Don't cross the line

Não me exija demais


Fama. Naquele caso era fama, mas poderia ter sido outra coisa, como dinheiro, contatos, uma vida confortável, luxo, vingança, ódio, despeito ou qualquer intenção que florescesse sentimentos dúbios. Em outras palavras, não é preciso muito: bastam os desejos mais puros e certa falta de escrúpulos para realizá-los, a combinação perfeita para atrair criaturas infames, vulgarmente conhecidas como demônios.

A partir daí é como um acordo, uma negociação simples: a pessoa diz o que quer e o demônio lhe diz o que pegará em troca, normalmente, a alma do indivíduo. Mas vale a pena. Certo, tudo vale a pena se é para realizar um sonho; pelo menos, é o que dizem. Os mais espertos colocam bons preços em suas almas, impõem limites, sabem negociar. Outros têm apenas um objetivo em mente e nada mais importa. Takanori, talvez, estivesse perdido no meio dos dois extremos, quase pendendo para o segundo grupo.

Takanori Matsumoto era um profícuo fashionista com tino para criação de joias. Era desses que almejam chegar nos postos mais altos do mundo da moda e sabem fazer contatos como ninguém quando investem nisso. Apesar da baixa estatura, tinha boa aparência e era deveras sociável, coisas das quais se valia em cada um dos cantos por onde passava, sempre em busca de relações mais e mais elevadas que pudessem levá-lo ao seu lugar dos sonhos. Nenhum problema até aí, exceto, talvez, seu jeito carismático que não passava de uma grande farsa e o loirinho se ainda aproveitava dessa mesma sociabilidade para derrubar seus potenciais rivais.

Para alguém ainda na faculdade, era um deleite se ver tão bem cotado, descrito como um grande nome, alguém prestes a trilhar uma carreira incrível. Porém, Takanori era, acima de tudo, alguém insatisfeito. Gostava de si mesmo mais do que qualquer coisa ou pessoa, e ser elogiado daquela forma o inflava, mas nunca era o suficiente. Precisava de mais. Mais elogios, mais dinheiro, mais fama, mais gente o enaltecendo, mais. E fazia por receber cada uma dessas coisas. Naturalmente, depois de formado, as altas expectativas acompanharam cobranças de igual nível, então, a despeito da certeza de sua capacidade, Takanori decidiu trilhar o caminho que lhe pareceu mais fácil: derrubar qualquer ameaça. Deu certo durante algum tempo, até que apareceu um tal Yuri que foi capaz de lhe tirar o sono. Yuri era bom no que fazia, tanto quanto Takanori o era. E já tinha certa fama, conquistada a duras penas por meio da criação de sapatos. Inclusive, o Matsumoto não entendia porque alguém que já tinha reconhecimento em um trabalho decidiu que precisava começar a fazer o seu trabalho. E lhe tirar o sono.

Certa vez, o Matsumoto esbravejava e se segurava para não quebrar tudo no bar que frequentava com seu único amigo, Kouyou Takashima, dentista e amigo de infância do jovem fashionista, a despeito de sua personalidade horrível. Takanori estava furioso por saber que disputaria com o tal Yuri por uma premiação qualquer, “um absurdo”, na opinião do baixinho. Não só isso, tinha uma jovem, ainda estudante, começando a atrair os holofotes para si, como se insinuasse que já estava na hora de os mais velhos "passarem o bastão". A raiva era tanta que quando se deu conta tinha esmigalhado o copo que segurava na mão, jogando bebida e cacos de vidro por todo lado, inclusive, um deles se enfiando com gosto na palma do baixinho.

Foi enquanto Kouyou socorria o amigo que ele apareceu. Com aquele olhar cínico e entediado, estranhamente familiar ao Matsumoto. Tinha certeza de já ter visto aquele homem mais de uma vez. Já tinha se percebido observado por aquele homem. E era sempre daquela forma: com um olhar estranhamente cínico e entediado, como se já tivesse visto aquela cena infinitas vezes e não pudesse dar a ela mais do que um risinho soprado, o mais puro deboche. Se pudesse falar alguma coisa, Takanori diria que ele estava até mesmo com aquele arquear de sobrancelha que se dá quando a suposta pena sentida encobre o escárnio; contudo, a máscara que aquele homem usava no rosto impedia que vissem a maior parte dele. O pouco que viam dos olhos, inclusive, era o que a franja loira permitia quando se mexia. Mas ainda sem ver seus olhos, Takanori sabia bem que aquele olhar cínico estava lá.

Da mesma forma que apareceu repentinamente para prestar socorro e rir da miséria alheia, o desconhecido desapareceu, deixando no Matsumoto apenas uma estranha sensação de que se encontrariam novamente. Dito e feito: o encontro seguinte não teve a companhia de Kouyou, o que provavelmente selou a perdição de Takanori. Se Kouyou estivesse presente, talvez, certa proposta não seria feita; e, ainda que fosse, talvez, Takanori não a aceitasse, já que o Takashima sofria do mal de ser um homem sensato, por isso, era quase a consciência do Matsumoto. Contudo, não foi o que aconteceu naquela noite. Kouyou Takashima não estava presente e Takanori Matsumoto não era do tipo que hesitava quando o assunto era chegar onde queria.

Naquela ocasião, valendo-se do fato de estar sozinho naquele elevador, perdia o controle para a raiva, praguejando todo ser vivente de quem se lembrasse. Foi quando aquele homem se virou, sentado no banco do ascensorista. Aquele mesmo sorrisinho cínico fez Takanori lembrar-se de que o vira também na faculdade, incontáveis vezes, além de inúmeros outros lugares. Estava sempre por perto, como se o sondasse. Precisava apontar aquilo. Não era possível que estivesse sendo seguido por todos aqueles anos sem perceber.

Ryo Suzuki – como o demônio se apresentou – pareceu jubilar-se com o fato de Takanori se lembrar de suas aparições. Não foi mera coincidência, de fato. Cada uma das vezes em que foi visto, estava simplesmente observando o baixinho, sentindo sua alma, como se rodeasse o fogão enquanto algo delicioso era cozido. Nunca estava pronto, nunca chegava o momento exato, então, o loiro estranho decidiu ser um pouco mais incisivo e se aproximar de uma vez. O momento não poderia ser mais oportuno, considerando os arroubos de fúria cada vez mais frequentes do fashionista.

Apesar do tédio e da improbabilidade do que dizia ser real, Takanori não duvidou por um segundo sequer do rapaz diante de si. Havia algo de incomum em torno do Suzuki. Algo que poderia ser tudo, menos humano. E nisso os olhos de Takanori não se enganavam. Observou o homem mascarado com uma frieza ímpar, como se analisasse uma proposta deveras importante. De fato o fazia. O tal demônio lhe propunha realizar seu desejo, mas o preço era óbvio e, para o estilista, pareceu alto demais. Uma alma não deveria ser uma coisa barata, afinal. Ainda, precisaria estipular algumas condições: nenhum de seus rivais seria morto como consequência direta daquele acordo – até porque, a morte seria a forma mais fácil de alçá-los a uma fama implacável, inclusive ele próprio. Poderia fazê-los sofrer, se achasse pertinente, mas matar não era uma opção. A outra condição, obviamente, era preservar sua própria vida. Queria aproveitar o sucesso em vida, não apenas deixar seu legado. Aproveitaria sua existência e morreria no momento certo, o que aconteceria com sua alma depois de morrer não importava. Estando Ryo de acordo com aqueles termos, o restante era indiferente. E após minutos naquele elevador parado, que mais pareceram horas, ambos selaram o acordo de forma não tão honrosa – ocasião em que Takanori soube o nome real daquele com quem tratava – e deixaram a caixa metálica como bons amigos.

Acontece que Ryo Suzuki, em sua pacata vida como humano, aproveitava também para escarnecer daquele tipo de existência. Vivia seu "disfarce" como um exímio marketeiro, um verdadeiro demônio do universo publicitário. Gostava de jogar com os sonhos e com os desejos das pessoas, como se tudo fosse uma grande brincadeira, e o consumo era uma forma perfeita de se divertir com isso. Convencer as pessoas a consumir coisas das quais não precisavam era fácil – e isso incluía as criações do Matsumoto. Apesar de não se aplicar nesse caso, achava que se tornava ainda mais divertido quando as coisas saíam do controle e as pobres almas se agitavam. Como expressou diretamente ao baixinho, achava precioso como as pequenas coisas do dia a dia inspiravam tantos sentimentos negativos nos humanos. Eram existências minúsculas.

Obviamente, morando com o Suzuki, Takanori não só observava o comportamento do demônio, como também as especulações sobre o relacionamento entre ambos. Como dizer ao mundo que seu suposto namorado, na verdade, era um demônio apenas esperando pelo momento de levar sua alma? Ou melhor, trabalhando para que sua alma estivesse no ponto certo para tomá-la. Claro que não diria algo assim, mas se divertia com os cenários criados; só não mais do que com o exponencial crescimento de sua grife.

Não somente, era estranho ao Matsumoto ter alguém em sua casa, praticamente compartilhando de sua vida. A única pessoa de quem era realmente próximo em toda sua existência era o Takashima; outro indivíduo ocupando, inclusive, as lacunas que não poderiam ser preenchidas por Kouyou, era estranho demais. Egoísta como era, foi difícil se acostumar com alguém que estivesse tão perto sem bajulá-lo. Até mesmo seu cachorro, Koron, estranhou a aparição repentina. Algo que fez Takanori pensar no fato de ter feito um acordo com o Suzuki por meses a fio.

Contudo, já fazia mais de um par de anos desde que selaram tal acordo e, como qualquer humano, Takanori também se acostumou com aquela criatura. No fim das contas, até mesmo para ele era conveniente ter alguém – além de seu amigo – com quem não precisasse esconder sua verdadeira natureza. Dito isso, basta saber que durante aquele período em que se familiarizava com a criatura, a carreira de Takanori alavancou ainda mais, como prometido. E estando a "namorar" com um demônio, o Matsumoto também passou a colocar o pouco que restava de moral de lado, afinal, Ryo Suzuki sempre tinha alguma feita interessante para lhe contar. Como naquela noite, apenas mais uma noite comum na vida dos dois.

Takanori entrou em casa resmungando de forma até mesmo manhosa naquele começo de noite. Queria ter prolongado mais seu tempo na rua, indo para algum outro lugar, ou até mesmo jantando fora, mas Ryo decidiu repentinamente que era melhor que voltassem. Também não abriu qualquer espaço para contestação.

— Não entendi por que você fez tanta questão de voltar logo. — Resmungou, se jogando no sofá. Koron dormia, como pode notar tão logo ao entrar em casa, de forma que se sentiu como se tivesse saído do evento badalado direto para um vórtex tedioso. Notou o outro loiro deixar a cozinha munido de um sorvete de casquinha. Um demônio viciado em doces… parecia brincadeira. — Eu espero que você tenha alguma ideia. — Murmurou, falseando desinteresse quando o Suzuki sentou ao seu lado. Takanori ainda pegou o celular para consultar qualquer coisa e disfarçar o tédio que sentia. Nem mesmo a internet parecia funcionar direito.

Seriam capazes de permanecer daquela forma por horas, se não fosse o fato de o Matsumoto estar tão contrariado por ter sua noite encurtada. — Ryo… O que vamos fazer agora a noite, hein? — Inquiriu, voltando a encarar o outro após minutos de silêncio. — Poderíamos sair e jantar em algum lugar? — Sugeriu, dando um sorrisinho travesso. Não que tivesse algo especial nisso. Com o passar do tempo, os dois também abraçaram a narrativa de serem um casal e, a partir daí, viviam como tal. Eram, inclusive, sem reservas: qualquer um que tivesse o mínimo contato com um deles sabia que Takanori e Ryo namoravam, independente do que o mundo pudesse querer dizer sobre um casal composto por dois homens ou mesmo sobre o jeito do Suzuki. — Tem esse restaurante que eu… — Calou-se quando o outro colocou o dedo em seus lábios, suplicando que ficasse quieto ao mesmo tempo em que terminava seu sorvete.

— Digamos que baguncei um pouco o sistema de telefonia e internet. — Espreguiçou-se, recostando melhor no sofá. — Não recomendo sair agora.

Takanori estreitou os olhos, entendendo, finalmente, o porquê do Suzuki insistir em voltar cedo, além do caminho diferente que fizeram. — Por que raios você fez isso?

— Estava entediado.

— Tá, e daí? — Perguntou incrédulo. Ryo fazia coisas deveras estapafúrdias quando tomado pelo tédio, contudo, era fato que sempre se surpreendia com isso.

— Ah… — Sorriu em escárnio. — Você não entenderia a satisfação que é uma cidade inteira com problemas tão minúsculos capazes de causar tanta raiva e ressentimento. E isso vai crescendo, e as pessoas se corrompendo… — Espreguiçou-se novamente, como quem acaba de acordar de um cochilo revitalizante. — Além disso, é finalmente fruto de um trabalho de anos atrás. — Riu sozinho. — Uma pena que você seja limitado demais para entender isso, acho que gostaria.

— Está dizendo que destruiu a internet da cidade para todo mundo espumar de ódio? Sem contar os acidentes que vão acontecer… É capaz de morrer gente! Isso não é baixo? — Perguntou, julgando o Suzuki, embora tivesse também um sorrisinho cínico nos lábios.

— Não é o meu trabalho? — Ryo debochou, apoiando o queixo no próprio punho.

— E depois as almas e o ressentimento vão todos para você? — Perguntou. Apesar do tempo de convivência, não entendia muito bem do que consistia o trabalho de um demônio. Já era deveras surreal conviver com um e ter provas de que falava a verdade, pensar que haviam ainda questões burocráticas era no mínimo curioso.

— Sim e não. — Deu de ombros. — É um pouco mais complexo do que isso, já disse. Contudo, tenho minha recompensa por fazer um bom trabalho. — Esclareceu.

— Parece divertido. — Takanori concordou também com a cabeça, buscando apoio no encosto do sofá.

— Eu disse. Você com certeza gostaria.

— Mas e agora? — O Matsumoto perguntou, encarando o outro com olhar atrevido.

— Agora o quê?

— Agora EU estou entediado. — Afirmou, julgando o Suzuki como se quisesse insinuar que era o responsável pela sensação. — O que você vai fazer para me tirar do tédio?

— Não me lembro de ter que suprir seu tédio como parte do nosso acordo. — Provocou, esperando pela resposta de Takanori. Sabia bem que ele odiava ficar entediado, tanto quanto se sentir contrariado. Naquele momento, carregava duas emoções com as quais não sabia lidar, então, Ryo poderia esperar algo, no mínimo, divertido.

Takanori o encarou por um breve instante, o olhar se tornando pesado como se Ryo fosse a mais desprezível das criaturas. — Sem graça! Você é completamente sem graça! — Revirou os olhos, voltando a se acomodar na outra ponta do sofá, longe do Suzuki. — É isso, acho que nós deveríamos encerrar esse contrato por aqui. — Sugeriu em deboche.

— É isso o que você quer? Sabe que terá que me pagar. — Não era a primeira vez que Takanori sugeria que desfizessem o acordo, no entanto, Ryo gostava de lembrá-lo de que não era algo tão simples.

— Sim. Mas você não realizou o meu maior pedido, não pode levar minha alma ainda. — Retrucou algo óbvio. Sem dúvidas estava caminhando para seu objetivo, cada vez mais perto, porém, sentia que ainda não tinha "chegado lá".

— De fato, embora de certo modo, sim. — Ryo sorriu, tendo seu momento de deslizar pelo sofá até que estivesse próximo do Matsumoto, de quem segurou o rosto com as duas mãos, analisando. — Destarte, posso e vou levar algo que compense o feito até aqui. Eu poderia até deixar que você escolhesse, todavia, você é tão cretino que tentaria me passar a perna. Talvez, eu deva levar esses olhos, tão bonitos… — Sugeriu, deslizando os polegares pelas pálpebras inferiores do outro, as unhas arranhando levemente a área como se insinuassem que os globos seriam arrancados ali mesmo.

— Você gosta tanto assim dos meus olhos, é? — Takanori sorriu convencido, piscando demoradamente. Não era a primeira vez que Ryo abordava o tópico e, egocentrado como era, Takanori se agradava disso.

— De fato, são muito bonitos. Não é sempre que se vê por aí um humano com um par de olhos amarelos. — Concordou, sem qualquer emoção na fala e, ao mesmo tempo, sem desviar o olhar do outro. — Mas este humano tem no rosto inteiro um belo desenho, deve ser para distrair do caráter podre. — Acrescentou, esboçando um sorriso de canto.

— Não consegue me elogiar sem me ofender no instante seguinte? Eu também me ofendo! — O Matsumoto resmungou de cenho franzido, ainda com o rosto preso entre as mãos do demônio.

— Você só se ofende, Takanori. — Corrigiu. — Ainda que eu o elogiasse, não estaria satisfeito, pois quer sempre mais e mais, nunca é o bastante. Contudo, sabe que não presto elogios vãos. — Pontuou, deslizando a mão pelo pescoço alheio. — Além do mais, a falha de caráter, a corrupção em sua alma são, provavelmente, suas características que mais me interessam, a despeito do belo rosto. — Constatou o óbvio, desta vez, passando o polegar pelos lábios cheios do outro.

O Matsumoto acabou deixando escapar um sorriso largo. O maldito era convincente. — Demônio! — Provocou.

— Tanto sabe disso que assinou um contrato. — O Suzuki deu de ombros, soltando o menor. — Ainda quer rasgá-lo? — Perguntou após se recostar novamente. Encarava as unhas sem muito interesse.

— E perder a conveniência de ter você por perto? Contanto que você cumpra sua parte, eu não me importo com mais nada. — Desdenhou, se inclinando na direção de Ryo o suficiente para voltar a encará-lo de perto.

Em geral, Takanori era também um ótimo mentiroso. Até porque essa era a única forma de disfarçar seu temperamento horrível. Aprendeu a emular uma doçura inexistente ainda criança e, com isso, a contar uma infinidade de mentiras sem se comprometer. Deste modo, era possível dizer que, na verdade, se importava com seu cachorro e até mesmo com Kouyou. Essas talvez fossem as únicas coisas com as quais conseguia se importar além de si mesmo, mas jamais admitiria. Da mesma forma, jamais admitiria que havia algo mais com o passara a se importar de uma forma estranha. Algo que estava bem diante de si, encarando-o com aquele olhar castanho avermelhado perdido em algum lugar entre o tédio e o cinismo. Odiava aquele olhar na mesma medida em que não conseguia desviar dele.

Afastou de leve a franja do Suzuki, rindo soprado com todo o cinismo existente em si. — Tenho que concordar quando diz que meu rosto é bonito. — Começou, alargando o sorriso diante da encarada que recebeu do outro. — Mas não sei se posso dizer o mesmo do seu, isso é horrível. — Constatou pela enésima vez, observando a marca que Ryo tinha ao redor dos olhos, repetindo a ação de passar os dedos pela região. Sabia ter qualquer relação com a forma original daquela criatura. Forma essa que Ryo se recusava a mostrar, alegando que enlouqueceria. Aquilo lhe inspirava uma curiosidade ímpar, então, sempre o provocava.

— Tem falado demais por hoje, Takanori. Isso me faz querer calá-lo. — O demônio se manifestou, virando-se mais na direção do Matsumoto.

— Desde quando você me avisa que vai fazê-lo? — Indagou, desafiador.

— Estou lhe dando chance de se aquietar. — Aconselhou, recebendo não mais do que um sorriso de escárnio por parte do fashionista. Takanori, que mantinha a mão no rosto do Suzuki, ainda afagou levemente sua bochecha, franzindo o cenho em falsa preocupação.

— Oh Rei- — Começou, contudo, a menção da primeira sílaba foi o suficiente para que o loiro o calasse, primeiro tapando os lábios do Matsumoto com os seus próprios. Na medida que arrastou os lábios da mandíbula até o pescoço do baixinho, revelou riscos escurecidos em toda a volta do pescoço, o que, depois de um ou dois gemidos sôfregos, elucidou a Takanori que estava novamente sem voz. Punição. Ou pelo menos, parte do contrato.

Até mesmo os demônios têm uma e outra coisa sobre a qual não querem falar. Para Ryo, não era conveniente que Takanori falasse seu nome a torto e a direito, ainda mais se fosse apenas para provocá-lo. Um nome é, também, uma finalidade. E Ryo não queria ver a sua entre aqueles lábios tão bonitos e corrompidos.

O baixinho, por sua vez, riu sem emitir qualquer som. Quase odiava quando Ryo fazia aquilo. Nem ao menos se lembrava de ser parte do acordo, mas aceitava. Na verdade, sorria até mesmo satisfeito por conseguir o que queria. Sabia que o Suzuki o calava quando se afetava de alguma forma, nem que fosse pela mais pura irritação. Ainda que fosse isso, tinha feito o loiro sentir algo. Era como uma busca incessante por atenção; queria que Ryo o notasse. O fato, talvez, de Ryo vê-lo apenas como mais uma alma o fazia querer mais. Era difícil e Takanori gostava de coisas difíceis. Ouvira de Kouyou que estava obcecado, mas ousava dizer que estava mesmo era apaixonado. Uma loucura maior, na opinião do Takashima.

Mas era o que sentia. Até mesmo lamentava a ideia de que em algum momento seu acordo findaria e o Suzuki desapareceria de sua vida da mesma forma que apareceu: sem aviso. De que importava se no fim levaria sua alma? Queria, de alguma forma, fazer o loiro ansiar, saudar, se arrepender. Queria que, depois de feito, Ryo concluísse que ele, Takanori, era mesmo diferente dos demais e por isso o atraiu. Queria que Ryo sentisse sua falta.

"Ele precisaria ter um coração para sentir sua falta."

As palavras de Kouyou ecoaram em sua cabeça por um instante que mais pareceu uma eternidade. Uma secura súbita lhe tomou a garganta, o chamando de volta para a realidade.

Estava enroscado nos braços de Ryo, o sentindo dentro de si, se perdendo entre um beijo e outro, então, o que poderia ser aquela secura se não o desespero? Não podia nem mesmo gritar, nem se quisesse. E se no fim fosse apenas isso? Apenas mais uma alma perdida e sem voz na imensidão daquele ser?

Kouyou lhe avisara, afinal. Demônios não têm coração. Não se deve esperar que tenham. Se apaixonar por um é um caminho muito pior do que qualquer acordo. Essa é uma linha que, definitivamente, não se deve cruzar e Takanori sabia bem disso. Mas gostava de coisas difíceis e de abalar as estruturas alheias. Em seu egoísmo insólito, acreditou que conseguiria dobrar também ao Suzuki, um demônio, mestre em artifícios. Talvez, não conseguisse, mas seguiria tentando. Se no fim das contas, a forma que tinha de fazê-lo era irritando o outro e perdendo a voz como consequência, então o faria. Até que se infiltrasse no coração do Suzuki. No coração, pois tinha certeza de que ele também tinha um. E uma vez lá dentro, jamais sairia, ainda que não existisse mais. Faria Reita ansiar e se arrepender de tê-lo conhecido e essa seria sua vitória.

Eu estarei por perto, se você não me decepcionar.

Se o amor tem essas condições, (então) isso não é uma canção de amor.

[Cold fire - Rush]

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