesmo. Quando olhei para cima, vi o céu carregado de nuvens e estava prestes a chover. Entramos e ficamos sentadas tomando o café e conversando aquelas coisas de sempre. A vida delas era apenas compostas de lembranças agora, sem lembravam de cada momento bom que passaram, de cada apuro e de cada momento ruim. Isso, na minha opinião, é bom, mas meio triste porque foi tudo o que já passou, e sinceramente eu odeio lembrar das coisas que aconteceram comigo, porque sempre que eu lembro eu penso “já aconteceu, já foi, já passou Amélia”. Escutei com todo o interesse do mundo até começar a chover.

Minha tia tinha certos pavores de chuva, por isso quando começou de verdade, ela terminou a conversa e foi para a sala ligar a T.V em um volume para surdos para não ouvir o barulho dos trovoes e da água caindo. Nesse ponto somos muito diferentes, porque eu gosto do barulho da água caindo no chão, do cheirinho bom que ela traz junto e até gosto dos trovoes, só quando a chuva é de manha ou de tarde e pela intensidade dessa iria até de tarde. Assim é bom... me deixa calma e me faz esquecer o que eu sou e o que aconteceu por alguns minutos.

Resolvi ir para o meu quarto e ter aquela crise de existência agora, já dei a minha contribuição para ela mostrando que ainda estou viva e dentro de casa, agora posso ficar um pouco sozinha. Entrei no quarto, começando a pensar nos momentos que tinha vivido até agora dessa nova historia, o engraçado é que agora estou começando a ficar com medo porque um dia, tudo isso vai acabar, um dia o Serafim não estará aqui para me encher, e eu só terei a lembrança dessa aventura que ainda estou começando. Até que sentirei falta disso quando for maior e ficar me perguntando se tudo isso foi real, porque num mundo como o nosso, nada disso pode ser real. Será que estou ficando maluca de vez?

Virei meu rosto com calma para a janela, vendo os pingos caírem, em conjunto e totalmente sincronizados, do céu e então algo branco pulou na minha janela, começando a miar. Sim, era Serafim em forma de gato, todo molhando gritando por ajuda. Me assustei e andei alguns passos para trás tampando minha boca para não gritar, enquanto ele andava de um lado para o outro, ainda miando, pedindo para entrar. Agora... porque não?

– Está bem... – falei derrotada - ...entra...

Assim abri a janela e ele pulou para dentro, me molhando um pouco. Foi direto ao chão e começou a se sacudir um pouco, parecendo um cachorro, para tirar as gotinhas incômodas de água de seu pelo. Fiquei com um pouco de dó e fui até o banheiro, peguei uma toalha e voltei com ela me abaixando perto dele e começando a secá-lo.

– Olha tudo o que eu tenho que passar por você... – disse de forma meiga - ...me agradeça depois sua peste... – terminei com o mesmo tom e rindo.

Desse jeito eu não tenho como gritar com ele, simples assim, em forma de animal não parece aquele mesmo imbecil que vem me visitar e que me xinga e tira o tempo todo uma com a minha cara. Ele pareceu não se importar muito, ficou miando em resposta, mas eu não entendia nada, então apenas sorria, passando minha mão na cabecinha dele. Respirei fundo, sentindo que ia começar a chorar, aquele momento não seria o mais adequado, já que eu não queria começar a chorar que nem uma descontrolada perto dele. Mas acabei deixando algumas lagrimas caírem, dando espaço a mais uma, depois outra e outra.

Senti meus olhos começaram a inchar e se afastei dele, tentando segurar os soluços. Porque eu não podia ter esses momentos de felicidade com o Vinicius? Eu amo ele, tanto, e simplesmente preciso me afastar o maximo para que o sentimento não crescer descontroladamente como estava antes.

Me sentei na cama, pensando novamente em todas as situação que me meti e que sujeitei por ele, parecendo uma serva atrás de seu mestre e ele se aproveitou disso, demonstrou ser cruel, e até mais cruel do que Serafim estava sendo comigo. Apertei minhas pernas contra o peito e encostei minha cabeça no joelho, olhando para fora, a onde a chuva ainda continuava. Serafim ficou me olhando de longe, deitado perto da cômoda, parecia não se abalar muito com a minha choradeira, mas também não parava de olhar para mim com a pequena cabecinha virada para o lado. Possivelmente estava se perguntando o que estava acontecendo comigo.

– Ah, vira ai e dorme, me deixa sozinha um pouco... – falei irritada virando o rosto para o lado

Eu simplesmente não suporto quando ele fica me olhando, seja irritado ou com vontade de...ah, eu não gosto! O olhar dele me intimida e me deixa louca, o que não me favorece nenhum pouco. Me virei rapidamente quando senti uma pressão do outro lado da cama, mas era Missy se deitando perto de mim e olhando para Serafim com aquele olhar “ela é minha”, o que me arrancou um sorriso. Admito que a cena foi engraçada, porque Serafim parou mesmo de me olhar quando ela fez isso. A missy comanda a casa!

Já estava mais calma e comecei a fazer carinho nela, que logo se juntou um pouco mais perto de mim fechando seus olhinhos, pronta para dormir.

– Vou te acompanhar... – falei olhando para ela - ...e Serafim, de noite me chama...

E assim me deitei, puxando Missy para o meu lado e fechei meus olhos, eu só quero, nesse momento, esquecer de tudo e fingir que sou uma menina feliz em todos os sentidos. Acabei acordando com alguém mexendo nos meus cabelos, passava a mão mexa por mexa e descia até meu rosto, o acariciando de leve. Estranho... Abri os olhos satisfeita, aquilo era tão bom, me sentia bem e confortável. Olhei e era Serafim, sentado e minha cabeça repousava em seu colo. Ao me ver abrir os olhos ele parou por alguns instantes, mas logo um sorriso irônico e mega sedutor se formou no canto de seus lábios enquanto voltava a mexer em meus cabelos.

– Acordou bela adormecida? – ele perguntou calmo.

Mas algo esta errado, como ele está sendo tão gentil comigo e estou gostando? É estranho, mas ele ali pertinho de mim, eu nunca tinha percebido o quanto gostava da companhia dele e o quanto ele estava me fazendo bem... pelo menos agora.

– Sim, acordei... dormi muito?

– Huum... um pouco, tanto que já anoiteceu e estou aqui como você não gosta ...

– É... mas até que eu gosto sim... – falei meio manhosa

– Você é tão linda... – ele disse calmo se aproximando de mim

Ele veio calmamente, semi-cerrando seus olhos e encostando a ponta de seu nariz com o meu. Por reflexo, passei minhas mãos pelo pescoço dele e fechei um pouco os meus, sentindo apenas a aproximação. Ele encostou a ponta dos lábios nos meus, balbuciando algumas palavras estranhas, que mesmo sem entender eu gostei. Fechei completamente os meus olhos esperando com alguma reação a mais, mas antes que o pior acontecesse abri meus olhos assustada, começando a voltar para a Terra. Eu estou me agarrando com Serafim?

Ele estava do mesmo jeito, me olhando assustado, estagnado ali, qualquer movimento brusco e o pior acontecia. Ele afastou a cabeça rapidamente e eu me afastei dele. O que diabos estava acontecendo ali?

– Se afasta, fica no outro canto do quarto Amélia, agora! – ele falou alto e impaciente

Me afastei correndo, levanto meu travesseiro junto.

– Que tipo de feitiço você colocou em mim heim Serafim? Que tipo de brincadeira idiota é essa? – disse irritada, tacando o travesseiro nele.

Ele pegou o travesseiro com um braço e colocou na cama de volta, parecia mais atordoado do que eu.

– Droga... – ele falou mais para si mesmo

– Droga o que? – perguntei curiosa

– Quando tomei seu sangue formamos um laço, agora toda vez que ficarmos muito perto será...

– Assim? – perguntei perplexa

– É... um pouco isso... ai, não acredito nisso.. – ele disse inconformado

– Eu que não acredito! Se sabia disso porque bebeu meu sangue? E pra inicio de conversa, que droga é essa de beber o meu sangue?

– Para de dar chilique, eu que devia estar me matando por ter dito aquelas coisas boas para você, sendo que nem acho e sinto isso...

– E acha que eu me abalo com isso? Muito pelo contrario sua aberração da natureza!

Eu não vou deixar ele ganhar essa, não mesmo. É sempre, assim, se ele me ridiculariza, eu vou ridicularizar ele também!

– Olha o tom que fala comigo garota, você não tem direito de falar assim... – ele disse mais calmo, se virando para o lado

– Eu acho que tenho sim, e agora por favor, que venham as outras explicações...

– Eu não...

– Nem que demore a noite toda Serafim... comece agora! – Exigi não deixando ele terminar de falar.

Derrotado, ele começou a comentar sobre o porque do sangue.