Dor e Déjà Vu

Depois de horas sendo stalkeado, com aquele olha penetrante o encarando pelas costas, ele desistiu de despista – la.

Em um dos cantos da ala superior da escola, ele esperou que ela se aproximasse.

— Uau, você roda bem rápido com essa coisa – Disse Star.

Em fato, a cadeira de rodas não era o problema.

O toco das pernas sim.

A chuva torrencial naquele momento trazia consigo o frio. Onde deveria haver duas pernas, agora era só uma dor nauseante e incômoda, graças a mudança do clima.

As cicatrizes no rosto começam a incomodar também.

Mas ele já estava acostumado. Ainda que fosse algo que ninguém devesse ter que se acostumar.

— Quanto tempo você levou pra notar que eu estava te seguindo?

— Eu não posso andar, garota – Ele respondeu – Observar é tudo o que eu posso fazer, agora. O que você quer?

— Quero almoçar com você.

O rapaz levantou o rosto e olhou nos olhos de Star.

Ali estava ela. Linda, loira, com o cabelo impecável, mantido arrumado por uma pequena tiara de chifrinhos.

Convidando o garoto aleijado, que a maioria das outras pessoas evitavam olhar (pela repugnância nas feridas), para almoçar.

No entanto, ele não respondeu ao pedido. Apenas sacou do bolso um frasco de comprimidos.

— Eu não como, só preciso disso.

Fazendo força para abrir o lacre – força até demais – o frasco rolou por entres seus dedos, direto para o chão.

Sem poder alcançar, o rapaz suspirou profundamente.

Star se aproximou, pegou o objeto, retirou a tampa e o devolveu.

Quando ele estendeu as mãos para pegar os comprimidos, ela notou que as cicatrizes dele também estavam nos braços e, provavelmente, pelo resto do corpo.

— O que aconteceu com você?

Marco Diaz suspirou profundamente, uma vez mais.

— Se eu te contar, você para de me perseguir?

— Se me contar, eu paro de perguntar.

Ele passou a mão pelo rosto. Star era como um cão que não largava o osso.

Não sairia dali sem a resposta.

— Tudo bem – Ele respondeu – Eu conto.

....

— Você não é a primeira alienígena que já cruzou por aqui – Ele começou.

— Como sabe que eu sou alienígena?

— Os outros estudantes não chegam aqui voando numa águia gigante de duas cabeças.

— Bem colocado. Continua.

— Por um tempo, moramos juntos. Fomos felizes, nesse tempo.

Foi curto, sabe? Mas valeu a pena.

— Foi ela que fez isso com você?

No meio da dor, ele esboçou um sorriso no canto da boca.

— Fiz isso comigo mesmo.

.....

— Eu a amava muito. Mas ela era importante, uma princesa.

E tinha inimigos.

Muitos deles.

Marco deu uma pausa, para escolher as melhores palavras para o que diria a seguir.

— Um dia, um deles me sequestrou.

Me levou para uma masmorra, e a cercou de.... Coisas indescritíveis.

Ele sabia que ela iria correndo por mim.... ELE SABIA!

Por um momento, ele deixou o sentimento tomar conta de si, culminando num grito e num soco na cadeira de rodas.

Engolindo mais dois comprimidos (já tinha jogado outros quatro, goela a baixo), ele retomou a calma inicial.

— Desculpa, eu não devia ter gritado.

— Tá tudo bem, eu entendo.

Star segurou a mão de Marco. Mas não com aversão, ou por pena.

Ela queria que ele soubesse que havia outro ser humano ali, escutando cada palavra.

Alguém que realmente se importava.

— Ela me tirou de lá. Mas pagou caro por isso.

Pernas amputadas, rosto desfigurado.

— Meu Deus....

— Mas ela não merecia ficar assim.... Então eu tive que fazer alguma coisa.

Qualquer coisa!

Então eu comecei a pesquisar. Tinha que ter algum feitiço ou ritual que pudesse desfazer os machucados.... E eu encontrei.

Ele passou a mão no queixo, por um breve momento.

— Engraçado, procurei tanto, mas foi no próprio livro dela que eu encontrei.

Uma passagem. Um feitiço que daria certo.

— Um feitiço de cura.

— Um feitiço de troca. Eu poderia tirar as enfermidades dela. E as memórias também.

E passar tudo pra mim....

Foi nesse instante que Star largou as mãos dele.

Com as palavras, o choque foi grande.

— Ela não permitiria isso! Jamais!

— Ela estava em coma, morrendo. Não teve como dizer “não”.

— Por que.... Por que você fez isso?!

Marco baixou o rosto, deixando que as mechas de cabelo lhe cobrissem os olhos.

Dali em diante, não conseguiria mais encara – la.

— Porque isso é que é amar.

Sofrer muito, no lugar daqueles que você ama, para que eles tenham uma chance, mesmo que remota, de serem felizes.

Por isso. E agora você já sabe. Feliz?

Era muito para Star assimilar de uma vez, ainda que fizesse um esforço para tanto.

Ela levou um tempo – um bom tempo – para responder.

....

— Fofo.... Estúpido.... Burrice....

Então você acha que isso é amar?! Deixar que ela viva feliz e alegre, enquanto você se enche de analgésicos para sobreviver?!

— Me sistema nervoso já era, garota. Não dá para impedir a dor. Isso são antidepressivos....

Star deu um tapa forte no frasco, cujo conteúdo rolou por todo o chão.

— Muito caros, por sinal – Marco completou.

— E se eu dissesse que ela se lembra de você? O que você diria?

Ensopada de lágrimas, ela se ajoelhou perto de Marco. Forçou contato.

Ele tentava desviar, mas ela segurou o rosto dele com as duas mãos.

— Olha pra mim....

— Não posso....

— OLHA PRA MIM!

Ele queria esconder as próprias lágrimas.

Sem sucesso, devido a princesa.

— E se eu te dissesse que ela lembra de você, nos sonhos?

Que ela se lembra de você a noite. Que ela veio pra cá, só para te reencontrar....

— Eu diria que ela tem que esquecer....

Não sou importante. Ela é...

— Ela não acha isso! EU não acho isso!

Não devia ter feito o feitiço.... Eu preferia ter morrido no seu lugar do que ter que te ver assim....

— POR ISSO EU FIZ!!!!!!!!

EXATAMENTE POR ISSO!!!

Finas lágrimas vermelhas caíam dos olhos de Marco Diaz, mas ele não parou de falar.

— Eu não sou ninguém.... O mundo precisa de você....

Você tem que viver....

— Não assim.... Como eu posso viver sabendo que você vai morrer por mim?

— E é por isso que você tem que esquecer....

— Eu não posso....

— Não diz isso....

— Eu te amo, eu não posso....

— PARA DE FALAR!!!!!

Marco a empurrou para longe, mas sem forças, perdeu o equilíbrio e caiu da própria cadeira.

Star correu para ajuda – lo, mas ele acenou para que ela não se aproximasse.

Ele se arrastou de volta e com muito esforço, conseguiu se sentar.

A princesa só pôde assistir enquanto ele se afastava.

— Fique longe de mim. Não se aproxime. Nunca mais.

Star enxugou o choro com a manga.

— Não importa quanto leve. Vou te curar. Eu te prometo.

Já longe, sem olhar para trás, ele respondeu:

— Não o faça. Eu só tenho mais uns seis meses.

Seja feliz. Já é o bastante.

Depois que ele cruzou o corredor, Star, sem forças, tombou de joelhos no chão.

....

— Ei, a garota nova está te procurando.

Marco se virou para responder Janna. Era uma das poucas pessoas que ainda falavam com ele.

Pelo menos, sem sentir nojo das cicatrizes.

— Eu sei. Preciso ficar na sua casa, por um tempo.

— Se quer perder a virgindade antes da formatura, tá jogando uma boa oportunidade fora. Ela está desesperada, atrás de você.

— Ah, é claro, isso realmente tem chance de acontecer.

Provavelmente não vou estar vivo até lá, de qualquer forma.

— Seu otimismo é comovente.

— Presta atenção. Ela vai direto pra minha casa, então preciso ficar na sua.

— Vai ficar se escondendo, agora? Quem é ela, afinal?

Ele revirou os olhos.

— Sua melhor amiga, na qual eu usei ocultismo para passar os machucados dela pra mim.

— Ah, tá. Faz sentido. E eu não lembro disso, porque....

— Porque eu usei um livro de feitiços e muito sangue de unicórnio, num ritual ancestral, que incluía apagar a memória de todos.

Daí ninguém se lembraria de nada. Ninguém sentiria culpa ou saudades.

E ela poderia ser feliz, sem se lembrar, enquanto eu morro da forma mais excruciante possível, no lugar dela.

— Você teve muito tempo para imaginar isso, não teve?

Marco deu de ombros.

— Taí. Tive sim. Matou a pau.

— Sério? Minha melhor amiga? Ela é muito alto-astral pro meu gosto.

De verdade, quem ela é?

— É o amor da minha vida. Que eu tive que deixar.

—Por que?

Ele jogou mais dois antidepressivos na garganta, à seco.

— Vai por mim, não acreditaria se eu te contasse.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.