Antes.

A adrenalina corria pelo sangue de Gina, seus cabelos loiros estavam bagunçados e uma sensação de rebeldia marcava todas as suas atitudes. O vento estava tão forte e o carro tão rápido. Depois de estacionado, a garota desceu do automóvel na maior pressa e correu para areia. Ficou contemplando o mar por alguns segundos, o gosto do álcool lhe consumindo, enquanto o garoto dentro do carro puxava um cigarro para perto dos seus lábios.

Ela sentiu-se atraída pela água do mar. Jogou-se nela como se aquilo fosse a resposta para todos os seus problemas. As violentas ondas lavavam os seus podres e permitiam que ela ficasse livre. Apesar do tempo ruim, Gina foi tomada por uma sensação enorme de conforto e liberdade. Ouviu seu namorado dizer algo como “Está chovendo, sai daí, sua maluca”, mas ela, como na maioria das vezes, o ignorou.

Mergulhou mais fundo, buscando as camadas mais densas daquele mar escurecido. Algas roçavam em sua perna e, uma vez ou outra, ela sentia o pé pisar em uma pedra. Subitamente, seu coração fraquejou, estava chovendo e a água ficou mais gelada. Foi para a superfície, buscando por ar. Quando tentou puxar o oxigênio, a única coisa que viu foi a onda que a arremessou para baixo.

A forte correnteza a agarrou, como se tivesse mãos. Seus olhos ardiam e o pulmão se enchia de água. Conseguiu retornar para a superfície, mas aquele não era o seu lugar. Tentou olhar para a praia, mas não a encontrava, só via mar, água salgada pela extensão até onde seu olhar alcançava.

No céu, uma nuvem tomava forma de funil, raios eclodiam atrás delas, até que uma rápida visão a fez acreditar no sobrenatural: Uma figura azulada descia o céu com velocidade, caindo como uma descarga elétrica, prestes a acertá-la. Quando estava prestes de se impactarem, Gina viu, de forma lenta e minuciosa, o rosto definido por gotículas de água do que parecia ser uma jovem mulher, com cabelos semelhantes a tentáculos transparentes. Segundos depois, aquilo havia se chocado contra ela e agora estava desmaiada, consumida pelas conchas do mar e por suas criaturas, deitada na areia, coberta por algas.

“Tudo ficará bem. Eu acabei de te resgatar.” A voz doce brotou na mente da garota. Gina pedia para que morresse, que afogasse logo, mas parecia tão bem ali submersa no mar, podia até respirar sem dificuldade nenhuma.

Fazia parte do mar e o mar fazia parte dela.

Depois.

Acordou no hospital horas depois. Sua mãe a levou para casa e contou que o médico disse que ela havia apagado por conta do afogamento e só sobrevivera por conta do ato heroico do seu namorado. Recomendou que a garota ficasse em repouso por um bom tempo e ela o fez sem protestar.

Gina adorou ficar deitada em sua cama pelo resto do dia inteirinho. A situação na água ainda aterrorizava a garota e ela sentia como se ainda estivesse sendo puxada pela correnteza. Atrás do balde de roupas sujas, um gato branco com manchas pretas chiou, arrastando-se, logo em seguida, para os braços da dona. Mesmo ali, coberta por uma fronha, agarrada ao seu animal de estimação, sentia-se extremamente vulnerável.

Pegou o celular alguns minutos depois e ligou para Jeff, seu namorado.

— Eu já estou em casa, um pouco desnorteada com tudo que aconteceu... — Ela começou, mas foi bruscamente interrompida.

— Não liga mais para mim! Coisas estranhas aconteceram hoje, estou feliz que você está bem, mas não posso continuar com você. — A voz do garoto era extremamente irritante pelo celular.

Com raiva e sem paciência, Gina arremessou o aparelho contra a parede e deitou em sua cama, tentando recordar tudo que havia acontecido desde que viu um corpo de água... Recordar aquele momento era muito difícil. A que ponto a realidade ou a ilusão poderia afetá-la?

— Estou delirando. — Sua voz de choro tomou conta do quarto e uma tremenda chuva se iniciou.

VOCÊ MERECE ISSO, VOCÊ MERECE ISSO!

O grito ensurdecedor invadiu o local. Gina reconheceu a voz rouca vinda da sala. Desceu as escadas correndo, a fúria invadindo o seu peito. Seu coração gelou ao ver o pai, cambaleante e embriagado, erguendo o cinto contra o rosto de sua mãe, que estava caída. Não era a primeira vez que ele tomava essa atitude, mas ela não iria tolerar mais, mesmo que a mãe não contestasse.

Sim, o seu pai sempre costumava bater em sua mãe. Geralmente eram nos sábados, quando ele chegava bêbado. “Vá para o quarto, Gina”, sua mãe sempre pedia, mas as surras eram tão fortes que uma simples porta não conseguia abafar o barulho da pele sendo rasgada. Sentia dor pela sua mãe e ódio por aquele homem indiferente que aparecia em sua casa.

A raiva não podia mais ser controlada. Chega um ponto na vida das pessoas em que carregar um fardo pode ser impossível. Ele pode ser direto e destroçar aquele que o carrega de uma só vez, ou pode ser lento, corrompendo as pessoas como a ferrugem em um carro antigo. Gina sabia o que tinha que fazer. Enfrentar, essa era a palavra certa. A garota sabia que não precisava segura o fardo para sempre, poderia simplesmente jogá-lo para o alto e ver o que havia atrás dele, afinal, o seu problema era de carne e osso.

Foi isso que fez. Jogou-se na frente dos dois e recebeu a forte chicotada no rosto. O corte não fora fundo, mas estava doendo muito. O pai a encarou.

— Você não deveria ter feito isso... — Seu bafo entorpeceu os sentidos de Gina e ela notou que as mãos do pai apertavam os seus pulsos. O seu indefeso corpo foi arremessado para o lado e se chocou contra a escrivaninha de fotografias. O vidro quebrado arranhava suas costas. Algo inundou sua mente e nos minutos seguintes ela não tinha domínio do seu corpo, suas mãos estavam erguidas e o poder fazia parte dela. A janela da sala escancarou e a água da chuva invadiu o lugar, acertando o pai como tiros de borracha.

— Você está machucando o seu pai! Gina, pare! — A mãe não se arriscou a chegar perto dos jatos de gota d’água que voavam para dentro da casa.

E então, com uma voz diferente da normal, disse:

ELE MERECE ISSO, ELE MERECE ISSO! — Gina gritou. O pai berrava de dor, ele largou o cinto e despencou no chão de madeira. Gina ficou tonta e o mar negro voltou para dentro de sua cabeça, levando-a para as profundezas do desconhecido novamente.