“Hello, it's me

I was wondering if after all these years you'd like to meet

To go over everything

They say that time's supposed to heal ya, but I ain't done much healing

Hello, can you hear me?

I'm in California dreaming about who we used to be

When we were younger and free

I've forgotten how it felt before the world fell at our feet

There's such a difference between us

And a million miles

Hello from the other side

I must've called a thousand times

To tell you I'm sorry for everything that I've done

But when I call you never seem to be home

Hello from the outside

At least I can say that I've tried

To tell you I'm sorry for breaking your heart

But it don't matter, it clearly doesn't tear you apart

Anymore

Hello, how are you?

It's so typical of me to talk about myself, I'm sorry

I hope that you're well

Did you ever make it out of that town where nothing ever happened?

It's no secret that the both of us

Are running out of time”

(Adele, Hello)

O coração humano é uma máquina perfeita. Funcionando de um modo inconsciente, ele apresenta um ciclo rítmico de contrações e de relaxamentos musculares num compasso de música clássica.

Como um amigo fiel, ele nos acompanha 24 horas por dia, enchendo de vida o sangue cansado e o reenviando para onde ele é essencial. Como um amigo negligenciado, acabamos por nos esquecer que ele está lá e que é graças a ele que estamos vivos.

Deitado no asfalto frio e quente, sentindo tudo a andar à roda num loop infernal, Davi sentia o seu coração a querer desistir.

À sua volta, os pedaços amolgados daquilo que momentos antes tinha sido o seu potente carro comprovavam que o embate tinha sido forte. Ele mesmo já tinha chegado a essa conclusão quando deixou de sentir as extremidades dos membros e um frio glacial tomou conta dele.

A chuva fria incessante contrastava com o rescaldo do incêndio que os bombeiros acabavam de controlar, mas o ar estava ainda pejado com o ruído ininterrupto daqueles que tinham sido chamados a socorrer aquela tragédia.

Seria sempre impressionante como a vida pode mudar radicalmente num piscar de olhos.

O que também continuava a piscar era a sirene alaranjada intermitente da ambulância enviada para resgatar o único acidentado que não tinha tido morte imediata e que era a única luz que cortava a escuridão daquele início de noite.

Mesmo estando quase a perder a consciência, Davi ainda teve o discernimento para perceber o olhar de pena que os socorristas lhe votavam:

– Calma, senhor. - pedia brandamente um deles, um socorrista de cabelos grisalhos que já tinha visto de tudo no exercício da sua profissão e que, por isso, não teve coragem para mentir e lhe dizer que ia ficar tudo bem.

Reunindo forças para afastar a máscara de oxigênio que lhe tinham colocado na face, o antigo bom moço da Gambiarra fez um último pedido com uma voz agonizante:

– Megan….

Se a vida se assemelha a um labirinto multidimensional de ramificações incalculáveis, também é verdade que esse labirinto vem inevitavelmente acompanhado por um cronômetro impiedoso.

A partir de certo ponto na viagem da vida, uma vez tomada a direção da esquerda já não há mais tempo para voltar atrás e experimentar ver o que o caminho da direita nos reservaria.

Qualquer a decisão tomada será sempre uma resolução impossível, acarretando uma perda, porque nunca teremos como saber o que teria acontecido se tivéssemos tomado o caminho contrário ao que o nosso coração, a nossa razão ou a nossa cegueira existencial nos ditaram inicialmente.

Talvez seja essa consciência o principal ponto de viragem para a idade adulta. A consciência da própria mortalidade e de que ninguém é eterno, a não ser em memórias. Saber que o nosso tempo de existência é finito e que deve ser aproveitado ao máximo. Aprender que os erros devem ser reparados hoje porque não podemos contar com um amanhã. Aceitar que as nossas decisões têm consequências que podem ser irreparáveis.

Quando Davi era criança ele tinha sonhado com muitas coisas, com muitos projetos, com muitos objetivos, com muito de tudo, mas com uma ideia constante: ser feliz, fazendo os outros felizes. Ele nunca viria a fazer nem uma coisa nem outra.

Um ser intimamente partido, fragmentado por si mesmo, lutando contra uma bipolaridade de comportamento que se tinha entranhado nele como um parasita mutante, só demasiado tarde na vida percebeu o bom moço que afinal de verdadeiramente bom moço ele pouco tinha.

Ele tinha vestido desde muito jovem a capa de super-herói que lhe tinham atribuído e, por isso, no lugar de aceitar os seus defeitos como ser humano que era, ele tinha tentado ignobilmente corresponder às altas expectativas que os outros tinham depositado nele, nunca compreendendo que ele era apenas de carne e osso, capaz de errar tanto ou mais do que qualquer outro.

A única pessoa que teria a capacidade de o salvar de si mesmo nunca teve oportunidade de o fazer, porque se ela foi capaz de o ajudar a se reerguer numa situação complicada, o reconhecendo e aceitando por quem ele era, Davi escolheu permanecer na sua ilusão e se despediu dela como de um criado que se despede depois de cumprir a sua função.

Davi se tornou numa caricatura de si mesmo, numa versão de mundo real de um avatar irreal de jogo de computador. E o real e a ilusão do mundo criado a partir de código binário se fundiram de tal forma que Davi Reis já não sabia dizer quem era.

Ele tinha cumprido o que dele se esperava. O bom e leal moço tinha chegado ao final da história do lado da sua guerreira Maya e tinha, por isso, esperado por um “e viveram felizes para sempre” que demorava em chegar.

Por uma razão muito simples os contos de fada terminam com o casamento entre a heroína e o príncipe. É que depois vem a vida real e as dificuldades do dia a dia. A pia que entope, a geladeira que quebra, um dia mau no trabalho, os filhos que desatam num berreiro e não param, um pai que fica doente. E é nesses momentos nada hollywoodescos que vem à tona a verdadeira personalidade de uma pessoa e o entrosamento de um casal.

As duas metades de uma laranja encaixam, não quando são rigorosamente iguais, mas quando têm diferenças que são complementares, o que as liga, tornando-as numa só peça.

Achando que tinha feito tudo certo, Davi demorou muitos anos a perceber que tinha errado no seu julgamento.

Afinal, Manuela era igual a ele, com os mesmos gostos e interesses. E ele tinha colocado na cabeça que tinha que insistir naquela história interrompida porque a culpa de tudo estava sempre nos outros ou no destino, mas nunca nele mesmo.

Por isso, ele abdicou de si mesmo e se tornou unicamente no marido de Manuela Yanes. Como filho de Jonas Marra isso foi o suficiente para abrir todas as portas para a programadora, mas parecia que ela nunca ficava satisfeita com nada.

Mesmo quando se dedicaram à criação das escolas de informática no Recife, Manuela sempre se preocupou mais com a projeção mediática da sua imagem por conta do aspecto beneficente do projeto do que propriamente com o benefício para as crianças.

Em abono da verdade, Davi nunca deveria ter esperado que ela fosse o encaixe perfeito para o projeto, porque nunca antes Manuela tinha manifestado interesse por crianças ou por voluntariado, mas um cego escolhe o que quer ver.

Percebendo finalmente as intenções da mulher que ele tinha colocado do lado dele, mais uma vez Davi calou aquilo que o seu coração lhe dizia e colocou um sorriso falso na cara. Davi Reis continuava a não ter coragem para confessar para si mesmo que tinha errado.

Porque era isso que ele sempre fora: um cobarde. Um homem cobarde, um filho cobarde, um amante cobarde.

Por isso, mesmo ao nível do subconsciente, tinha sido de uma forma quase voluntária que Davi tinha vivido uma vida infernal durante todos aqueles anos, quase como um castigo auto-infligido pelo que tinha feito no passado.

Mesmo sentindo que o fosso que sempre existira entre ele e Manu só crescia de ano para ano e cada vez mais o separava de quem sempre tinha gostado dele, Davi já tinha desistido de se tentar libertar. O fato da ambição de Manuela destruir todos os projetos que tinham sido o sonho do ex-bom moço foi apenas mais um prego no caixão.

Do fracasso daqueles anos ele tinha retirado somente uma alegria: a sua filha Rosa. Apesar de ter que ser ao mesmo tempo pai e mãe da sua flor, era apenas por ela que ele não se deixava cair numa espiral de depressão.

E quando ele só via o mundo à sua volta completamente negro e o tempo se esticava e comprimia, sem ele se conseguir mexer e sair do sítio e uma dor lancinante tomava conta dele e o impelia a gritar para tentar tirar todo aquele aperto dentro de si, era aquela garotinha o abraçando que o segurava antes que ele fizesse algum dos disparates que passavam pela sua cabeça.

Cada vez mais ele precisava se escapar de si mesmo.

Tomar conta dos irmãos naquele fim de semana foi uma desculpa tão boa quanto qualquer outra para conseguir fugir durante uns dias de Manu.

Jonas e Verônica tinham decidido fazer umas férias românticas em Itália e Davi saltou sobre a oportunidade de voltar ao Rio por alguns dias, usando uma desculpa plausível para voltar a uma casa onde já tinha sido muito feliz.

Parecia que a mansão Marra se tinha tornado numa pequena cápsula do tempo. Era certo que aqui e ali se viam as pequenas mudanças que Verônica tinha feito ao longo dos anos, depois de se mudar para lá com Jonas e as crianças, mas muito permanecia igual.

A mesma disposição dos móveis, as mesmas cores nas paredes e Davi quase conseguia ouvir os risos do passado aprisionados dentro daqueles cômodos e as antigas palavras de amor sussurradas com um sotaque norte-americano.

Não tinha sido inocente a escolha daquela data para voltar ao Rio, levando Rosa consigo. Ele sabia que Megan e a sua filha Violet iriam estar na cidade e alojadas na mansão, por conta da entrega de um prêmio prestigiante por mais uma das iniciativas que a loira, enquanto empresária de sucesso no ramo da moda, tinha tido.

Se ainda no tempo em que Megan era casada com Arthur e residia no Rio, Davi mal a conseguia ver; depois que ela se tinha divorciado e mudado para Paris tinham sido migalhas o tempo que ele tinha conseguido do lado dela.

Ele a tentava acompanhar do modo que ela permitia e, vendo a imagem de uma Megan feliz estampada nas várias revistas que ele colecionava, Davi tentava também ser feliz por ela, mas crescia dentro dele um buraco negro que não o deixava sossegar.

Sentado no sofá da sala da mansão Marra, abrigado pela escuridão da noite enquanto jogava sem vontade a última versão de um conhecido videogame, ele esperava que a loira dos seus sonhos regressasse à casa depois da after-party da premiação, mesmo sabendo que o mais provável seria ela evitar retornar até ao nascer do sol para não ter de se cruzar com ele.

A cara que ela fez quando se deparou com ele na casa tinha sido muito mais de uma surpresa indesejada do que o sorriso de alegria iluminada que ela tinha muitos anos antes, quando ele lhe dirigia uma migalha de atenção.

A obscuridade da sala acabou repentinamente quando um pequeno furacão ligou rapidamente todas as luzes e saltou no sofá com um risinho travesso.

Piscando os olhos para se habituar à claridade, Davi se deixou inundar pelo sorriso que invariavelmente lhe brotava na cara quando via a menina.

Ele achava engraçado como Violet o fazia lembrar dele mesmo, enquanto criança, sempre curioso e querendo aprender mais, mas com a energia contagiante que era a marca registada de Megan. Tal como Rosa, também Violet lhe fazia bem, o puxando para a luz e o fazendo enxergar um mundo mais bonito.

Era mais um motivo para ele ter inveja de Arthur, por ser pai daquela garotinha que ele amava tanto quanto à própria filha.

– A mocinha não devia estar dormindo? – acabou perguntando sorrindo, despenteando a garota.

Jet lag.- explicou a espevitada, piscando o olho enquanto se aninhava do lado dele.

– E os seus tios e a sua prima?

– Dormindo. Boring.- concluiu ela dramaticamente, revirando os olhos.

Davi acabou gargalhando com a atuação e encetou um ataque de cócegas a Violet, que mostrou ser uma adversária à altura.

Temendo que a barulheira acordasse as outras crianças, o bom moço acabou com a brincadeira e apertou a sobrinha num abraço emocionado.

– Tio, você que jogar videogame? – acabou pedindo a criança, meio apreensiva com o estado emocional de Davi.

Que poderes de feitiçaria tinham aquelas mulheres da família Parker, para ele não lhe conseguir negar nada? Voltando a sorrir, Davi assentiu com a cabeça.

– Tudo bem. Um jogo só ou a sua mãe me mata.

Acabou por ser bem mais do que um jogo. Violet, apesar dos seus tenros nove anos, acabou por se mostrar uma jogadora bem acima do nível de Davi e ganhou facilmente cada partida.

Feliz em muito tempo, mesmo com a “frustração” de uma derrota, Davi acabou fazendo tanto barulho que em breve mais uma Marra se tinha juntado à festa.

Quando Rosa desceu as escadas de pijama, encontrando um pai que raramente via, sorrindo como se tivesse ganho na loteria, ela sorriu também e se foi sentar no colo de Davi, querendo fazer aquele bom momento durar para sempre.

O bom moço não teve coragem de mandar as crianças para a cama, já que ele próprio também se sentia uma e, mantendo Rosa no colo, a ajudando com os controlos, passaram as primas a disputar os jogos seguintes.

Davi percebeu quando Violet se deixou propositadamente perder em alguns jogos, para que Rosa tivesse também a oportunidade de vencer e, piscando o olho para a sobrinha, ele agradeceu aquele cuidado.

Um pigarrear suave veio interromper os jogadores entusiastas.

Todos diziam que, com a idade, Megan estava cada vez mais parecida com Pamela. Para Davi, Megan seria sempre apenas igual a si mesma.

Onde os outros viam a maturidade associada à maternidade que tinha substituído o espírito de party girl da bad girl, Davi via apenas o espírito livre que o tinha fascinado muitos anos antes e o colo onde ele tinha pousado muitas vezes a cabeça, descansando o emaranhado de ideias que nunca o abandonava, enquanto Megan lhe massageava as têmporas com o desvelo de uma fada.

Ela podia agora estar com o cabelo loiro mais curto e com uma maquilhagem e guarda-roupa mais suaves, mas era o mesmo olhar límpido e inocente que habitava aqueles olhos de borboleta.

Pousando o troféu de cristal transparente sobre um aparador, ela avançou para o trio que ocupava o sofá fazendo com que a luz incidisse em diversos ângulos sobre os brilhantes do vestido cor de sangue que lhe deixava os ombros nus, cuja cauda se projetava pelo chão.

Ainda nos tempos de namoro, Davi tinha visto várias vezes Megan usando uma indumentária similar, mas parecia que agora é que ele a estava realmente vendo. Onde antes ela tinha sido parte de uma imagem maior, agora ele só a conseguia ver como peça focal, com tudo em volta ficando desfocado.

E as palavras escorreram da boca do nerd, com uma dor muito verdadeira pelo passado perdido:

Hey, you. Não confiou no silly boy e veio tomar conta das crianças?

Não fosse o barulho das garotas que continuavam brincando, ter-se-ia instalado um silêncio sepulcral entre eles, mimetizando a distância física que a mãe de Violet fazia questão de manter.

Aquela seria a oportunidade perfeita para a resposta que Davi agonizava por ouvir, mas a loira apenas manteve os olhos atentos fitos no seu antigo amor, com a imobilidade de uma mulher de Lot transformada em estátua de sal amargo.

“Eu vim cuidar de você” seriam para sempre palavras pertencentes a uma era nunca esquecida, mas de um mundo extinto.

Habituada a aproveitar os desvelos de Megan como se os de uma mãe se tratassem, já Rosa a tinha vindo puxar pela mão com familiaridade:

– Tia, tenho fome.

A expressão da empresária de transfigurou de novo só que dessa vez foi um sorriso que surgiu na sua face e um par de olhos que brilhavam sempre que lidava com as crianças. Davi via de novo diante de si a bad girl a little bit maluquinha que tinha sido o xodó de toda uma geração de crianças da Plugar e de novo o nerd voltou a ter vontade de chorar.

Ok, my love. Eu preparo qualquer coisa. – respondeu a loira, esticando a mão também para a filha.

Só mesmo Megan para seguir para a cozinha com as crianças envergando um vestido de alta costura.

Hipnotizado, Davi seguiu atrás das três. Naquele momento, ele as teria seguido até ao fim do mundo.

Era agora uma Megan muito mais competente a que comandava uma cozinha. Com a destreza de quem sabe o que faz, em menos de nada já ela tinha feito panquecas e cortava eficientemente os morangos para as acompanhar.

Enquanto ela se mantinha debruçada sobre a tábua de cortar, manuseando rapidamente a faca, Davi se colocou atrás dela, fechando os olhos para melhor inspirar o odor que a americana emanava.

Os anos podiam passar, mas ela continuava com o mesmo cheiro a lírios frescos. Perdendo a razão, a boca de Davi se deixou cair sobre a pele a descoberto da loira. O bom moço estava reduzido a lábios sedentos que se lamentavam e que queriam beijar um ombro alvo seu antigo conhecido.

Please stop, Davi….

Apenas uma admoestação incisiva, murmurada para não assustar as crianças. Um coração partido pode ser colado de novo, mas as linhas das falhas e os pedaços em falta jamais podem ser consertados.

Era aquele o momento da despedida. Foi com lágrimas nos olhos que, minutos mais tarde, Megan abandonou o cômodo, levando as garotas pela mão.

Quando, uns dias depois, Manuela chegou em casa, já há muito tempo que Davi tinha dado o jantar para a filha e a tinha colocado na cama. Checando o celular para confirmar que ainda não lhe tinham respondido ao seu pedido para apresentar um novo projeto lucrativo para uma empresa norte-americana, a programadora suspirou enquanto atirou a bolsa no chão quando se apercebeu de um vulto na sala.

Sentado no sofá, com as luzes da sala desligadas, Davi já tinha as malas prontas no chão, ao seu lado.

Compreendendo o que ele queria fazer, mas desdenhando as repercussões daquilo, já que ela nunca tinha conseguido acreditar na vontade própria do próprio marido, Manuela se deixou cair displicentemente na poltrona em frente.

– É ela de novo, não é?

Engolindo a bola que o apertava na sua traqueia, Davi não queria acreditar em como a mulher que tinha sido a dele durante catorze anos era uma estranha. Como é que ela não conseguia perceber o sofrimento dele durante aqueles anos?

– Acabou, Manu… eu já não aguento mais… isso não é vida. Nem para mim, nem para você e muito menos para a Rosa.

Avaliando a situação como uma negociadora profissional, a programadora apenas teve um olhar gélido de desdém pelo marido:

– Tudo bem. Vai e faz o que você tem a fazer com a sua irmãzinha…eu sei que depois você volta. Você sempre volta para mim.

Seria ele assim um verme tão grande para Manu o ter em tão baixa consideração? E que monstro de mulher era aquela diante dele?

– Depois eu volto para pegar a Rosa. – comentou ele, se levantando e pegando as malas.

– A Rosa fica. – respondeu ela de uma forma grosseira.

Manuela seria uma jogadora até ao fim. Mesmo que tivesse que puxar pelo trunfo de usar a própria filha para ganhar aquele braço de ferro, a guerreira Maya nunca aceitaria perder Davi para Megan. O fato de ela considerar a própria filha como um empecilho para a sua vida era completamente secundário.

Às vezes, mais difícil do que alcançar a liberdade é saber o que fazer com ela.

Quando Davi se sentou ao volante do carro e o GPS lhe pediu para inserir as coordenadas do destino ele ficou petrificado, sem saber o que fazer.

Pegando o chaveiro com a torre Eiffel, Davi considerou que a vida estava cheia de pequenas ironias, mas já tinha resolvido o que fazer. Ironia foi ter de usar uma aplicação da Marra para comprar o bilhete de avião para Paris.

Consultando os horários, concluiu que ainda tinha quatro horas até à partida do voo. Menos mal, podia dirigir com calma e digerir aquilo que se preparava para fazer.

Antes de pousar o celular ainda tentou efetuar uma chamada, que acabou caindo na caixa-postal.

Hello! You’ve reached the voicemail of Megan Parker-Marra….”

Aquele era um assunto demasiado sério para ele deixar apenas uma mensagem. Aquela era uma voz cristalina que era um bálsamo para uma alma demasiado cansada. Megan merecia que eles conversassem cara a cara. Era o que ele faria quando aterrasse em Paris.

Suspirando, ele deu início à marcha do carro, quando começou a cair uma chuva que progressivamente engrossava.

E ele via do seu lado, sentada displicentemente no banco do passageiro, como tantas vezes antes num passado remoto nunca esquecido, o fantasma da Megan que tinha sido a dele. Ainda que agora com a translucidez de um filme antigo, ele a ouvia gargalhar enquanto ela trocava incessantemente de estação de rádio, cantarolando de qualquer maneira os hits da moda.

E tudo quanto antes tinham sido as pequenas manias da loira, que o enlouqueciam e o faziam se aborrecer sem motivo com ela, eram agora motivo para o fazer sorrir, sonhando com o dia em que iria ouvir de novo a bad girl entoando desafinada as suas covers muito próprias com ele próprio servindo de coro voluntário para a ajudar a assassinar aqueles temas musicais.

Quando o trânsito apertado o obrigou a abrandar, Davi espreitou pela janela, sorrindo ao se despedir da terra onde tinha vivido naqueles anos, mas já sonhando com o futuro.

Ele conseguia ver tudo diante de si como se fosse já realidade. Em breve o sol voltaria a brilhar. Megan o aceitaria de volta e eles, Rosa e Violet formariam uma família feliz.

Os projetos para o futuro voltaram a fluir livremente pela cabeça do nerd, bem como as imagens de um amanhã bem próximo. Ele se conseguia ver em família comendo crepes de chocolate em la Defense, enquanto besuntava Megan e as crianças com beijos achocolatados.

No final do ano ele iria passear de mão dada com Megan e as garotas pelos Campos Elísios enquanto admirariam as decorações de Natal. Eles iriam passar os domingos no museu da ciência e ele iria ensinar aquelas garotas a serem as nerds mais adoráveis de todos os tempos.

Davi acabou gargalhando com a ideia, mas como o trânsito tinha voltado a fluir, carregou com o pé no acelerador, voltando o seu pensamento para a condução.

Parecia que, com aquele final de tarde, todos os condutores tinham ficado com pressa de chegar nalgum lado e o bom moço teve que se esquivar quando um carro passou perigosamente perto do dele.

Manuela estava enganada quando o julgava. Daquela vez ele faria tudo diferente quanto mais não fosse por ter consciência de ser aquela a sua última oportunidade para ser feliz. Apenas Megan o conseguiria amar por quem ele era e ele tinha descoberto que sempre tinha amado aquela bad girl e que nunca mais conseguiria refazer a vida do lado de outra pessoa que não aquela loira inesquecível.

Abrindo um sorriso maior do que a vida, as imagens de um futuro risonho voltaram a invadi-lo. Ele, Megan e as garotas pedalando ao longo das margens do rio Sena e fazendo piqueniques debaixo da torre Eiffel. Madrugadas preguiçosas passadas fazendo amor com Megan junto a uma lareira acesa. Talvez ainda mais filhos. Uma casa cheia de amor como ele sempre tinha sonhado.

Davi nunca teve hipótese de ver o camião que avançou num sinal vermelho e embateu violentamente do lado do condutor do carro que o bom moço ocupava.

Quando o seu carro capotou pela pista escorregadia, se dobrando sobre si mesmo como uma peça de metal quente, no lugar de ver o passado da sua vida revelado diante dos seus olhos, Davi chorava pelo futuro perdido.

E o que se seguiu foram flashes de luzes, de sons e a última centelha de esperança se apagando dentro de um coração partido.

Os minutos se esticaram em séculos e se contorceram em segundos, enquanto a dança macabra entre os veículos se desenrolava. Levando pancada de todos os lados, Davi acabou por perder a consciência.

Quando o nerd voltou a si, já os socorristas trabalhavam contra o tempo, o tentando estabilizar. Sentindo a vida a fugir dele, o bom moço queria transmitir uma última mensagem. Elas precisavam saber. Principalmente Megan.

Se lhe restavam poucas palavras, ele as queria gastar dizendo a Megan que a amava. Ele sempre a amara.

E o pensamento da filha crescendo sem pai, abandonada pela mãe viva, lhe comprimiu ainda mais o peito fraturado. Teria ele dito as vezes suficientes para Rosa que a amava? E Violet, aquela garotinha que era a luz dos seus olhos, saberia ela o quanto ela tinha significado para ele?

Um coração partido não pode funcionar. Faltando-lhe a capacidade de verbalizar, restou a Davi rezar a um Deus misericordioso para que nenhuma delas ficasse desemparada e que, de uma forma ou de outra, elas acabassem se encontrando.

Inesperadamente ele se levantou com a agilidade de um adolescente quando um seu antigo conhecido se aproximou dele abanando a cauda e lambendo as mãos do seu antigo dono.

O há muito desaparecido Linus era de novo um jovem cachorro afetuoso, enviado de volta para guiar o seu perdido dono.

De olhos rasos por voltar a ver aquele antigo companheiro, falecido muitos anos atrás, Davi temia compreender o que se estava passando com ele e foi de uma forma relutante que o bom moço se virou para trás, ficando estarrecido ao ver o seu corpo estendido no asfalto, enquanto os socorristas tentavam em vão manobras de reanimação.

Impelido a avançar através do lençol de luz que tinha surgido diante dele, apenas sobrou a voz de Davi que ecoava pelo túnel do tempo perdido:

– Eu não quero ir.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.