Eles por ela e ela por gatos

Descobrindo o que há na ala Oeste.


Ele entrou todo imponente no quarto. Abriu a porte sem cerimonias e de forma arrogante dirigiu o olhar para mim, que fiz questão de devolver no mesmo nível, enquanto escutava sua voz suave, ecoando pelo quarto.

– Se divertiu?

– Quer mesmo saber como me senti vindo até aqui? – perguntei de modo irônico, mas sendo sincera – Não foi das melhores viagens não.

– Você tinha que passar por isso sozinha – ele comentou todo convencido, sentando-se ao meu lado na cama e puxando uma mexa do meu cabelo – sentiu minha falta?

– Nem morta! – falei alto, me afastando dele – A companhia de Missy é muito mais divertida do que a sua, mas fazer o que né.

– Missy? – ele perguntou aflito – Estava com ela?

– Claro, ela que foi me buscar naquela sala esquisita – retruquei, porém fiquei de olho nele, curiosa.

As orelhinhas de Serafim passaram a se mexer rapidamente para frente e para trás, e seus músculos se contraíram, como se ele estivesse com uma leve irritação. Não aguentei e comecei a rir baixinho, o que o deixou ainda mais furioso.

– Será que ninguém deixa você passar por uma experiência sozinha? – ele berrou, se levantando.

– Para com isso – disse normalmente, tentando acalma-lo – eu precisava de ajuda vai, caso contrario não chegaria aqui viva Serafim.

– Viva chegaria! – ele retrucou imediatamente, se afastando um pouco mais de mim, com uma das mãos no queixo, se mexendo freneticamente – Só iria demorar um pouco.

– E o que isso traria de bom para mim sabichão? – cutuquei-o.

– Cala a boca Amélia.

O tom amargo me fez entrar na onda de irritação e me aproximei dele, que estava de costas, e pude ver claramente seu rabo branco se balançando de um lado para o outro, impaciente. O virei para mim, tocando apenas no ombro, já que não conseguia deixar de pensar que ele não usava uma camisa.

– Escuta aqui, a culpa não é minha se tudo não saiu como o seu planejado, mas fico feliz que não tenha sido assim.

– A é? – ele falou, contrariado.

– É! – berrei de volta, o soltando.

Sentia que meu corpo estava tremendo de raiva, quando subitamente fui puxada pelo felino, que me colocou nas costas, como uma criança mimada e me levou até a cama, me tacando lá e ficando em cima de mim, imóvel, encarando meus olhos comuns com seus olhos azuis cintilantes. Meu coração disparou estupidamente e me vi imóvel por suas pernas, como das primeiras vezes que o vi, porém agora havia certa confiança em seus movimentos travessos. Não era mais apenas uma simples provocação.

– Vamos conversar civilizadamente? – ele sugeriu com a voz baixa, falando próximo a mim.

Estremeci.

– Se sair de cima de mim, podemos e alias, não vem com conversa afiada, foi você quem começou com o stress aqui.

– Pelo menos assim você fica quietinha – agora ele dizia em meu ouvido, tentando me provocar – do jeito que eu gosto.

Se meu corpo não estivesse todo tremendo e minhas mãos coladas ao peito de Serafim, eu até poderia ter feito algo. E porque elas foram diretamente para o peitoral nu dele? Ah claro, tinha me esquecido que humanas tem esses fracos por peitorais nus e definidos assim como os dele. Porque não era um gordo velho? Tinha que ter esse corpo todo Serafim?

Percebendo minha aflição, seu sorriso se alastrou ainda mais por seus perfeitos lábios felinos e ele passou a segurar minhas mãos, as apertando contra seu peito e descendo até a barriga, passando lentamente.

– Você gosta disso, não gosta? – ele continuou a falar baixo.

Me recusei a responder. Sim, eu gosto, mas não era algo que estava acostumada e muito menos tinha pensado em fazer, passar a mão em sua barriga definida estava me deixando doida para tira-la de lá, antes que fizesse besteira, mas a luz do luar, já alta no céu, entrando pela sacada e iluminando aquela pele branca como cera e olhos cintilantes desse felino perigoso estavam me deixando confusa, com vontade de continuar ali também.

Serafim soltou minha mão que continuou parada ali, no meio de sua barriga. Parecia tentar me encorajar para continuar e foi o que acabei fazendo. Subi da barrigada para o peitoral novamente e depois para o pescoço, limitando meu espaço de contato a apenas um dedo, que agora contornava o rosto, a boca, o nariz e por ultimo os cabelos brancos e macios que ele possuía, antes de me dar conta de que tinha aceitado ser refém dele naquele breve momento.

– Serafim – falei baixo, passando a mão sobre os fios desalinhados do cabelo dele – Chega.

Fui severa. Aquilo tinha que parar, não tinham mais avós ou tias ou qualquer outro parente que pudesse entrar lá a qualquer momento, então, eu sabia que deixaria tudo fluir como a natureza do Destino queria que fluísse, mas sou teimosa, quero lutar contra essa apegação física ainda, não posso ficar fazendo isso com um ser que não verei daqui a algum tempo, depois que terminar o que realmente vim fazer neste mundo.

– Porque você gosta de acabar sempre com a diversão? – ele disse contrariado, se afastando e sentando-se na cama, olhando para a parede, longe em pensamento.

– Porque você sempre pensa na diversão? – respondi-lhe com outra pergunta, sentando-me ao seu lado – Escuta, Missy não fez nada de errado tá, ela só quis me ajudar.

– Não fale dessa... – ele voltou a ficar nervoso.

– Porque fica bravo quando falo da Missy?

– Essa gata é uma mimada, quer tudo do jeito dela.

– Conheço alguém assim. – Disse irônica, soltando um leve risinho. – Olha, eu preciso dormir. Estou cansada demais para discutir ou... voltar ao que você estava tentando fazer, então, se estiver cansado vire gato e deite ao meu lado, caso contrario fora, não quero você aqui assim, nessa forma.

– Porque? Está com medo de não resistir? – Serafim disse provocante, segurando minha perna, enquanto eu me arrastava para a parte superior do colchão.

– Idiota.

Foi tudo o que consegui dizer, por lembrar que ele havia tomado sangue de outra pessoa há algum tempo atrás e não demorou muito para o pequeno corpo felino de Serafim estar deitado ao meu lado, adormecendo até antes de mim.

Já no outro dia acordei sozinha. Me limitei a olhar para o lado um pouco irritada, como se tivesse sido abandonada pela pessoa que estivera dormindo ali e levantei-me, procurando algum banheiro ou algo assim, mas nada.

– O que a Senhorita está procurando? – Espirro disse rapidamente, da porta do quarto.

– Um banheiro – respondi me espreguiçando – Tem um aqui, não é?

Espirro ficou quieto, como se não estivesse entendendo o que eu disse. Quando sua cabeça virou para o lado e ele abaixou uma das orelhinhas, percebi que ele realmente não fazia a menor ideia do que eu estava falando, assim, tornei a perguntar.

– Um banheiro Espirro, a onde tem?

– N-não sei o que é isso Senhorita Amélia! – ele berrou e saiu correndo pelo corredor.

– Ótimo, agora vai me dizer que eles se lambem para tomar banho e cada um tem sua caixinha de areia. – disse em pensamento alto, ironicamente.

Vendo que estava sozinha sai do quarto, dando de cara com Serafim.

– Olha só, a bela adormecida acordou.

– Bom dia para você também – respondi amarga.

– Tenho um presente para você – ele disse normalmente, pegando minha mão e colocando algo pequeno em minha palma.

– Anel? – perguntei confusa.

O anel tinha uma armação prateada com uma rosa aberta em cima.

– Sim, a rosa se transformou nisso depois que você chegou aqui – ele deu de ombros – É o que te manterá protegida enquanto estiver aqui, não tire nunca do dedo, está bem?

Assenti positivamente e o coloquei em meu dedo, onde coube perfeitamente, como se tivesse sido feito para o meu tipo de dedo. Medonho, porém eficaz.

Quando fui agradecê-lo, Serafim já estava longe no corredor, andando calmamente.

– EI! – berrei – Aonde vai?

Ele não me respondeu e virou o corredor, acenando para mim. Oras, agora que esta no território dele quer ficar dando uma de bonzão? Ele não perde por esperar as travessuras que farei sozinha, vou revirar esse casarão de cabeça para baixo, ah, ele verá.

Andei mais alguns passos e senti aquele cheiro de pão fresco no ar, convidativo, vindo de uma das portas a minha esquerda. A abri sem cerimonias, vendo vários gatinhos em forma humana se revezando para assar lindos pãezinhos em formato de carinha de gatinho. Lindos brioches com orelhinhas.

– Amélia! – Missy berrou atrás de mim.

Virei-me num pulo, assustada.

– A onde estava? Estou a manhã inteira te procurando! – ela disse nervosa, balançando o rabo atrás de si.

– Acordei agora. O que eles estão fazendo? – perguntei curiosa, voltado a olha-los.

– O café da manhã. Estão apressados, não é? – ela dizia com certo doçura na voz.

– Sim – respondi no mesmo tom.

– Agora, venha, vou te levar para a sala de banho.

– Sala de banho? – perguntei confusa.

– Ah, esqueci de explicar não é? – Missy riu levemente, uma risada um pouco enjoada e explicou – Aqui não temos banheiros e sim salas de banho, onde é divido entre gatos do sexo feminino e masculino. Isso para quando ficamos na forma humana, quando gatos não gostamos muito.

– Sei disso, convivo com vocês desde pequena – respondi rapidamente, rindo.

– Então venha, vamos tomar um banho juntas!

Missy parecia animada ao tocar no assunto do banho e me puxou para o corredor, cantarolando alguma musiquinha. Sua voz era aveludada assim como todo seu pelo. Nunca havia pensando que minha pequena gatinha destrambelhada e corajosa poderia ser uma morena tão sexy de dar inveja. E esse pensamento, de certo modo, me atormenta e muito.

Passamos por vários corredores até chegar à sala que unia todos os pontos do casarão. Missy se separou de mim por alguns minutos, retornando com toalhas grandes e pequenas e alguns produtos de banho.

– Vamos? – ela comentou em plena animação, me empurrando para uma porta ali ao lado.

Na porta tinha uma gatinha rosa, o que achei muito meigo. O local era todo azulejado com uma cor azul clara, típica de banheiro, e mais a frente tinham duas grandes piscinas de agua quente, de onde saia todo o vapor que tinha no ambiente e mais ao canto algumas mangueiras e baldes. Me senti numa sala de banho coletiva do Japão.

Haviam algumas meninas num canto, conversando e rindo, enquanto mexiam freneticamente as orelhinhas e se ensaboavam.

– Nós vamos primeiro por aqui Amélia – Missy me puxou novamente – Aqui é onde você deixa a sua roupa.

Ela me levou até um cantinho onde tinha uma cadeira de madeira improvisada. A olhei.

– Não se preocupe. Não é como se eu nunca tivesse tomado banho com você antes.

Rimos. É verdade. Eu sempre tomava banho com Missy ao meu lado na casa da minha avó.

Colocamos nossas roupas ali e depois Missy me levou para perto das meninas que me olharam curiosas.

– Olá – disse tímida, acenando.

– Olha – uma delas falou curiosa – Ela não tem orelhas.

– E nem rabo – a outra completou.

– E qual é o problema? – Missy disse nervosa – É a humana, se chama Amélia, e tratem de respeita-la, estão me ouvindo!

– Sim senhora! – as três gritaram e logo depois voltaram a tagarelar.

– Nossa – comentei surpresa – Você manda aqui hein?

– Não, que isso Amelinha! – ela riu, jogando um pouco de agua em mim – apenas uso a força das palavras e do tom para defender aqueles que gosto. Alguns gatos aqui são muito ariscos.

– Imagino – respondi pensativa.

Após o suposto banho, Missy me levou para uma das grandes banheiras e entramos na agua quentinha, do jeito que gosto. Ah, aquilo era tão relaxante. Sentir os músculos do seu corpo se relaxarem por completo, esquecendo dos problemas e finalmente eu estava podendo ter um bom momento como aquele. Realmente, um banho cura tudo.

– Achou Serafim? – Missy retomou o assunto, curiosa.

– Si-sim – respondi nervosa, me afundando na agua.

– Vi ele saindo do seu quarto de manhã – ela perguntou preocupada.

– É, ele dormiu por lá – confessei. – MAS como gato Missy.

A expressão no rosto de minha gatinha favorita era de alivio e eu ainda queria saber o porque quando ela tocava no assunto “Serafim” sempre parecia tão preocupada para saber seus passos. Algo continuava me dizendo que era melhor me manter calada.

– Você está diferente – ela tornou a falar, com a voz cheia de nostalgia – Me lembro de você pulando de um lado para o outro há dois anos atrás, imaginando como seria viver uma aventura. Era engraçado.

– É e cá estou eu, vivendo a aventura – respondi sarcástica, tirando metade do corpo para fora.

– Está feliz com isso? – perguntou preocupada – Não me parece muito satisfeita.

– É complicado. O que a gente imagina nunca é a realidade, que no caso é muito dura, mais ainda do que podemos imaginar.

Aquele momento do banho durou mais do que o previsto e Missy saiu correndo, dizendo que estava atrasada para alguns compromissos, me deixando sozinha no meio do salão principal. Senti novamente que estava sobrando. Todos tinham coisas a fazer, compromissos e eu lá, sem o que fazer ou sem poder ajudar em nada.

É, meus tempos de reinado terminaram e enquanto eu não souber o que devo fazer, ou o que exatamente vim fazer aqui, terei que me ocupar com o incrível tédio que sempre me vem nas horas vagas.

Bufei. Estava sentada em um dos sofás de couro preto num canto do salão, olhando para a planta no meio da mesinha a minha frente. Foi então que me lembrei da frase de Missy.

– A ala Oeste – disse baixinho, com um sorriso travesso.

Ora, me mandam ficar longe e me deixam sozinha, sabendo o quão curiosa sou? Estão pedindo para que eu quebre essa regrinha e é o que irei fazer agora mesmo. Levantei do sofá olhando as placas acima, achando uma desgastada numa porta um pouco longe, me aproximei e vi que dizia “Ala Oeste”. Abri a porta e dei em um corredor igual aos outros, macabro, sem janelas, apenas iluminado por velas.

O atravessei até que rápido, já que meus passos tinham aumentado o ritmo pela curiosidade e logo cheguei em outra porta e a abri rapidamente, dando em um pátio. Aquele era muito parecido com o pátio arborizado que vira antes, mas era mais estreito e a mata um pouco mais fechada, como se não cuidassem de lá a anos. Logo a minha frente tinha uma casa separada do casarão, com um pequeno portão baixinho de barras de ferro fina, coberto com uma volumosa camada de folhas que se enroscavam. Era lindo.

A casa era bem alta e com uma cor escura, como se fosse o castelo do Drácula, com as mesmas folhas do portão subindo por toda a estrutura, passando nas janelas que pareciam estar fechadas a um bom tempo.

Tomei coragem e passei pelo caminho de pedra que dava lá, abrindo o portão com cuidado para não fazer muito barulho, mas sem muito sucesso. Os canteirinhos que rodeavam a casa eram de orquídeas, algumas rosas e lírios. Minhas flores favoritas. Parei por um instante para observar o pequeno canteiro, já que não sabia quando voltaria ali.

– Gosta de flores?

Escutei uma voz masculina de longe.

Virei-me assustada e vi a porta entreaberta da casa. Uma figura alta de um homem estava na soleira da porta, me observando com seus olhos enormes e bem amarelos. As orelhas negras e felpudas estavam para cima, atentas a mim, com o rabo longo balançando de um lado para o outro. A fisionomia do rosto me parecia familiar, era fino, com aquele sorriso travesso nos lábios felinos, os cabelos tão negros quanto à pelagem e compridos, como os de Missy que iam até as costas, o que contrastava com a pele branca. A roupa era muito mais pomposa do que a dos outros felinos, me lembrava um sobretudo mesclado de preto e branco, cobrindo todo o corpo dele.

Quem é você? – perguntei assustada, me afastando até o portão da entrada.

– Não fuja como um gatinho medroso. Eu não mordo – ele me disse brincalhão se aproximando alguns passos – Meu irmão te mandou aqui?

Mas ele não me deixou falar.

– Não né? Creio que veio por conta própria, já que está com esses olhos arregalados. Não sabia o que se escondia aqui, pequena princesa?

Ele era cheio de modos e tinha a voz aveludada, porém seus olhos cheios de malicia, assim como o sorriso me dizem o contrario. Eu estava muito assustada.

– Irmão? – perguntei confusa. – E não sou pequena princesa, me chamo Amélia.

– Meu irmão, Serafim – ele falou como se fosse obvio – E prazer – disse ainda calmo, fazendo uma breve reverencia – Me chamo Sebastian.

Serafim tem um irmão? E porque ninguém nunca me contou sobre isso?

– Acho que não deveria estar aqui.

Após a frase ele se aproximou rapidamente, me puxando para perto dele, cheirando meu pescoço de forma estranha, seguindo uma linha com o nariz, me apertando para que não pudesse sair, enquanto falava em meu ouvido.

– Eu sou perigoso, humana.

Agora entendo a frase: “A curiosidade matou o gato”, mas matou de susto.