Rapidamente nos colocamos em posição de luta. Azure ficou atrás, com o arco na mão. Eu e Stalker assumimos com nossas espadas. Parei pra pensar um momento, vendo que Stalker estava mais preparado para a luta do que eu ou Azure. Suspirei de leve, causando uma reação dele.

–(Shhh) O que houve?

–Nada. Apenas notei que não foi apenas eu e Azure que descobrimos o sistema de Skill, não foi? – Indaguei a Stalker.

Ele apenas dava uma leve risada estranha, estando com aquela mascara.

–(Shhh) Ora. Quando você descobriu? (Shhh)

Não parei pra responder diretamente para Stalker. Ao invés disso, apenas direcionei minha força de ataque para o Kobold-Líder que se direcionada para nós.

Normalmente, um ataque de Guarda não surte muito efeito como os ataques de Samurai, Swashbuckler ou Assassino. Entretanto, o ataque ainda pode ser efetivo se tiver a arma certa, o que é meu caso. Uso uma arma específica contra monstros Beast-Type, logo monstros de quase 20 níveis acima do meu, como este sendo lvl 42, não me causa problemas. Infelizmente, Kobold-Leader possui uma defesa extra. E um golpe mais avassalador

E foi assim que fui lançado como uma bola de beisebol por alguns metros até acertar uma árvore. Normalmente um nível 30 pode ainda morrer em um golpe deste monstro, dependendo de sua classe e equipamento. Para um Guarda de nível 23, um crítico seria mais que suficiente. Enquanto eu fui arremessado, apenas ouvi Azure gritar

–Padre!

“Ora essa. E agora era hora de gritar meu “outro nome”? Esse Azure não muda. “ – Foi o que pensei.

Mas felizmente (ou infelizmente), como eu disse antes, parece que algumas coisas que tenho não são mais banidas. Isso inclui um sobre-ítem que tenho além da armadura. Na época eu senti-me grato por sobreviver ao golpe graças a esse item em especial. Mas logo percebo o quão tolo eu fui. Para surpresa dos dois, me levantei da árvore e comecei a cambalear para a linha de frente. Ao sinal de que eu sobrevivi, Stalker não perdeu tempo e logo partiu para enfrentar o monstro. Sendo ele um assassino de nível alto, ele finalizara a luta em questão de segundos. A vantagem da build de Stalker era a sustentação. Mesmo com um golpe certeiro que sofrera do Kobold-Leader, sua vida não sofrera muita perda, como a minha. E tão logo, partimos em direção ao centro da cidade.

–Ei, como assim, Magnus? – Veio a óbvia pergunta de Azure.

Novamente não precisei responder. Apenas olhei de lado, estreitando os olhos, e Azure não perguntou mais, apenas suspirando. Não era um assunto a ser discutido naquele momento.

–(Shhh) Sobre o que estão conversando? (Shhh)

Dei de ombros, acelerando o passo, enquanto Azure gesticulava negativamente com a mão. Stalker não gostava do meu jeito de lidar com algumas informações críticas. Esse era um dos motivos nos quais ele e eu não ficávamos na mesma guilda ou party. Inicialmente paramos no início da área segura, onde eu podia usar o mini-mapa, algo que me aliviou. Porém, a medida que chequei meus ferimentos internos, por dentro eu fiquei aterrorizado. Minhas feridas já estavam curando rápido, além de minha pele, outrora esfolada pelo golpe, regenerou-se de outra maneira. Rapidamente fechei a armadura e comecei a tentar controlar o nervosismo. Sabia que o uso de itens banidos poderia me causar malefícios nessa nova expansão. Mas não tinha ciência de que estaria preso neste mundo. Muito menos que poderia voltar a usar os equipamentos, tampouco saberia como seria o efeito de regeneração deles.

Felizmente, os três concordaram em ficar calados perante o incidente de meu “milagre”, a fim de evitar suspeitas, perguntas impertinentes e olhares cautelosos. Outro problema neste jogo era o preconceito e o instinto de competição entre os jogadores. Normalmente em outros servers e países, coisas como PK e armadilhas eram consideradas manobras “anti-jogo”, deixando quem os usa em uma posição desconfortável, causando até mesmo no banimento do dito jogador da cidade.

Mas aqui no Brasil, era como uma selva de fato. A cultura de que apenas o mais forte deve liderar prevalece aqui. E, diferentes dos outros locais, aqui não existe limite para a falta de escrúpulos sobre o que pode ou não pode fazer. Apenas em competições internacionais ou com visitas de jogadores estrangeiros, os BRs (como somos conhecidos ao mundo) são colocados em provas ou duelos com “regras de ética”. Pena que isso não ocorre agora.

Já de volta ao centro da cidade, nos despedimos de Stalker e seguimos novamente ao hotel onde ficávamos. Já estava ficando perigoso ficar nos arredores, já que eu sendo um “low level” eu estou sujeito a ser alvo de PK’s com maior facilidade. Ainda que eu tenha o “fator surpresa” nos meus equipamentos, não podia arriscar.

Então no hotel, desmotivados até o talo, porém ao mesmo tempo satisfeitos por retornarmos ao nosso local de descanso, Azure praticamente virou o hotel de cima-baixo, louco por uma bebida. Mas foi naquele momento que ele teve uma de suas maiores frustrações de sua vida.

–Isso aqui é água! – Foi o que eu ouvi em meio ao desespero dele.

Aparentemente toda a parte comestível no jogo, assim como a bebida, não tinham gosto algum. O que por um lado era ruim, mas também bom. Normalmente as comidas mais “saudáveis” do jogo são as que recuperam mais atributos, e como eu ODEIO esse tipo de refeição, desceu muito bem pra mim. O mesmo eu não podia dizer do Azure, que estava encolhido na cama como uma criança catatônica, murmurando coisas de não existir Deus, nem mesmo aqui neste jogo. O bom e velho Azure não muda.

–Já que nada tem gosto, então o sistema deve ter errado. – Comentei.

Azure rapidamente recolocou-se sentado na beira da cama ao lado da minha.

–Como assim? Ficou louco agora? O sistema não erra. Quando fazemos a receita no menu, o resultado sempre é esse. Creio que seja coisa apenas do jogo. Ai merda.

Massageio minhas têmporas por um momento, ficando pensativo. Optei por descer até a copa da pousada, me apoderando dela inteira. Fiquei um momento lá preparando um café normal, como sempre preparo em casa, enquanto começava a calcular meus próximos passos. Rapidamente recuperei meu humor. Se existe uma coisa que eu e Azure temos em comum é o amor por um bom café caseiro. Logo, ambos aprenderam desde a adolescência como fazer café. Depois de sentir o tradicional aroma de café rural, tomei um pouco em uma caneca e comecei a olhar a janela, mais aliviado do dia de hoje.

Então comecei a ouvir passos desesperados por todo o hotel, como se alguma bola de ferro tivesse varrendo andar por andar. Fiquei um pouco intimidado, admito, mas logo saquei minha espada com uma mão, ainda tomando meu delicioso café na outra, pronto para encarar a possível ameaça iminente. Porém, o que veio no lugar da bola de ferro, foi Azure, que estava com um princípio de crise de abstinência de café. Aparentemente, apesar de ter fama de beberrão fora do jogo, ele tinha mesmo era fraqueza com café, pois não conseguia passar mais de 12 horas sem. Ele parou um momento, sentiu o aroma de café rural, quase vertendo lágrimas de seus olhos de tamanha satisfação e logo tratou de servir-se como fazia quando me visitava em casa. Parecia que havia voltado do deserto, pois mesmo o café quente não o intimidou, e ele quase virou a caneca.

Só então, depois de quase dois dias caóticos neste maldito servidor online, eu pude ver o antigo Azure de volta.

–Credo padre. Parece que tem a mão de Deus neste café.

–Vai se ferrar! – É automático. Sempre que ouço ele fazer frases com alcunha divina, é resposta a retórica dele.

E naquele final de tarde, passamos a ficar sentados na copa da pousada, tomando um bom café e revivendo nossas memórias do jogo, apenas tentando, ao mesmo que esquecer o infortúnio de estarmos presos lá, reviver nossas memórias reais. Pois como falei com Azure naquele fim de tarde, meu maior medo em jogos desse tipo sempre foi o do jogo começar a apoderar-se da vida fora dele (vida off, como chamo). E dada a situação atual em que estávamos, realmente era um medo possível.

Foi quando um NPC (ou Povo da Terra, chamado nos fóruns internacionais) apareceu, aparentemente assustado. Era uma das camareiras da pousada, aparentemente perplexa com o que fazíamos na copa.

–Mas o que é isso? Pensei que a copa estivesse fechada.

Apenas dei um leve sorriso amarelo de resposta inicial, antes de falar.

–Bom, me desculpe milady. – Respondi formalmente. – Mas necessitávamos de algo relaxante, e como vi que não era usado a um tempo, tomei a liberdade de já rearrumar toda a copa e, não perdendo a viagem, preparar um café caseiro. A senhorita aceita?

A mulher não mudou a faceta. Muito pelo contrário, ficara mais desconcertada. Isso deixou Azure igualmente intrigado, pois assim como eu, ele não fazia a menor ideia do que raios ocorrera naquela mulher.

–Ei Padre, acho que ela não vai te dar o perdão. – Sussurrou Azure em meu ouvido

Apenas devolvi esta nova retórica com um olhar fulminante um instante, voltando a encarar a camareira com um certo desconforto. Mas não fazia a menor ideia do que fiz de tão grave, além de me apossar de um dos aposentos abandonados do local e reformá-lo. Não foi nada de mais.

–Não foi isso o que quis saber. – Retrucou ela, ainda surpresa. – O que quero saber é o que você usou neste café, pois o cheiro parece o mesmo que sentia quando criança. E já fazem anos que ninguém prepara um café com cheiro e gosto assim.

Outra resposta surpreendente. E Azure parecia ter entendido na hora, bem mais rápido do que eu, o que deixou levemente emburrado. Porém algo na historia fez Azure ficar pálido e começar a me encarar com olhos esbugalhados, apontando o meu café.

–O que foi? O que foi? – Perguntei ficando mais alterado.

Porém quando olhei no café, apenas notei que era o mesmo café que sempre preparei em casa, sem nenhuma alteração. Igualzinho com o mesmo gosto e cheiro que sempre senti desde minha adolescência.

“...Espera um momento! O mesmo cheiro e gosto?!?”

Foi então que a revelação me acertou com poder infinitamente maior do que o golpe do Kobold Líder. Realmente era algo que deixei passar por horas, na minha frente, que não notei até a camareira e Azure me darem as dicas. Como fui tão burro?

A algumas horas atrás eu fiz um café a moda caseira, sem menus ou outros ingredientes. Apenas utilizei os instrumentos da copa, o que permitiam que alguém sem skill pudesse preparar pratos simples, montar seu lanche ou almoço com itens básicos e comer ali. Se todas as bebidas vendidas estavam sem gosto, como eu sentia o gosto e aroma de café?

Nesta hora que algo surgiu naquele jogo. Enquanto eu derrubava a caneca.

–Ei! Cuidado com o café!

O bom e velho Azure não muda, Nadinha de nada mesmo.