Qual a sua flor favorita, Sieghart? – Mari

A mensagem piscava na tela do comunicador, e embora fosse comum que alguém me mandasse mensagem para perguntar se eu ainda estava vivo – a ironia daquilo sempre me rendia gargalhadas – o teor daquela em específico me deixou em alerta. Até mesmo Gaia, com seus olhos verdes penetrantes, pareceu surpresa.

Eu não me sentia confortável sobre o assunto “flores” por motivos óbvios. E mesmo que a torrente de lírios que eu expelia agora não passasse de algumas pétalas ocasionalmente, eu ainda não queria pensar sobre eles.

Após um mês de tratamento com Gaia, Periet e Thânatos em Xênia, eu não podia esperar menos. Os lírios em mim deixavam de ser um empecilho e se tornaram apenas um incômodo regular, que surgia principalmente nos momentos em que eu me permitia pensar em casa – porque sim, eu já considerava a Grand Chase a minha casa – e em como aquelas flores bonitas e macias (eu nunca entenderei o porquê as flores de Hanahaki sempre eram tão macias, mesmo sendo um prelúdio para morte) me forçaram a me isolar de tudo e todos, exceto de Lire.

Mas, por algum motivo que eu não entendia – ou não queria entender – pensar na elfa me fazia tossir mais flores, por vezes vindo até lírios inteiros.

Eu me sentia frustrado quando era o caso, e Gaia ria de como eu me recusava a aceitar o óbvio, insistindo em um ponto que já não era mais necessário. Eu sabia do que ela falava, mas não queria aceitar aquilo. Não precisava de mais daquilo, embora soubesse que o único jeito de voltar a respirar com tranquilidade fosse encarar de frente.

Mas bem, eu conseguiria lidar com aquilo, mais duas ou três semanas com os deuses me possibilitariam um retorno seguro e feliz para Serdin.

Infelizmente, eu não parecia ter esse tempo todo.

Encarando a pergunta, me lembrei de uma das muitas mensagens que Lire havia me mandado depois que peguei o barco até Ellia, e depois até Xênia. Ela considerava renovar o jardim, e possivelmente havia sido ela a pedir para que Mari me perguntasse aquilo. Seria bom ver minhas flores favoritas no jardim, e ajudar a cuidar delas, quando voltasse.

E talvez, apenas talvez, passar um mês na Floresta da Vida de Gaia estivesse me afetando e me fazendo ficar mais ligado à natureza do que eu deveria. Eu deveria ter buscado abrigo no deserto de Periet ou no Palácio de Thânatos, parando para pensar.

Tulipas azuis, Mari. Por que a pergunta? – Sieghart

Gaia riu, me perguntando se eu tinha alguma ideia do motivo. Eu esperava que fosse o jardim do Quartel General, porque minha mente realmente não conseguia formular alguma explicação para que Mari, justo ela, me perguntasse aquilo. Para a minha surpresa e a da deusa, Mari me respondeu quase imediatamente.

... Acho que precisamos de você aqui. É urgente. – Mari

Franzi as sobrancelhas, sem conseguir entender o motivo daquilo, e uma parte minha quis ignorar o pedido e continuar com os deuses, com o tratamento, uma vez que respirar ainda não tinha voltado a ser fácil.

Mas Gaia arregalou os olhos ao meu lado e no momento seguinte estávamos indo até o lugar onde Thânatos passava as tardes na floresta – os deuses tinham uma mania esquisita de escolher um dos domínios para passar um período de “férias” e o da Sintonia tinha decidido passar na floresta enquanto eu estivesse ali – para pedir que ele fizesse um portal que me mandasse para a Grand Chase.

Para a minha surpresa, ele concordou, mas exigiu que eu voltasse o mais breve possível para uma visita e uma partida de xadrez. Concordei com um sorriso e pulei no portal mágico, não sabendo o que esperar encontrar na Grand Chase.

Assim que meus pés tocaram o piso familiar da área de convivência do QG, porém, e eu pude escutar palavras desesperadas e um choro sofrido, eu entendi o que acontecia. E tudo ficou ainda mais claro quando entrei na área dos dormitórios e vi pétalas, pétalas e flores inteiras, com sangue, de tulipas azuis.

Era estranho ver minhas flores favoritas ali, representando para alguém a mesma coisa que os lírios brancos representavam para mim, e senti minha garganta queimar em vontade de tossir e expelir mais algumas flores ou pétalas quando cheguei ao aglomerado de pessoas no final do corredor e vi de quem elas vinham.

Ela ficava mais bonita com os cabelos longos soltos, não bagunçados daquele jeito e parecendo sujos, e principalmente, mais bonita sem as lágrimas que não deixavam de escorrer dos olhos verdes, os soluços acompanhados de um tosse forte que a forçava a cuspir as tulipas em tom escuro de azul.

Aquilo era inesperado.

Meu olhar buscou Mari sem que eu precisasse pensar, e ela parecia tão confusa e preocupada quanto eu – bom, parecia, eu ainda não conseguia distinguir todas as “expressões” dela. E foi somente por isso que eu tomei coragem e me espremi entre os membros da caçada, ouvindo um “quando foi que você voltou?” de uma ou outra pessoa que eu não estava interessado em identificar.

Chegar até Lire, porém, ia ser mais difícil do que deveria.

“Ela não precisa das suas palhaçadas agora, velhote” Arme não costumava ser ríspida daquele jeito comigo – embora sempre me tratasse mal, nunca fora dura assim – e aquilo me pegou de surpresa. Mari provavelmente não havia dito então sobre as flores para os outros, o que era um alívio e um problema ao mesmo tempo. Arme e Elesis não me deixariam chegar até a elfa, e eu precisava conversar com ela.

Felizmente, ou não, agir como um adolescente parecia ter me dado a primeira vantagem em anos, porque nenhuma das duas, tanto a maga quanto minha descendente, pareceu hesitar em me deixar passar no momento em que pedi, sério como não falava há tempos, que não era hora de ser emotiva. Apesar disso, Elesis me alertou que não fizesse ela chorar, e Arme acrescentou ainda que Lire precisava de alguém que entendesse o que era aquilo, e não alguém supostamente sem emoções como eu.

E com um timing perfeito, senti a queimação na base da garganta mais forte que antes e sem que pudesse impedir, um lírio escapava dos meus lábios, a quantidade de sangue quase nula agora que eu não estava sempre tossindo eles por aí. Bem, aquele lírio pareceu ser a resposta que as duas precisavam, e eu não estava me importando se o resto da caçado toda veria a flor branca e o jeito como eu a segurei com delicadeza e ainda me atrevi a entregar um sorriso sarcástico para as garotas, que me deixaram passar sem mais argumentos.

Lire me encarava com surpresa, e mesmo que uma parte de mim quisesse me sentar no chão ao seu lado e chorar com ela, pedindo desculpas pela situação enquanto não pensava num jeito de curá-la, essa vontade foi encoberta pela estranha sensação de leveza que me acalentou. De repente, respirar ficou mais fácil e eu olhei em dúvida para o lírio que eu segurava, até a verdade, aquela que Gaia insistia que eu deveria aceitar, me nocauteou.

Eu sabia o que tinha que fazer.

Fiz com que Lire se levantasse e a conduzi até o quarto que ela dividia com Elesis e Arme – o que nunca fez sentido para mim que elas dividissem espaço mesmo quando não fossem obrigadas pelas viagens – e, depois de vê-la se inclinar e tossir flores inteiras no chão, as mãos tocando a garganta pela dor que eu sabia bem qual era, estendi o lírio que segurava em sua direção, sorrindo de canto quando ela me olhou como se fosse louco.

“São suas favoritas, não são?” foi a minha explicação, e me doeu o coração ouvir como ela riu sem humor, nem mesmo parecendo a elfa calma e sensata que havia me ajudado a lidar com aquela mesma situação, e sua resposta me permitiu guiar o assunto diretamente para onde queria e precisava.

“São, mas essa não é minha, você sabe” Ela se referia ás flores destinadas à Mari que me forçaram a viajar para Xênia, e eu não sabia bem como dizer que aquela que eu segurava não era como as de antes.

“Então eu devo entender que essas são minhas, certo?” Indiquei as tulipas azuis no chão, e era curioso o jeito como Lire corou e chorou mais.

“Eu não queria...” ela murmurou, e eu não poderia entender mais. Não ser correspondido por alguém já era bem ruim, mas seu próprio corpo te fazer sofrer por aquilo era... cruel. Hanahaki era algo tão raro, que me surpreendia dois casos – ou seriam três? – no mesmo grupo de pessoas. “Eu... eu vou morrer!”

O choro dela era forte, doído, e eu sabia que aquele era um medo real dela. Sem tempo para superar, sem poder arriscar uma cirurgia, sem a “amizade” dos deuses como eu tinha... era questão de tempo até que as flores consumissem seus pulmões e ela não conseguisse mais respirar.

Bem, eu estava ali para resolver o problema.

Eu queria me aproximar dela e explicar que aquele desespero não era necessário e que ia ficar tudo bem. Mas aquelas palavras eram sempre superficiais demais e nunca consolavam ninguém.

Lire merecia mais do que frases automáticas e mal desenvolvidas e elaboradas.

Cheguei mais perto, não surpreso por ver quando ela se engasgou em meio ao choro e se inclinou para tossir mais flores. E mesmo que aquela conversa me trouxesse um gosto de melancolia, me abaixei para pegar uma das tulipas e me surpreendi, mais uma vez, com a maciez das pétalas.

Lire me encarou, e dessa vez eu sabia como agir. Estendi a flor em sua direção enquanto tentava sorrir do jeito que mais passasse confiança para ela.

Torcendo para a minha teoria estar certa, assisti o jeito como Lire segurou a flor e a encarou como se ela fosse o motivo de todos os seus problemas – eu duvidava que nem Cazeaje recebera um olhar tão torto da elfa.

Ela puxou o ar, respirando fundo, e eu sorri quando ela franziu as sobrancelhas e variou o olhar entre a tulipa em suas mãos e eu.

“É mais fácil de respirar, não é?” ela me encarava, me questionando como eu sabia o que estava acontecendo. Infelizmente, explicar aquilo era mais difícil do que era na prática.

Hanahaki desease era uma doença de merda. O tratamento era longo, e mesmo depois de superado aquele amor, as pétalas permaneciam por algum tempo. Era um verdadeiro inferno. Por isso os lírios vieram em menor intensidade por alguns dias depois que cheguei em Xênia.

Eu havia entendido de primeira a razão pela qual ainda tinha lírios mesmo depois de três semanas em Xênia, e mesmo que Gaia me olhasse com escárnio, eu me recusava a aceitar, a admitir que sabia que Lírio não era a flor favorita só de Mari, a me lembrar de como Lire tentava me convencer que eu deveria dar uma chance às flores por achar que eu poderia dar novo significado para as pétalas brancas se eu pensasse nela ao invés de Mari.

De certo modo, ela conseguira, embora não de um jeito agradável para mim.

“Seu lírio me ajudou a respirar, Lire.” Foi a minha resposta, e eu esperava que não precisasse me alongar mais, ainda mais porque precisava fazer Lire entender que aquele era um começo.

“Meu?” E como a elfa atenta que eu sabia que ela era, Lire percebera minhas palavras, e agora me encarava como se eu tivesse um chifre de unicórnio saindo do meio da minha testa.

“Você conseguiu, criança” Eu sorri, pegando outra tulipa e sentindo a textura. Eu realmente gostava daquelas flores. “Os lírios deixaram de ser por ela, Lire. Esse é seu. Tão seu quanto essas tulipas são minhas”

“O qu— Você não ‘tá falando sério” Era uma acusação, eu sabia pelo jeito como os olhos verdes brilhavam quando se fixaram nos meus, e nem mesmo me surpreendia a incredulidade e o nervosismo dela, principalmente vendo o jeito como ela esmagou a tulipa que segurava.

E talvez aquele gesto tenha me causado dor, pelo o que poderia significar.

“Eu sei que você não quer esse sentimento.” A verdade era a única coisa que eu podia oferecer agora. Era a única coisa que eu tinha. “E eu também não queria, Lire. Mas eu peço desculpas por isso, por te fazer sofrer tanto. Se eu soubesse, nunca teria deixado que você me ajudasse. Você não merece algo tão cruel.”

“Não faz diferença” O jeito como Lire abaixou a cabeça me machucou, os cabelos cobrindo os olhos e me impedindo de ver o verde deles. Mas me machucou ainda mais quando vi as lágrimas rolando pelas bochechas e os ombros tremerem, acompanhando um soluço que tentou ser refreado pelo lábio sendo mordido com força. “Eu vou morrer de qualquer jeito. Se eu tenho essas porcarias dentro de mim, é porque não tem jeito.”

“Me ofende que chame minhas flores de porcaria” a tentativa de brincadeira fez efeito, e ela sorriu, um sorriso pequeno, mas já era alguma coisa. “Lire, eu entendo que pense assim, mas isso não é verdade”

Eu esperava que ela me respondesse alguma coisa, mas infelizmente a única resposta que tive foi ter que vê-la expelindo mais tulipas. Eu não entendia por que meu peito se apertava em algo quente quando via a cena.

“Por que, se fosse verdade...” continuei diante de que ela apenas me encarava com desânimo. Alguém como Lire não merecia tanta dor, não merecia chorar, e se ela me permitisse, eu adoraria tirar aquelas flores de si. Mas não do jeito como os mortais pensavam; eu precisava tirar as flores dali do jeito como Hanahaki exigia: com sentimentos correspondidos. “Esses lírios que têm me assombrado nas últimas semanas não existiriam, nem essas tulipas. Eu demorei para entender, desculpa. Mas Hanahaki não sabe do que o outro quer; ela sabe do que você pensa. E eu achei que você nunca poderia retribuir meus sentimentos.”

Os olhos verdes estavam nos meus mais uma vez, e eu conseguia sentir como ela perscrutava meu rosto, minha expressão atrás de algo que indicasse que eu estava mentindo. Sua expressão de desconfiança me fez sorrir genuinamente, e se dúvidas me deixou ainda mais alegre quando a vi abaixar a cabeça mais uma vez, tentando disfarçar o rubor que as orelhas pontudas deixavam bem a mostra.

Mais lágrimas caíram no chão, e quase me desesperei por um momento, antes de vê-la erguer o rosto, o sorriso que eu havia aprendido a apreciar acompanhando o brilho nos olhos bonitos.

E mesmo que me faltasse o costume ao contato físico, não fiquei tenso quando ela veio e me abraçou, me fazendo perder o equilíbrio por ter que me abaixar para retribuir o gesto decentemente.

E a cada segundo que passávamos abraçados, era mais fácil de respirar, e quando Lire finalmente parou de chorar, estávamos sentados no chão, ainda abraçados e ela já sorria abertamente quando olhou nos meus olhos.

E eu saberia que aquele dia tinha valido cada segundo só pelo sorriso dela, mesmo se, no final do dia quando Elesis e Arme finalmente vieram nos interrogar, já não fosse infinitamente mais fácil de respirar para nós dois, quase como se aquelas flores nunca tivessem estado em nós.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.