Logo depois do enjoo que senti com a chocante descoberta, Azure me ajudou a levantar, enquanto a vista diante do viaduto. Era estranho, mas eu sentia falta do barulho dos carros que passavam na Dutra constantemente. De supetão, a voz de meu velho amigo me trouxe a “realidade”.

–E então, pra onde vamos?

Cocei o queixo, pensativo. Olhava por aonde viemos, na avenida que levava até meu antigo bairro. Pelo outro lado, a continuação da avenida levaria a capela que havia lá, seguindo cidade adentro. Entretanto, no fim do viaduto onde estávamos, antes de seguir pela rua, tinha um velho caminho de terra que levaria a um dos Shopping da cidade: o Center Vale. Ou o que restou do mesmo depois de refeito o mapa da cidade no jogo, que deixou o local em ruínas.

Contudo, notei que tinha movimentação no local, de algumas pessoas, pouquíssimos jogadores e alguns do “povo-da-terra”, perambulando na direção do Shopping. Aquilo me deu uma ideia.

–Vamos aos Shopping. Pelo que vejo, ainda existe comércio lá! – Comentei. – De lá fazemos contatos com nossa lista de amigos e em seguida vamos resgatar quem também está preso no jogo.

Azure, porém, não parecia muito humorado em ajudar.

–E por que não fazemos o contato com nossa FL(Friend List) agora?

Respirei fundo. Esqueci por um momento que Azure era muito receoso a grandes movimentações de pessoas, mesmo online. E agora que estávamos presos no jogo, isso só iria agravar. Não me dei por vencido.

–Cautela nunca é demais. – Respondi suspirando novamente. – Não sabemos como funcionam as coisas aqui. Podemos ser atacados enquanto falamos com eles, ou pior, sermos mortos por monstros. Seria um crime perfeito.

Nunca foi novidade que alguns jogadores desonestos aproveitarem a chance de outros jogadores estarem conversando com amigos, grupos ou guildas, seja dentro ou fora do jogo. Isso também associado a falta de sorte de alguns jogadores, ocasionais vindas de monstros encima deles, tornava algumas conversas arriscadas e/ou inúteis.

Felizmente Azure, como todo bom aventureiro, já entendeu aonde quis chegar na parte da “cautela” que falei. Mesmo ele sendo um sujeito imprudente e anti-social que, em jogos em geral, ganhou a fama de destemido (o que pra mim rende melhor como louco suicida, mas enfim) ele tinha uma noção de perigo.

–Já sei, vamos ao Shopping então. – Comentou Azure dando-se por vencido.

Ao chegarmos na frente do Center, notei que a movimentação era fraca por fora, mas dentro era extremamente movimentado, cheio de pessoas do povo-da-terra e também de aventureiros. Cocei o queixo pensativo, enquanto Azure sentia calafrios. Ele odiava multidões. E eu só lembrei agora.

–Nem ferrando que eu entro!

–Qual é? Isso nunca foi problema pra você antes. Era só conversarmos enquanto vamos vendo quais lojas vendem os itens. – Respondi.

Azure apenas me olhou como se quisesse me encher de balas. Me senti um daqueles pobres coitados que iam “dormir com os peixes”.

–Ok ok, não tá mais aqui quem falou. – Falei suspirando. – Espere aqui que eu já volto.

Me despedi temporariamente de meu parceiro e adentrei no “formigueiro humano”. De longe era uma das situações mais caóticas e irônicas em que me enfiei em muito tempo. Estando aqui, preso em um jogo onde a civilização voltou a era medieval (em termos) e estou me sentindo no meio da 25 de março da capital. Se não fosse pelo corpo de Guarda que tenho, além do “presente” que debaixo da armadura, eu realmente teria morrido por falta de ar dentro daquele local. E depois de longos minutos, que pareciam eras dentro daquela estufa, finalmente consegui sair, com uma sacola do triplo do meu tamanho nas costas. Apenas ouvi uma leve risada.

–Tsc tsc... Querida, eu disse que devia maneiras na hora de comprar os sapatos. – Ouvi Azure dizer.

–Há há. – Respondi secamente. – Comprei cevada e outros materiais, só pra constar.

Naquela mesma hora, a faceta de Azure mudou. E é nestas horas que eu REALMENTE odeio ser bondoso demais, pensava eu, enquanto o cretino parecia me idolatrar.

–Obrigado padre! Deus te abençoe. – Cantou Azure.

Apenas dei de ombros, bufando de leve, andando pra longe do Shopping, voltando a Rodovia ao lado do Shopping, olhando de um lado para o outro.

–Saco. E agora? - Indaguei

–Não me pergunte. Por que não reza pra achar a resposta? – Retrucou Azure

Ignorei novamente Azure com seus comentários e ponderei. Prometi a ele que teríamos um porto-seguro para poder descansar, reorganizar os itens e entrar em contato com nossos colegas na Friend List, mas ainda não tive ideia de como conseguir tal local. Como nossas casas reais foram tomadas por um forte matagal e originalmente a Guild-Hall que eu tinha ficava em Londres, eu precisaria comprar uma outra casa.

–Azure, onde quer morar?

Azure me olhou estranho por um momento, até entender o que quis dizer.

–Nem sei. O neko provavelmente logou no Japão, além de minha namorada estar em outro estado. Se ela logou, eu nem quero ficar na cidade.

Outro ponto válido. Se tivéssemos que ir atrás dos amigos que também ficaram presos no jogo, o mais plausível seria dar logo o fora de Sanja.

–Esta bem, vamos ao centro da cidade e pegar o portal pra outra cidade.

E ambos foram caminhando rumo ao centro. Normalmente eu nem ligo de caminhar, mas o peso nas costas me deixava irritado. A nossa sorte foi o projeto “half-gaia” que reduziu as distâncias pela metade. E em alguns minutos chegamos a praça central. Junto com uma multidão desesperada.

“COMO ASSIM, FECHADO?” – Foi o que ouvimos pela maioria.

Na mesma hora Azure e eu olhamos detalhadamente o portal da cidade, lacrado e sem funcionamento. Outra vez o jogo resolveu sacanear. Como se não bastasse estarmos presos no jogo, todos os deslocamentos de cidades teriam que ser feito a moda antiga. Azure e eu ficamos desanimados e nos instalamos na pousada mais próxima, calculando o próximo passo.

No quarto com duas camas que reservamos por uma semana, vi Azure socar a parede tão forte que deixou um trincado. Um feito para um bardo, admito.

–E agora?!? – Ele gritou.

Me lembro de nossas Raids mais sérias, onde Azure ocasionalmente perdia a cabeça e ligava o Frenzy-Mode, mais parecendo um Assassino do que um Bardo, matando mais do que a maioria, porém deixando sua guarda aberta. Naquelas horas, eu sempre reajustava a linha de combate e esfriava os ânimos. Novamente sobrou pra eu resolver.

–Agora nós vamos ver nossa lista, conseguir um mapa e ver pra onde vamos primeiro.

Azure olhou pra mim frustrado, e com razão, mas logo respirou fundo e levou os cabelos pra trás, se acalmando enquanto sentava-se em uma das camas, longe da janela.

Foi quando recebi uma chamada súbita

–O que foi Mags? – Azure notou que fiquei alterado.

Gesticulei pra que ele voltasse a se sentar e atendi a chamada.

–Ei! Nem acredito(Shhh). Você também cara?

Já fazia um tempo que não escutava tal voz. Era Stalker, um dos poucos Assassinos-Tank que já vi jogar. Ao invés de focar na parte furtiva, o forte da classe, ele montou seu personagem como linha de frente. Inicialmente era motivo de chacota de muitos. Mas depois chegou a ser um dos Top-Ranks de São Paulo.

–Stalker! Onde você está?

Apenas ouvia seu tradicional ruído da mascara que ele usava.

–(Shhh) Cara, estou bem sossegado (Shhh). A minha guild está quase toda online (Shhh). E você, quem mais você viu?

–Apenas achei meu parceiro de bebidas Azure. – Respondi.

Logo depois a voz de Stalker mudara de tom, o que me deixou apreensivo.

–(Shhh)Beleza beleza. Mas sem ser chato(Shhh), mas preciso que venha até o parque da cidade o mais rápido possível. (Shhh)

Revirei os olhos. Já estava no horário da noite.

–Agora? E você quer por um acaso quer caçar o que?

–(Shhh) Quase toda a nossa “pt” da cidade está aqui(Shhh). Estamos resolvendo se vamos sair ou não. (Shhh)

Olhei para Azure um momento, pensativo.

–Verei o que posso fazer. – E desliguei.

Azure ficou curioso sobre qual era o assunto da chamada. Ele conhecia Stalker apenas na Database da cidade que levantei uma vez na internet, mas não o vira pessoalmente muitas vezes, então sabia pouca coisa.

–Estão chamando todas as ‘pt’s’ de Sanja pra reunirem-se no parque da cidade.

–A essa hora?

–Foi exatamente o que falei. – Respondi suspirando. – Vamos logo, a pensão já foi paga adiantada mesmo.

Azure fez algumas caras e bocas, mas acabou me acompanhando em direção ao Parque da Cidade. O que me lembro na ultima atualização fora que, alguns prédios, outrora abandonados ou tombados como patrimônios culturais dentro do parque se tornaram Guild-Halls raras e de boa localização, pois ficavam perto do limite seguro da cidade, onde podia-se ver desde a movimentação dos monstros mais básicos até as invasões, o que dava a guilda em questão minutos preciosos de Raids.

Mesmo sendo meu amigo em off, Staker não costumava me receber em sua GH, mais por causa dos outros membros de sua guilda, que eram muito reclusos e algumas vezes ariscos a pessoas de fora. Pra ele responder a um chamado geral no meio do parque, fora de sua confortável casa, alguma surpresa tinha.

E desde que entrei neste “jogo”, surpresa é a única coisa que não quero saber.