Electus

Capítulo 8


Capítulo 8

— Precisamos arrumar um emprego – Nevra expôs, inesperadamente.

Valkyon, Ezarel e eu lhe olhamos, surpresos.

— Certo, gênio. E como vamos explicar aquilo? - Ezarel retrucou, apontando minhas caudas.

Franzi o cenho levemente irritada por ter minhas caudas tratadas como aquilo, mas deixei o comentário de lado já que a pergunta era pertinente.

— Não disse que todos precisamos, e sim da necessidade – Nevra respondeu sem se abalar – Valkyon e você podem se disfarçar e arrumar um emprego durante o dia e eu fico com algo noturno.

Soltei um suspiro, cansada.

— É arriscado – comentei.

— Arriscado é ficarmos nesse palácio esperando que um plano maravilhoso caia em nosso colo. Deve existir outro meio de irmos para Eldarya, já que aquele bendito círculo de cogumelos não funciona de jeito nenhum, e não vamos saber disso ficando isolados nessa floresta – rebateu, pronto para uma briga.

De fato havíamos encontrado um círculo de cogumelos, igual ao que Olimpya tinha sido trazida pra Eldarya, porém o mesmo não teve resultado algum depois de pularmos dentro dele várias vezes, ou após derramarmos sangue e mistura de plantas.

— Ele tem razão, Miiko – Valkyon se pronunciou pela primeira vez.

Pelo canto do olho pude ver Nevra fazer uma dança ridícula, comemorando sua vitória, já que o loiro o apoiando aumentavam as chances do seu plano dar certo.

— Ele precisa se alimentar decentemente. E aqueles sacos que trago de vez em quando não vão ajudá-lo – o chefe da Guarda Obsidiana continuou.

Ezarel piscou, surpreso com a observação.

— Está dizendo para ele fazer lanchinho com a garganta do futuro patrão? Que coisa maravilhosa para se adicionar a um currículo inexistente – bufou, virando os olhos.

— E você está oferecendo a sua em troca? - o vampiro refutou, sentando-se ao lado do elfo, sugestivamente próximo de seu pescoço.

— O que aconteceu com a sua promessa de não sugo amigos? - Ezarel respondeu, sem se abalar, dando um peteleco na testa do amigo.

Bufei, sabendo que era inútil intervir quando eles começavam a se provocar, e voltei minha atenção a Valkyon.

— Acha que aquele humano pode lhes ajudar a arranjar algo? - pedi, tracejando um plano.

Valkyon se recostou no precário sofá, pensativo.

— Posso tentar conversar com ele amanhã cedo. Ainda me lembro onde ele mora.

Mesmo com as proteções em qualquer fresta do casebre, Nevra ainda sentia-se inseguro para sair de seu esconderijo durante o dia. A oportunidade de sair e ser útil devia ser a melhor coisa que lhe acontecia desde nossa chegada.

Entretanto, se esse plano desse certo, eu ficaria sem o que fazer. Nascer com caudas extravagantes nunca me pareceu tão incomodo como agora. Devo ter deixado algo transparecer em meu rosto, pois os três me olharam compadecidos.

— Não me venham com piedade, ou vou socá-los – ameacei, pouco amigável.

Ezarel, no entanto, continuou me observando apesar de o meu olhar ser carregado.

— O quê? - chiei.

— Nunca tentamos glamour – respondeu.

Ergui minhas sobrancelhas, espantada.

— Ainda se lembra de como operar? - pedi para Nevra, já que disfarce era especialidade de sua guarda.

Ele assentiu.

— Porém, precisamos esperar chegar a lua cheia para realizar a tatuagem – comentou.

— Tatuagem? - Valkyon pediu.

Nevra deu de ombros.

— Para um efeito prolongado usa-se uma tatuagem a base do sangue da pessoa, preferencialmente na época da lua cheia. O outro método é mais rápido e precisa-se de uma base para disfarce, porém não consegue se medir os efeitos.

Pelas nossas expressões ele entendeu que precisava ser mais específico.

— Se eu quisesse ter uma aparência parecida com a do Valkyon, teria de possuir um fio de cabelo dele. Mas, eu poderia parecer uma versão infantil dele ou até mesmo idoso. Apenas especialistas em glamour conseguem bons resultados. Por isso recorremos para a tatuagem.

— Quanto tempo dura? - pedi.

— Até a próxima lua. Relaxe, seu lindo corpinho não ficará marcado para sempre – respondeu, piscando um olho descaradamente.

Revirei os olhos com a péssima piada. Nevra era um galanteador incorrigível.

— Resolvidos então – disse, levantando-me, querendo aproveitar o restante da noite – vocês saem para procurar empregos amanhã.

(…)

Por mais que o conhecesse a um bom tempo e fossemos amigos, Valkyon continuava sendo um companhante frustrante. Falava pouco e quase não parava para apreciar os detalhes a nossa volta. Quase me arrependi da ideia de ir junto para procurar o humano.

— Ezarel, pare de bufar.

Ergui uma sobrancelha para ele, recusando-me a admitir que vinha fazendo isso nos últimos minutos. Valkyon apenas balançou a cabeça e rumou para fora da floresta.

Casualmente passei as mãos pela touca preta que ele conseguira a dois dias, conferindo se minhas orelhas estavam devidamente escondidas. Não tinha o que fazer em relação ao cabelo, mas aparentemente a cor não traria espanto já que eles usavam cores tão exuberantes quanto.

Enruguei o nariz com o cheiro do bairro que andávamos, sentindo aquilo poluir meu pulmão. Os humanos têm tão pouco apresso pela natureza! Cada lixeira transbordando e esgoto mal feito era um ataque direto a mim. Não era de se espantar que Olimpya tivesse aquela adorável voz anasalada, o cheiro local deve ter prejudicado-a logo cedo.

Felizmente, aquele humano parecia ser mais civilizado que sua vizinhança. Sua propriedade era recheada de plantas e havia um certo zelo com o local. Ponto para ele. Ainda observando o prédio, fomos circulando para os fundos, onde segundo Valkyon, teríamos mais chances de encontrá-lo.

E bingo!

Lá estava ele, empilhando algumas caixas em algo grande de metal – o qual a anasalada me explicou se chamar carros—, resmungando sobre alguma coisa. Olimpya também vivia resmungando, lembrei, melancólico.

Para de pensar nela, Ezarel! Repreendi-me mentalmente.

— Precisa de ajuda? - Valkyon se anunciou, fazendo-se solícito.

Já eu, fiquei parado na sombra do prédio, mexendo em minhas unhas.

O rapaz pausou o que fazia e nos olhou com certa surpresa. Provavelmente não ouvira nossa aproximação. Ele largou a caixa no chão e apoiou-se na lateral do carro, estreitando os olhos.

— Posso saber o real motivo dessa visita? - perguntou.

Ele era esperto.

— Precisamos de empregos – respondi, objetivo.

Kentin, sim eu lembrava-me de seu nome, ergueu as sobrancelhas.

— Não sou uma agência de empregos – retrucou, sarcástico.

Ah, ele devia se lembrar do nosso maravilhoso comportamento. Certo, precisávamos ser mais amigáveis ou nos ferraríamos. Acontece que séculos de preconceito contra humanos eram difíceis de serem abolidos, mesmo com a ajudinha da Olimpya em Eldarya. Muitos ainda se ressentiam com ela trabalhando na Guarda de Eel por lá.

— Eu vejo – falei, passando os olhos com calma pelo que parecia ser um depósito – a não ser que empregue alimentos.

Valkyon revirou os olhos, nem um pouco surpreso com a nossa conversa.

— O que queremos dizer é que precisamos da sua ajuda para arranjar eles – ele comentou, intervindo.

— Precisando de dinheiro? - o humano pediu, curioso.

— Informações – o outro contou.

Soltando um suspiro, a pose de Kentin ficou mais relaxa, o que significava que conseguiríamos sua ajuda.

— O quanto vocês sabem sobre esse mundo?

Franzi o cenho, confuso.

— Se vão trabalhar, precisam se passar por humanos e responder perguntas casuais do dia a dia. De nada vai valer se na primeira hora fizerem algo que gere desconfiança – explicou, cruzando os braços – e eu não vou tirar vocês da delegacia.

— Delegacia? - Valkyon ecoou meus pensamentos.

Kentin soltou um curto riso, notando nosso parco conhecimento. Segurei um resmungo, pensando que deveria ter prestado mais atenção quando ela falava sobre seu mundo.

— Não existe algo com pouca interação humana? - pedi.

— Pensei que precisavam de informação – ele respondeu.

— Pode-se conseguir informações apenas escutando conversas – refutei.

— Algo como um bar – o chefe da Guarda Obsidiana ofereceu.

O rapaz pausou um pouco, pensando.

— Existe um clube que precisa de garçons no momento. Mas, é um emprego noturno – comentou.

Sorri para meu amigo.

— Perfeito para Nevra.

Kentin, no entanto, fez uma careta.

— Nevra sabe se cuidar – Valkyon rebateu.

— Não é com ele que me preocupo.

Bufei, incapaz de me controlar.

— Sua garganta está intacta, meu caro. Nevra faz o que faz pelo que é – respondi, levemente irritado – e não o julgue sem o conhecer.

— Desculpe – ele soou um pouco arrependido, acalmando-me – ainda estou me acostumando com isso. Vou conversar com o dono do bar hoje a tarde, ver se consigo algo.

Se eu estava com dificuldades em socializar, imagina esse rapaz após descobrir que contos de fadas eram reais e mordiam dolorosamente.

— E quanto a nós? - meu amigo retomou o tópico anterior.

Kentin deu uma olhada nas caixas ao seu lado e então voltou-se para Valkyon.

— Estou pensando em algo, porém nada concreto. Preciso conversar com um amigo meu antes.

Sai de meu lugar, indo para o lado de Valkyon, notando que o nosso papo já estava se encerrando.

— Voltamos amanhã para saber – comentei, abanando a mão para ele – não sofra com saudades nossas – zombei, incapaz de me segurar.

(…)

A jovem, Ykhar, estava tremendamente vermelha. Suas mãos mexiam-se, nervosas. Provavelmente não estava acostumada a ser levada no colo por alguém. Confesso que nem eu estava acostumado a levar alguém.

Depois de derrubá-la, de tão distraído que estava, notei que ela mancava um pouco. Os sapatos que pareciam ser de um número menor possivelmente contribuiu para a torção. Devido a criação que Dona Josiane me dera, fui incapaz de não ajudá-la.

Assim, estava carregando-a até minha casa – que ficava a poucos metros de onde nos esbarramos – para ajudar em seu machucado. Pelo horário, sabia que Kentin não demoraria a chegar para buscar os alimentos do dia, então ele poderia dar uma carona para ela até a cidade.

Quando lhe questionei o que fazia por aquela redondeza, próxima da estrada principal da minha propriedade, Ykhar respondeu-me que gostava de fazer caminhadas, mas que estava procurando por amigos que tinham se perdido. Sua fala fez com que me lembrasse de uma determinada pessoa que havia desaparecido a três anos em uma caminhada.

— Chegamos – disse, descendo-a gentilmente para abrir a porta.

Certifiquei-me de que ela estava confortável no sofá da sala e fui para o antigo quarto de meus pais, buscar a maleta de primeiros socorros. Entrar naquele cômodo ainda era doloroso, principalmente após determinados acontecimentos que vieram após a morte deles. O amor que sentia pelos dois me fez incapaz de mexer em qualquer coisa daquele local, mantendo tudo limpo e arejado como uma lembrança viva.

Quando voltei para a sala, Ykhar já havia tirado a botina e massageava o tornozelo torcido. Porém, seu olhar estava concentrado na parte de cima da lareira, ao seu lado, nas fotografias que eu havia colocado ali. As fotos eram diversificadas, sendo desde minha família até meus amigos do colegial. Sendo três porta-retratos em destaque, um de mim com meus pais e meu irmão, outro de quando era pequeno rodeado de coelhos, e por fim, uma da minha antiga turma com Olimpya no meio da roda.

Virei-me para ela, pensando em algo para comentar, quando vi uma pequena lágrima descer pelos seus olhos.

— Algum problema? - pedi.

Fingindo não notar seu semblante, sentei-me próximo e abri a maleta, indicando seu tornozelo.

A jovem virou-se, ainda emocionada, e notou a caixinha que trazia. Seu olhar foi de encontro com os arabescos desenhados, ato que Josiane gostava de fazer ao redor da casa e itens, dizendo ser para nossa proteção. O rosto dela expressou confusão, confundindo a mim por tabela.

Ela saberia de algo?

Apenas algumas pessoas sabiam o que existia por detrás daqueles símbolos. Uma desconhecida não poderia saber. Espiando pelo canto do olho, vi em seu rosto que parecia debater fortemente consigo mesma, alternando seu olhar entre a maleta, as fotos e a mim.

— Nada – respondeu, sorrindo de leve – apenas sou um pouco curiosa.

Dando de ombros, sentei-me no chão ao seu lado e passei a trabalhar no tornozelo. Havia adquirido uma certa familiaridade em pequenos machucados por conta de Castiel, que vivia se machucando em manobras malucas quando mais jovem. Também em Leigh, que desacostumado a vida no campo, tendia a se lesionar quando vinha até a fazenda.

— Pronto – falei o óbvio, guardando os itens na maleta.

— Obrigada – a moça agradeceu, inclinando-se – deixe que eu te ajudo.

Ela estava pegando uma tesoura, usada para cortar a faixa, quando erroneamente colocou o peso no pé contundido, perdendo o equilíbrio. Tentei agir rápido, mas a queda foi inevitável, fazendo que nós dois nos estatelássemos no chão, os itens de primeiro socorros agora espalhados ao redor, pois havia batido o braço neles durante a queda.

Ergui meu tronco, pronto para puxá-la do chão, quando notei que seu chapéu caíra. Senti o mundo congelar naquele momento, olhando uma coisa improvável acima dos fios ruivos de seu cabelo. Ykhar, levemente zonza, demorou para notar minha cara aparvalhada. Afinal, no topo de sua cabeça erguiam-se duas orelhas de coelho.

— Ah! Deuses! - ela exclamou, quando notou.

As mãos correndo sobre as orelhas, como se pudessem escondê-las de mim. Abri a boca, sem nem saber o que falar, quando a porta da casa foi aberta.

— Hey, Lysandre! Pare de bancar o antissocial, precisamos...

Kentin entrou, descontraído, para então travar no meio da sala, notando a visitante e seu inusitado visual. Ele virou-se para mim, os olhos arregalados.

— O que uma Brownie faz na sua sala?