Dois dias de fuga

A realidade de cada um


O tic-tac do relógio da sala de jantar parecia martelar na cabeça de Mônica. Enfim havia acabado a escola, a mesma que havia acabado com ela. A moça não sabia o que queria estudar e seus pais a pressionavam para escolher logo, porém, eles tinham em mente apenas duas profissões: Engenharia e Medicina.

Na pequena mesa de madeira da sala de jantar, os pais sequer olhavam para a filha, apenas liam sobre as profissões em revistas de vestibulares e jornais.

“Mônica, devia fazer Engenharia Civil, está em alta. A nota do vestibular sai em breve, espero que tenha colocado a nota nessa Engenharia, querida, mas sem pressão.” sua mãe disse enquanto se servia de suco de uva.

“Não, Luísa, eu disse para ela colocar em Medicina. O mercado sempre está em alta com isso.” o pai rebateu com a boca cheia.

Mônica apenas engolia seu jantar com dificuldade, havia colocado sua nota nas duas áreas, embora não soubesse qual escolheria caso passasse nas duas ou até mesmo se queria alguma delas.

“Medicina, Sousa? Lembra da Mônica na infância? Delicadeza nunca foi o forte dela, imagina se ela usa aquela força em um paciente?” Luísa perguntou após colocar o suco de volta na mesa.

“Engenharia não tem dado esse dinheiro que você pensa, não se esqueça que a vida não anda fácil para ninguém.” ele falou e Mônica suspirou.

“Amanhã saio cedo, vou descansar um pouco. Boa noite.” a adolescente disse se levantando e levando seu prato até a pia.

Em seu quarto, deitou na cama e olhou para o teto branco por alguns minutos e sentiu seus olhos marejarem, não sabia como lidar com a tão famosa escolha. Limpou os olhos castanhos e se levantou para ajeitar suas coisas para o dia seguinte, ao menos colocaria os pensamentos no lugar, longe da pressão de seus pais.

*

Em um quarto mediano lilás, tudo estava escuro. O relógio preto em formato de gato pendurado na parede marcava nove da noite quando um som estridente de toque de celular fez a moça, que dormia serenamente, dar um pulo em sua cama, pegando o aparelho em cima da mesinha de madeira que ficava ao lado da cama.

“Alô?” atendeu com a voz sonolenta.

“Oi, Magá, te acordei?” era a voz de Mônica, estava estranha.

“Dormi cedo, mas tudo bem. O que aconteceu?” Magali perguntou bocejando.

“Estou ansiosa para amanhã, acho que seria legal a gente tomar café da manhã juntas.” a Sousa sugeriu.

“Claro, a gente vai sim e marcamos de encontrar com a galera lá.” Magali respondeu e a amiga riu.

“Legal. Até amanhã!” Mônica desligou animada.

Magali olhou para o celular de cenho franzido. Desde o começo do ano, Mônica estava estranha e nunca falava para ninguém o que acontecia, e isso preocupava a Fernandes.

Saiu de seus pensamentos ao receber uma ligação de Cascão, os amigos gostavam de ligar em vez de mandar mensagens.

“Oi, Magá! Faz ideia de como vai ser legal o fim de semana? Um pouco de sossego pra alma!” ele falava tão animado que a fez sorrir.

“Feliz em entrar em contato com seu habitat natural?” ela perguntou.

“E qual seria meu habitat natural?” Cascão respondeu com uma pergunta.

“A lama!” ela riu, mas não ouviu a risada dele e, em questão de segundos, lembrou-se da quase reprovação e emendou outra resposta.

“Da lama porque você era sujinho, Cascão.” explicou suando frio e ele riu forçado.

“Entendi. Tenho que desligar, a Cascuda chegou. Tenha uma boa noite.” falou desligando e Magali suspirou.

Deitou novamente e tentou voltar a dormir, mas, ao ouvir sobre Cascuda, namorada de Cascão, lembrou-se de Quim. O padeiro havia terminado com ela há algumas semanas por vários motivos que a deixaram mal, mas queria afastar esses pensamentos, tanto que aos amigos contara apenas uma das razões: ausência.

A moça começou a ouvir músicas até adormecer novamente.

*

Em um quarto meio bagunçado com vários papéis e cadernos cheios de exercícios de física, resumos de matérias e alguns desenhos feitos durante aulas chatas, estava Cebola com a feição cansada. O rapaz se espreguiçou após fazer mais um simulado online de um curso pré-vestibular que fazia. Foi procurar algo para comer na cozinha, mas parou no corredor ao ouvir seus pais conversando.

“Ele fez intercâmbio! Se trabalhar na minha empresa, no setor estrangeiro, vai ganhar muito bem e poder pagar a própria faculdade.” senhor Cebola disse animado.

“Cebola, eu não quero que ele trabalhe e estude! Temos condições para pagar a faculdade, ele é novo ainda e precisa aproveitar para estudar!” dona Cebola falou brava.

“Bobagem! Ele fez um intercâmbio, querida, lembra do trabalho que deu para mantê-lo lá? Hora de dar resultado! E conheço muitos garotos da idade dele que estudam e trabalham sem problemas. E são garotos que não tiveram pais que bancaram despesas extras de um intercâmbio.” o mais velho disse.

O Menezes mais novo não ficou para ouvir o resto da conversa, até perdeu a fome. Não era novidade que o pai falava do intercâmbio como se tivesse sido um gasto que teria a obrigação de gerar muito lucro, de preferência imediato. Por esse motivo, insistia em simulados e tudo mais, o que diminuía seu tempo com Mônica. Ao pensar que no dia seguinte conseguiria descansar ao lado dela esboçou um sorriso.

*

Em um quarto pequeno com vários pôsteres de jogadores de futebol estava Cascão, arrumando suas coisas para o dia seguinte. Ao pegar um livro enorme de exercícios resolvidos, que Cascuda havia deixado para ele estudar, respirou fundo enquanto se sentava em sua cama e cobria os olhos com as mãos e apoiava os cotovelos nos joelhos.

O sonho do Araújo era ser jogador de futebol. Seus pais o apoiavam, mas queriam que ele ao menos fizesse alguma faculdade, qualquer uma e qualquer curso, para ter uma segunda opção. Porém, ele estava desanimado graças às suas notas baixas ao longo do ensino médio, não acreditava em seu potencial cognitivo para passar em alguma faculdade. Sua namorada tentava ajudar e ele admirava sua intenção, mas Cascuda não era uma pessoa muito paciente.

Parou de pensar nisso e voltou a arrumar suas coisas, havia chamado Cascuda para ir com eles, mas a namorada negou alegando precisar estudar para mais vestibulares do próximo ano, mesmo que talvez nem os fizesse, já que o Araújo tinha quase certeza que ela já havia sido aprovada em alguma ótima faculdade.

Enquanto fechava seu guarda-roupa, viu uma foto com os amigos e lembrou de sua conversa com Magali.

“A lama é realmente meu habitat...” comentou para si sorrindo fraco.

De repente, sua mãe entrou no quarto, que estava com a porta aberta.

“Cascão, seu primo passou em uma boa faculdade, sabia?” Lurdes disse animada e Cascão revirou os olhos.

“Muito bom pra ele. Pelo menos alguém da família vai ter uma vida boa.” ele disse desanimado e sua mãe o encarou.

“Esse era o sonho dele, o seu é outro. Não somos ricos, Cascão, queremos que você faça uma faculdade para não te menosprezarem, você sabe como são as pessoas.” ela disse e Cascão deu ombros.

“Estou cansado, podemos deixar esse papo para depois?” ele comentou sabendo que essa conversa seria demorada.

“Divirta-se amanhã.” Lurdes disse saindo do quarto, sabia que ele queria descanso.

Cascão suspirou deitando em sua cama e tentando dormir para esquecer dos problemas, o dia seguinte seria bom.

*

Na luxuosa suíte de paredes azul-bebê estava Carmem chorando com a cabeça enterrada no travesseiro. Seus pais, como sempre, deviam estar em algum país a negócios. Eles não haviam ido à sua colação de grau, sequer mandaram uma mensagem desejando-lhe os parabéns, quem a parabenizou fora Ofélia, uma das empregadas da família por quem tinha muito apreço. A loira olhou em volta, tinha tudo que uma pessoa podia querer, mas estava infeliz.

Quando Denise avisou sobre o fim de semana que teria se animou. Denise era sua amiga para todas as horas, mas quando descobriu que era em um sítio a ruiva desistiu e Carmem confirmou, precisava urgentemente fugir da realidade sufocante que vivia e faria isso mesmo sem a amiga, talvez conseguiria se comunicar com os demais, ou até mesmo com a natureza.

“Amanhã é outro dia.” falou para si mesma dando um sorriso fraco e limpando as lágrimas.

Começou a arrumar suas coisas, não tinha nenhuma roupa adequada para um sítio e não teria tempo de comprar novas, então usaria o que tinha.

“Não deve fazer diferença.” ela comentou dobrando um vestido curto cor de rosa.

“Dona Carmem? Já arrumou tudo?” era Ofélia, uma mulher já madura com feição cansada que trabalhava na casa.

“Sim, não vou levar muita coisa. É só um fim de semana, acho que essa mala grande dá.” ela respondeu e Ofélia sorriu.

“Fico feliz que a senhora vai descansar um pouco. Logo chega a faculdade! O que a senhora pretende fazer mesmo?” ela perguntou e Carmem sorriu abertamente.

“Arquitetura ou moda. Ou talvez as duas, sempre gostei muito de arquitetura, decoração e tudo mais, mas também gosto de roupas, desfiles e tendências da moda. É confuso.” a loira respondeu animada e Ofélia sorriu.

“Seja lá o que você faça, fará muito bem. Boa noite, minha querida, e parabéns mais uma vez.” a mais velha disse e Carmem a abraçou, a empregada era o mais próximo de uma figura materna há muito tempo.

*

A sala rústica havia se tornado um campo de guerra enquanto, por ironia do destino, passava um filme de comédia. O casal xingava o filho mais novo, que, por sua vez, tentava ignorar os gritos enquanto a mãe segurava uma carta de aprovação em uma faculdade, que o filho sequer falou que havia prestado.

“Maurício, por que negou a bolsa para o curso?! Só pra contrariar?! Era 100% e você jogou fora, Maurício!” Keiko questionou zangada.

“Eu não gosto desse curso, só coloquei a nota nele porque estava sem ideias. Meu sonho é outro.” Do Contra respondeu tranquilamente.

“Sonho não enche barriga, Maurício! Cresça! Essa sua mania não vai te levar a lugar nenhum, muito pelo contrário. Sempre aceitamos, mas chega! Você precisa amadurecer e agir igual a uma pessoa normal!” seu pai exclamou sério.

“E quem disse que quero ser normal como vocês dizem?” ele perguntou e os pais franziram o cenho.

“Querido... ACORDA PRA VIDA! Você vai começar uma nova etapa na sua vida, seja racional!” Keiko gritou zangada e ele apenas saiu da sala sem falar nada.

Do Contra estava exausto de ouvir isso, o que mais ouviu ao longo do terceiro colegial foi que precisava mudar seu jeito para a tão famosa nova etapa. Embora lutasse contra o que diziam, era impossível não considerar a atmosfera de pressão do terceiro ano somada à que a sociedade colocava. Era sufocante até para alguém excêntrico como Do Contra, que pensava em sua vida com mais frequência do que queria. Olhou o celular, que marcava onze da noite, e decidiu arrumar suas coisas para a ida ao sítio, já fazia bastante tempo que Mônica e ele haviam rompido, ou seja, já estavam tranquilos e talvez a natureza o compreenderia melhor que as pessoas.

*

Na manhã de sábado, às sete horas, Mônica foi até a casa amarela de Magali arrastando sua mala vermelha com o pensamento longe, quando se deu conta, já estava no portão da amiga e lá estava Magali.

“Bom dia, Mô!” a Fernandes cumprimentou e a amiga sorriu.

“Bom dia, Magá! Vamos até a padoca, eu combinei com o moço da van de encontrar a gente lá. Algum problema em ser lá?” a Sousa perguntou com receio e a amiga negou.

“Relaxa, amiga, e vamos comer. Meus pais foram trabalhar e nem comi nada pra deixar espaço pros pãezinhos do Quim, são muito bons.” Magali disse sorrindo falsamente, Mônica percebeu, mas achou melhor deixar quieto.

Na padaria, as garotas se sentaram numa mesa próxima à janela de madeira, o ambiente possuía um ar português com toques brasileiros e cheiro de pão.

“Bom dia, meninas. Pensei que iam viajar hoje.” Aninha, que trabalhava na padaria, comentou entregando os cardápios a elas.

“Bom dia, Aninha, vamos daqui a pouco. Eu vou querer um croissant com café, por favor.” Mônica fez o pedido segurando o cardápio vermelho com tiras douradas.

“Eu vou querer um...” Magali falava até ver Quim colocando pães e docinhos no balcão de atendimento junto de uma funcionária loira, alta e mais velha que ela.

“Magali?” as outras duas perguntaram quando a amiga parou de falar.

“Ér... vou querer um pão de queijo, suco de laranja e uma trufa de chocolate.” ela disse sorrindo à Aninha, que saiu com os pedidos e cardápios.

Mônica olhou para Quim e, no mesmo instante, o rapaz deu um beijo na loira. A Sousa olhou para Magali, que engoliu em seco.

“Tá tudo bem, Magali?” Mônica perguntou.

“Sim. Aquela garota é a namorada dele agora, eles têm esse direito. Mas deixa eles pra lá! Está animada para mais tarde?” a Fernandes mudou de assunto e Mônica assentiu, seria melhor esquecerem as coisas ruins.

*

A algumas quadras dali, Cascão e Cebola estavam em uma conveniência 24 horas comprando algumas coisas que não tinham comprado para o fim de semana. O Menezes estava em algum lugar e o Araújo vendo a capa de uma edição de Cosmo guerreiro. Ao virar o corredor da sessão de protetores solares, trombou com uma garota loira e muito perfumada.

“Ai, menino!” a garota exclamou se abaixando para pegar algumas compras que haviam caído.

“Desculpe, não tinha te visto...ah, oi, Carmem! Também deixou as compras para última hora?” ele perguntou sorrindo para ela e se abaixando para ajudá-la.

“É o que parece, Cascão. Até mais.” ela disse saindo apressada e Cascão deu de ombros. Carmem sempre fora meio distante dele, mesmo depois de terem tido toda aquela aproximação há alguns anos, quando ela fez dupla com Cascuda.

“Achei você!” Cebola apareceu com vários repelentes e protetores solares em mãos.

“Pra que tudo isso? É só um fim de semana, Careca!” Cascão perguntou de cenho franzido.

“Eu sou precavido e a Mônica anda meio avoada, ela pode esquecer. Então, eu, o namorado dela, tenho reservas.” Cebola disse sorrindo e Cascão cruzou os braços.

“Não era mais fácil avisar ela pra não esquecer?” o Araújo perguntou.

“Claro que não, Cabeção. Assim eu mostro ser atencioso.” o Menezes disse olhando o preço de óculos de sol.

“Se é tão precavido, por que 'tá tão distante dela?” o rapaz perguntou ao amigo, que suspirou.

“Estou estudando que nem condenado, esqueceu? Agora vamos que daqui a pouco o seu Juca chega pra levar a gente.” Cebola disse empurrando o amigo até o caixa.

X

Caminhando pela rua, estava Carmem com seus óculos de sol importados e um sacola verde com repelente, protetor solar e cremes de cabelo. Ao virar a esquina, viu Denise com cara de sono e uma sacola de pão em suas mãos. Ia falar oi quando a dona das chiquinhas foi mais rápida.

“Oi, Carmem! Vamos sair hoje?” Denise perguntou animada e a loira negou.

“Vou ao sítio com a turma.” ela respondeu e a ruiva arregalou os olhos.

“Você? Meu amor, você era a última pessoa que eu esperava que iria pra um lugar cheio de bichos e mato, cruzes! Achei que você nem estaria no Brasil, sabe? Sua mãe está na França.” Denise disse e a amiga suspirou.

“Talvez seja interessante. Tchau, Dê, estou atrasada!” a loira deu um beijo na bochecha da amiga e seguiu seu caminho rapidamente.

Carmem passou em frente à casa de Do Contra, que estava em sua varanda vestido com uma camisa preta e calça jeans esperando a van. Nem cumprimentou, apenas passou reto, ainda precisava se arrumar.

O Takeda, por sua vez, estava com seus fones de ouvido no máximo, tentando silenciar seus pensamentos enquanto encarava o nada, torcia fortemente que fosse relaxante uma fuga da cidade.

Fugere urbem, lá vamos nós.” o rapaz disse ao ver Juca subindo em sua van e se levantou batendo na parte de trás de sua calça jeans para limpá-la.

Juca, assim que subiu na van, benzeu-se sabendo quem seriam seus clientes, as traquinagens da infância daqueles jovens o marcaram. Passou as mãos em seus cabelos com fios brancos e respirou ligando o veículo.

“Serão duas longas horas. Socorro!” ele exclamou para si dando a ré e indo buscar seus clientes.