Dois Mundos - Revoltosos

4-Feliz ano novo, com alguns problemas internacionais.


–Espera! –Falei segurando-o antes de Douglas despencar no poço disfarçado no meio da floresta.

–O que foi? –Então ele viu o poço.

O que era estranho, nós não havíamos passado por ali na ida, e um poço no meio do mato era mais estranho ainda. Só havia aquilo ali, nenhum sinal de construção ou nada parecido, apenas um poço artesiano quebrado, com as pedras laterais jogadas lá dentro.

Olhei em volta de novo, e a mais ou menos uns dez metros, uma pequena elevação de tijolos chamou minha atenção. Fui até lá com o arco preparado. Mas nada me atacou.

Aquilo era o resto de uma casa abandonada. Algumas telhas podres em baixo da vegetação se quebraram com nosso peso. Mais ao sul, duas lápides de pedra esperavam sob a sombra das arvores. Caminhei até ali. Os galhos roçando na minha perna e rasgando a pele, mas não me importei com isso, os cortes se fechavam rapidamente.

Olhei a primeira inscrição: Yohann Marchin 1888. Meu sangue gelou. Olhei a outra: Mary Marchin. Eu já havia ouvido falar desses nomes. Meu tataravô e minha tataravó que vieram da Alemanha. Provavelmente eles tinham uma fazenda por ali, mas os filhos foram para a cidade, deixando os pais ali. Ele adoeceu e ela não podia cuidar, o único filho dos dez, que voltou, foi meu bisavô Arnold. Quando eles morreram, provavelmente Arnold os enterrará ali, junto de sua fazenda, mas ninguém se interessava por saber onde estavam enterrados os pais, então até a localização dos túmulos foi perdida. Pelo menos essa era a história que meu avô me contara uma vez. E agora nós os achamos de novo.

–O que fazemos? –Perguntei para Douglas.

Ele olhou em volta e parecia igualmente confuso.

–Vamos ter que voltar para casa agora. Já está ficando escuro. Falaremos para eles, mas não vai adiantar de nada se perdermos a localização.

Eu concordei. Abaixei-me entre os túmulos e encostei a mão no chão. Fiz uma espécie de sinal. Quando eu estivesse por perto, o lugar começaria a brilhar.

–Vamos indo então. –Eu falei virando-me e seguindo na direção correta. Douglas seguiu-me.

Depois de dez minutos caminhando, ouvi o som de carros, e soube que estávamos perto, dois minutos depois, surgimos na frente de casa.

Entramos sorrateiros, sem fazer muito barulho, o que é difícil, pois o piso de madeira fica em cima do porão, causando muito som lá em baixo, ou seja, qualquer movimento feito no chão era possível ser identificado por quem estivesse lá em baixo.

Fomos para o quarto e ligamos o vídeo game, como se nada tivesse acontecido. Escondemos os tênis sujos e esperamos alguém subir, mas ninguém veio. Estranhei. Fiz o hieróglifo para ouvir no chão, e encostei o ouvido. Minha mãe conversava com minha vó sobre a ceia de natal, e elas ouviam música, então não ouviram nada. Ufa.

Meu cachorro continuava dormindo aonde havíamos deixado ele: em cima da cama de minha mãe, onde tinha sombra e o vento que entrava pela janela é muito bom. Ele também não notou nossa presença. Cachorro vagabundo!

Ficamos mais umas duas horas jogando, até que decidimos nos arrumar. Depois do banho, vesti uma roupa básica e confortável para aquela noite quente: um jeans, camiseta regata solta e uma flanela verde. Meu primo estava mais formal, ele usava uma calça jeans também, só que com uma camisa de botões branca, com as mangas levantadas e sapato.

Liguei para Pedro, e ele atendeu com voz de sono:

–Não acredito que você estava dormindo no natal! –Falei.

–Hey! Heróis filhos de Poseidon também tem sono. –Ele respondeu rindo.

Foi uma conversa rápida, cheia de ‘estou com saudades’ e ‘quero ver você’. Mas foi boa até.

Finalmente chegou a hora da janta. Aquele cheiro de comida me deixava louca, eu amo comer. Meus tios chegaram pouco antes, a mesa estava cheia, por sorte, a sala era grande, então coube todo mundo. Logo após começarmos a comer, a campainha tocou, minha mãe atendeu e tomou um susto.

Antes que pude perceber, minha irmã entrou pela porta, surpreendendo a todos.

–Feliz natal, família. –E ela sentou-se ao meu lado.

A janta foi perfeita. O peru estava maravilhoso, a farofa doce de minha mãe era espetacular e até o meu avô estava sociável. Ele não brigou com ninguém e nem deixou a televisão no máximo (o que foi um alivio para meus ouvidos, já que eu ficava de costas para a televisão).

No dia seguinte, descemos a serra em direção a praia. Com minha irmã dentro do carro, eu tive que ir no banco de trás, onde meu cachorro dormiu no meu colo a viagem inteira. O dia estava ensolarado, minha camiseta do Grêmio estava grudando no encosto do banco e minha irmã não parava de contar o que havia acontecido em Hogwarts depois que fomos embora.

–O ministro foi fazer uma visita pessoal na escola. Ele interrogou todo mundo, em busca de possíveis espiões. Eu quase tive problemas... –E muitas outras coisas. Aparentemente tínhamos causado uma impressão muito forte lá.

Chegamos na praia no fim da manhã. Muitas famílias tiveram a mesma ideia que a gente, e as ruas estavam lotadas de gente descarregando os carros, jovens indo pra praia e crianças brincando no meio da rua. Nossa casa continuava igual.

Minha irmã abriu a porta e abriu todas as janelas, enquanto eu ajudava a colocar as malas para dentro. Subi para o meu quarto e botei as malas sobre o colchão. A ultima vez que estive ali, eu descobrirá que era uma meio-sangue mais maga, e abandonei as férias para ir aos Estados Unidos. Já fazia quase um ano.

É impressionante como a vida de uma pessoa muda em um período de tempo tão curto. Quando vi a bola de futebol murcha em baixo da cama, eu pensei “é, fui uma criança feliz”, agora eu tinha outros ‘brinquedos’ mortais.

Almoçamos em um restaurante na beira do rio, do outro lado da ponte. Cada lugar que passamos pelo caminho, eu me lembrava da noite em que fizemos nossa primeira viagem pelo Duat.

Depois de quatro dias indo para a praia, jogando futebol com meu primo, tocando violão ou utilizando o computador, eu sentia um tédio enorme. Como é possível alguém sentir falta do colégio? Não sei, mas eu sentia.

Finalmente o dia trinta e um chegou. O dia em que Pedro chegaria de viagem, minha mãe queria busca-lo no aeroporto, mas ele faria uma viagem rápida pelo Duat. Como? Eu também não sei.

Acordei cedo naquele dia, fui para a praia com meu primo, e mesmo aquele mar sujo e marrom do litoral gaúcho, me dava saudades de Pedro. Eu estava inquieta, não parava de olhar para a porta. Minha mãe brigou comigo dizendo que ele não chegaria do nada, e entraria assim. Ele iria aparecer na praia, ou algo assim.

As horas estavam passando, e eu não me concentrei em mais nada. Os vizinhos já estavam em clima de festa, estouravam foguetes, a musica estava alta e tinha muita risada, o que provavelmente significava que estavam bêbados. Arrumei as coisas para o acampamento, nós iriamos apenas no dia três, mas eu já estava ansiosa.

–Lú, desce aqui! –Gritou Douglas lá de baixo. Eu corri na janela, mas não vi nada de diferente, também não tinha ouvido nada de estranho no primeiro andar. Desci correndo.

–O que foi? –Perguntei.

Douglas estava sentado no sofá, de frente para a tv. O plantão estava anunciando um acidente na praia. Alguém havia sido atropelado por um jet ski. O garoto sem identificação era louro, e tinha uma tatuagem no braço esquerdo. Minha respiração parou. O garoto estava em coma, sendo levado ao hospital.

–Não falaram o nome dele, talvez não seja... –Ele começou a dizer, mas uma lágrima escorreu pela sua bochecha.

Eu sentei-me na escada e chorei. Minha mãe não estava em casa, nem Bruna. Estavam em Tramandaí, comprando roupas para o Ano-novo.

–Não pode ser ele. Impossível. Ele nunca morreria no mar! –Eu gritei desesperada.

Douglas abraçou-me.

–Mas não sabemos se é ele.

–Qual a probabilidade de isso acontecer? Um garoto louro com a tatuagem no braço esquerdo, nadando no dia de ano-novo, quando todo mundo está em casa se arrumando. –Eu falei desacreditada.

Meu primo parecia pior do que eu. Pedro e Douglas, ficaram muito amigos no ultimo ano, melhor dizendo, eles eram melhores amigos. Então talvez ele sentia-se tão mal quanto eu.

–Escute, nós temos que avisar a tia. –Disse Douglas puxando o celular.

Eu assenti e chorei mais ainda. Não podia acreditar, meu namorado quase perfeito, único no mundo, morto no lugar onde mais seria seguro.

Quando fui levantar, alguém bateu na porta. Eu parei. Douglas abriu-a com o celular na mão.

Você já viu aquelas cenas de filme, onde tudo passa em câmera-lenta? Foi algo assim. Douglas derrubou o celular e ficou sem ação. Eu parei de respirar de novo, não senti o chão em baixo dos meus pés. Corri para Pedro parado na porta. Abracei-o muito forte, mas duvido que ele tenha se incomodado. Ele estava com o cheiro do mar, usava uma camiseta branca simples, bermuda jeans e o boné vinha preso na mochila, pendurada em um ombro só.

–Você não está morto! –Eu exclamei depois de beija-lo uma dúzia de vezes.

Ele olhou-me confuso, depois abraçou Douglas, que parecia tão perplexo quanto eu.

–Porque eu estaria? –Ele falou largando a mochila no sofá.

–Apareceu na tv. –Respondi e contei o que havia acontecido.

Ele começou a rir. Eu achei um absurdo, mas ele conseguiu me acalmar um pouco.

–Eu vi esse acidente quando estava vindo. O cara já estava se afogando. Eu estava indo ajuda-lo, mas o jet ski atingiu primeiro. Depois disso eu sai da água, fui até um banheiro público, e troquei de roupa. Mas a parte mais difícil foi encontrar a casa.

Ele ainda estava abraçado em mim, o que achei bom, porque na próxima vez que ele me desse um susto desse, cara, eu iria bater muito nele.

A noite chegou rápido. Minha mãe chegou em casa meia hora depois de Pedro. Achei melhor não falar nada sobre o mal entendido, Bruna nunca mais iria sair do meu pé.

A festa da passagem seria na casa do tio Paulo, que ficava de frente para a praia. Uma mansão enorme, com piscina e tudo de bom. Fomos para lá oito horas da noite. A janta seria churrasco e tudo o que tem de mais tradicional, e todo mundo estava ansioso.

O neto do meu tio era um idiota, sinceramente. O garoto tinha quinze anos, como eu, mas tinha quase um e oitenta de altura, era gordo e nojento. Tinha quatro ou cinco pneus de gordura na barriga, e era a pessoa mais mongolona que eu já havia conhecido. Nós já havíamos brincado juntos na praia muitas vezes, quando criança, mas eu não gostava muito dele. O cara se acha ‘O cara’ em tudo o que faz, é um burro que não passou da quinta série ainda, e é viciado em vídeo game.

Quando chegamos na casa, Glederson (o neto do casal), estava no portão, ainda desarrumado. Ele usava um calção de praia verde horroroso e nada na parte de cima. O cabelo preto cortado curto, estava todo ensebado e a boca de peixe estava com um corte feio.

–Eai cara. O que tu fez na boca? –Perguntei tentando ser sociável.

–Um piazinho me deu um soco. Nada de mais. –Ele nos conduziu para dentro e deu tchau aos seus amigos que estavam na rua.

–Você cresceu. Está bonito. –Disse minha mãe. Eu acho que ela é a única pessoa na face da terra que acha aquela criatura legal. Quando ela disse isso, eu pensei “é, cresceu para os lados também, e a falsidade é grande ein?”, mas não disse nada.

–Obrigado. O vô e a Vó estão lá dentro, preparando a casa. O João e a Carmen já estão ai, e também a Jaque e o Edu, e o Juca e a Márcia. –Para cada pessoa, ele contava um dedo. Sim, ele era um infantil ridículo. –Quem é você? –Ele perguntou dando-se conta de Pedro ao meu lado.

–Meu nome é Pedro. Muito prazer. –Pedro apertou a mão dele firmemente.

Glederson olhou desconfiado para mim, depois para ele, e voltou para mim.

–Vocês estão namorando?

–Sim. –Respondi. Pedro apertou minha mão, e Glederson começou a abrir e fechar a boca, como um peixe.

Minha mãe já estava lá em cima, dando oi para todo mundo. O portão ficava em baixo, dando direto para a garagem. Ao lado da entrada dos carros, um caminho levava para a casa propriamente dita. Uma casa enorme, de pedra, que parecia um castelinho. A casa ficava bem na frente da praia, em uma parte menos habitada e mais calma da cidade.

Nós subimos, Bruna estava em algum ponto do jardim, que ficava sobre a garagem subterrânea. Douglas estava logo atrás de mim, e eu conduzia Pedro escadaria a cima.

Entramos na casa e encontrei a sala vazia, a televisão gigante estava ligada em algum canal de filmes, que passava Transformers, e a cozinha estava com um cheiro de carne assada. Do lado de fora, eu ouvi vozes, e fui para lá.

Toda a minha família estava lá, os mesmos do natal. Como a casa era enorme, provavelmente estavam todos hospedados ali, inclusive meus primos e primas. Até meus avôs estavam ali. E também alguns amigos. Depois de cumprimentar todos eles, puxei Pedro para a parte da frente.

–Eles vão lhe fazer perguntas de mais.

–Tudo bem, não me importo. Mas qual é a daquele guri? –Ele perguntou falando de Glederson, que por sorte, estava tomando banho, porque sem mentiras, ele fede.

–Não ligue pra ele, é apenas um idiota. –Respondi.

Douglas entrou no jardim com um copo de refrigerante.

–Vamos lá para cima. A vista é melhor.

–Ótima ideia. –Falei puxando Pedro para a lateral da casa.

Subimos por uma escada de ferro, presa do lado de fora. Tinha também uma escada por dentro, mas essa era pra quando você chega da praia. A casa tinha quatro andares, então era bem alta.

No terraço da casa, havia uma piscina, com um deck de madeira, alguns guarda-sóis e até umas três ou quatro palmeiras plantadas em vasos grandes. A piscina fica no centro, e eu já havia tomado muitos banhos ali.

Sentamo-nos em uma espreguiçadeira, na ponta do terraço, entre a borda e piscina, de frente para o mar.

Daquele ponto, dava para ver o oceano escuro na nossa frente. Tinha cinco navios naquela noite, todos iluminados, deixando o cenário mais belo ainda. As casas vizinhas eram todas pequenas, então podíamos ver seus pátios com facilidade, mas não ouvíamos nada.

Alguns isopores e caixas térmicas foram colocadas ali em cima, junto com mesas de armar montadas sob os guarda-sóis. Tudo pronto para a janta.

–A ceia vai ser lá em baixo, mas na hora dos fogos, vamos vir aqui para ver. –Disse Douglas.

–Esse lugar é incrível. –Disse Pedro olhando em volta. Sua flanela azul balançava com o vento, e seus cabelos estavam arrumados, o que era quase possível.

–Pois é. O restaurante deu dinheiro. –Comentei.

–Nós podíamos ir a praia mais tarde. Tomar um banho, ou quem sabe apenas passear pela orla. –Pedro deu a ideia. Eu achei fantástica, mas eu já estava planejando fazer isso.

–Eu duvido que o Glederson vá querer. –Disse Douglas levantando-se e caminhando até uma caixa de isopor.

–E quem falou em Glederson? Vamos só nós três. –Disse Pedro.

Douglas resmungou alguma coisa em grego, e soltou a tampa do isopor.

–Aqui só tem água congelada. Vou ter que descer e pegar refri.

–Traga uma garrafa. –Eu disse enquanto ele descia as escadas.

Eu inspirei o ar, a brisa que vinha do mar. O mesmo cheiro de Pedro. O cabelo loiro estava banhado pela lua, deixando em um tom meio prateado. Ele abraçou-me.

–Eu não gostei daquele gordo. –Falou Pedro olhando fixamente o horizonte.

–Eu também não gosto dele. –Confirmei.

–Ele já tentou ficar com você? –Perguntou ele virando os olhos azuis para mim.

Eu comecei a rir.

–É óbvio que não. Ele me vê como alguém incapaz de amar. Você viu a cara dele hoje.

–Hum. Ele me pareceu bem interessado em você.

–Cale a boca. –Eu disse e beijei-o. –Eu nunca ficaria com ele, até porque, eu nunca trocaria um semideus, por um mortal comum.

Ele aceitou a ideia. Douglas surgiu na escada com uma garrafa de Coca e um saco de copos de plástico.

Ficamos ali sentados mais um tempo, agora a noite já estava ficando fria. Douglas conjurou um pouco de fogo na palma da mão. Ouvi passos na escada interna e Glederson apareceu na escada, carregando uma bandeja de carne, e Douglas apagou o fogo.

–Vocês estão ai. Sua mãe estava procurando vocês. –Disse ele pousando a bandeja sobre uma mesa próxima. Ele usava uma camiseta branca apertada, o que era uma visão meio dispensável, um boné aba torta, de alguma empresa de alimentos e um tênis de corrida.

–Que horas são? –Perguntei.

–Nove e meia. –Respondeu ele. –Já está na hora da janta. Vamos descer.

Nós o seguimos pela escada interna, passamos pelos quartos e uma ou duas salas de estar.

Todos os convidados já estavam ali. Cerca de vinte pessoas. Depois da ceia, Glederson nos convidou para jogar vídeo game no quarto. ‘Tudo bem’, pensei, e fomos.

O quarto dele era grande, ocupava metade do segundo andar, com um banheiro próprio e uma sacada que dava para os fundos da casa. A cama de casal ficava na parede, com uma televisão igual a da sala na parede oposta. O play 2 estava conectado em cima de uma cadeira, em uma confusão de fios. Roupas ficavam espalhadas por tudo. Uma bola de basquete estava jogada em um canto, ao lado de uma de futebol. A cama estava toda bagunçada e Glederson atirou-se em cima dela.

–Fiquem a vontade. Escolham um jogo. –Disse ele apontando para uma pilha de jogos no chão.

Douglas escolheu Pes 2010, o menos pior dali. Eu sentei-me no chão, na frente da cama, e Pedro ao meu lado. A primeira dupla seria Douglas X Glederson, então teríamos tempo para conversar.

–Sério cara? Você tem uma mansão dessas, com uma baita televisão mas só joga Play Station 2? Porque não pede logo o 3 ou o Xbox 360? –Perguntou Pedro.

Glederson enrugou a testa.

–Porque eu amo jogar esses jogos.

Eu revirei os olhos, e virei para a sacada aberta sobre o gramado. Sobre o telhado da casa vizinha, eu pensei ter visto um vulto, mas com sorte, não seria nada.

Depois de um tempo, comecei a ficar entediada, perguntei se ainda tinha o quarto de musica ali, o inútil assentiu e apontou com a cabeça para o andar de cima. Eu fui para lá com Pedro.

O quarto de música era uma sala espaçosa, com vários sofás e cadeiras, uma televisão, violões, guitarras, baixos e uma bateria. A janela dava para os fundos também, e os amplificadores ficavam no teto, o que melhorava a acústica.

–Uau! –Exclamou Pedro correndo para a bateria. –Onde estão as baquetas?

Eu apontei para um armário mediano, de vidro, entre os sofás. Pedro abriu as portas e suspirou. Era uma bela coleção.

No alto, varias baquetas diferentes, estavam colocadas cuidadosamente em suportes. Na prateleira de baixo, milhares de palhetas diferentes, e na ultima, diferentes cordas, de todos os estilos. Nas portas do chão, ficavam os cabos e os afinadores, junto com vários outros aparelhos.

–Isso é o paraíso! –Pedro pegou uma baqueta de madeira e fechou as portas. Começou a tocar bateria.

‘Nossa cara, ele era perfeito. Semideus, filho de Poseidon, mago seguidor do caminho de Hórus, loiro com olho azul, alto e forte, inteligente e ainda tocava bateria’, pensei ligando um dos violões no cabo mais próximo.

–Me diga, porque seu tio tem uma sala dessas? –Ele perguntou.

Eu pensei um pouco.

–Não sei. Minha tia era música, e minha prima. Mas elas não tocavam nada. Vai ver ele sempre gostou dessas coisas. –Respondi afinando o violão.

–Vamos tocar então. Você conhece Hey Jude? –Perguntou ele, eu levantei a cabeça rindo.

–É óbvio que sim. –E comecei a tocar a introdução. Eu particularmente, adoro essa musica.

Depois de algumas musicas, Douglas entrou correndo e ofegante no quarto.

–Vamos lá. Está na hora. –E nós subimos as escadas para o deck da piscina.

Todos estavam ali agora, sentados nas cadeiras ou espreguiçadeiras, ou em pé conversando. Meu tio estava com um controle remoto na mão e piscou quando viu Douglas.

–O que é isso? –Perguntei.

–Uma surpresa. –Sorriu Douglas nos levando para a beira.

Um contador foi colocado na ponta, onde marcavam exatamente 5 minutos. Todos se arrumaram.

Pedro colocou a flanela em meus ombros, o que combinou com minha camiseta branca.

–Obrigada. –Sussurrei para ele.

–Acredito que de noite, você fique com mais frio, sem o sol. –Ele disse e eu nunca tinha parado para pensar naquilo.

Douglas surgiu com um controle na mão, o mesmo que meu tio segurava.

–Prontos? Dez segundos. –Ele gritou e nós começamos a contagem regressiva.

Quando chegou no zero, fogos de artificio brilharam em toda a praia. Varias cores diferentes, explodiam na beira do mar. As casas vizinhas soltavam os seus, mas não chegavam nem perto da construção do filho de Hefesto. O número 2013 brilhou em dourado e verde em cima do mar. Depois, mais alguns fogos. Lembro-me de abraçar a todos, desejando o feliz ano-novo. Tomei uma taça de champanhe sem álcool, depois vi meu tio caindo na piscina. Foi uma bela festa.

Nos primeiro dez minutos de 2013, todos comemoravam e agradeciam o novo ano. Depois que a euforia inicial passou, todos desceram para a festa propriamente dita, uma pista de dança foi colocada na garagem do superior, com uma decoração simples, porem bonita. A musica começou a tocar e os portões foram abertos. Toda a vizinhança foi para lá.

Dançamos muito, até meus pés doerem. Perto das duas da manhã, Pedro me chamou para ir a praia, dar uma caminhada.

–É lindo, não é? –Perguntou ele apontando o mar.

–Sim.

Nós caminhamos mais um pouco em silêncio pela beirada do mar, sentindo a água gelada nos pés. Até que ele disse:

–Venha, quero mostrar uma coisa. –E ele me puxou para dentro da água.

–Pedro, eu não consigo respirar ai em baixo. –Eu disse.

–Não é problema, apenas mergulhe.

–Tudo bem. –E emergi a cabeça em uma profundidade que batia na minha barriga. Minhas roupas estavam encharcadas.

Dois segundos em total escuridão, e ele puxou-me para uma bolha de ar que havia se formado mais a frente, quando atravessei as paredes, pude respirar novamente.

–O que você acha por um passeio submarino? –Ele disse levantando uma sobrancelha.

–Não sei. Vamos ter que voltar daqui a pouco. –Respondi.

–Então vamos ficar aqui mais um tempo. –Ele disse e a bolha começou a se mover, apenas nossas pernas estavam na água.

Depois de uns minutos de baixo da água, nós voltamos e nos sentamos nas dunas, ouvindo ao fundo a musica da festa.

–Falei com meu pai. Ontem. –Ele falou do nada.

–E o que ele disse? –Perguntei.

–Que algo está acontecendo. Algo ruim. Ele não sabe o que é ainda, mas vamos ter uma missão suicida logo. –Ele respondeu calmamente.

–Mais alguma dica?

–Possivelmente teremos que viajar para longe. Só o que sei. –Ele limpou a areia dos braços.

–Ótimo. –Resmunguei um pouco.

Ele riu.

Ficamos ali, de mãos dadas até bater duas e meia da manhã. E nós tínhamos que voltar para a festa. Estávamos fazendo isso, quando algo nos interrompeu.

–Boa noite gente, mas temos um problema. –Disse Nico di Angelo parado na nossa frente.

–Feliz ano novo pra você também, Nico. –Eu disse antes que ele argumentasse.

O garoto pareceu se lembrar da festa e desejou o mesmo para nós. Eu havia visto ele poucas vezes no acampamento, mas ele parecia diferente. Nico usava uma camiseta preta de alguma banda de rock indefinida, ele estava um pouco mais alto, deveria ter uns treze ou quatorze anos. O cabelo preto estava mais volumoso e ele parecia estar se exercitando, porque não era mais tão magricela.

–O que aconteceu? –Perguntou Pedro em tom sério.

Nico mexeu no anel de caveira que tinha no dedo, nervosamente.

–Bem, tem uma semideusa que está causando problemas. Os sátiros já tentaram traze-la ao acampamento, mas ela simplesmente se recusa a ir. Ninguém mais sabe o que fazer com ela, e vocês são os únicos capazes de ajuda-la.

–Porque nós? –Perguntei.

–Porque vocês são os mais poderosos depois dos sete, e eles não poderão ajudar muito no período letivo.

–Quem é ela? –Perguntou Pedro.

–O nome dela é Lil Scarlet, nascida em São Paulo, mora em Detroit. Filha de Ares causou muitas brigas na escola, a mãe não consegue controlar, e como o pai é ausente, tentamos intervir. Mas ela é um pouco temperamental, o ultimo herói que chegou perto dela, bem, ele está no hospital fazendo uma cirurgia grave agora.

Eu pensei um pouco, aquilo não parecia uma boa ideia.

–Nico, desculpe ser grossa, mas assim, isto está parecendo uma intimação policial. Isso nem é uma missão verdadeira. Quíron sabe disso?

Ele trocou o peso de um pé para outro.

–Sabe, ele que mandou eu vir aqui, quero dizer, parcialmente.

Pedro passou a mão pelos meus ombros.

–Quem mais vai nessa missão? –Perguntou ele.

–Até agora? Vocês dois, e eu.

–E Douglas?

–Ele não precisa ir. Será uma missão rápida. Mas temos que ir agora. –Disse Nico esticando a mão para nós.

Eu hesitei um pouco em pegar, Pedro parecia convicto que daria tudo certo, e apertou a mão de Nico. Não tive escolha se não ir junto.

Depois da viagem nas sombras, chegamos em um beco escuro, no centro de uma cidade grande e barulhenta. Pude perceber que estávamos perto da meia-noite, e tinha muita gente na rua.

Nico nos levou para a rua, onde a neve caia forte, e eu percebi que era inverno (uau, meu senso climático funciona!), e eu não tinha levado roupas de inverno, ou seja, eu estava congelando. Pedro tentou me ajudar abraçando-me, mas não funcionou muito. Até Nico tinha conseguido um casaco.

–Vamos, ela não mora muito longe. –Nico nos conduziu por uma pilha de ruas cobertas de neve.

Quando entramos em uma avenida, cheia de gente comemorando o ano novo, algo me chamou a atenção. Uma menina baixinha, pequena, usando um casaco sintético enorme, e uma touca vermelha, brigava com um garoto que era o dobro dela. Mas não pense que era uma discussão simples, não, a menina batia nele com uma força espetacular. Ela lutava muito bem, e o coitado apenas tentava se proteger.

–Essa é a nossa menina. –Suspirou Nico.

Eu olhei para ele boquiaberta.

–Você só pode estar brincando. Aquela nanica batendo no cara? Ela é o demônio. O coitado mal consegue se defender.

–Acho melhor intervirmos. –Disse Pedro batendo os dentes, e eu concordei, pois a menina acabará de pegar um pedaço de madeira no chão.

Corremos para tentar salvar o menino, que estava tentando levantar-se, com o nariz sangrando muito. Senti pena dele. Quando Lil estava com a madeira sobre a cabeça do cara, ele conseguiu se levantar e saiu correndo.

–Isso, corra se covarde! –Gritou ela levantando a madeira.

Nico pigarreou atrás dela, e teve que se abaixar antes que Lil o atingisse.

–Eu acho que não. –Pedro segurou a madeira antes que ela chegasse na cabeça dele. Forçou-a para o chão, obrigando Lil a solta-la.

–Quem são vocês? –Rosnou ela, cravando os olhos raivosos em Pedro.

Mesmo ela sendo pequena, era assustadora. Os cabelos negros como piche, eram curtos, ela tinha olhos negros brilhantes por trás dos óculos brancos remendados. Os lábios estavam rachados e descoloridos por causa do frio. Ela tinha cicatrizes na testa, que não apareciam muito por causa da touca.

–Somos semideuses como você. Podemos ser seus amigos se quiser, mas sempre tem outra opção. –Eu disse, tentando não demonstrar o frio.

–Como assim semideuses? Você bateu a cabeça foi?! –Disse ela soltando o braço.

Nós nos entreolhamos.

–Eu achei que ela já soubesse. –Resmunguei para Nico.

–Eu também achei. Mas eu nunca vim atrás dela, sempre foi sátiros ou algum outro campista de Ares, mas até eles correram de medo. –Defendeu-se o garoto.

Lil revirou os olhos e virou de costas.

–Vocês são malucos.

–Espere. –Disse Pedro agarrando-lhe o braço. Coitado do meu namorado.

Lil girou com força e acertou o pé no peito de Pedro. Ela rugiu e pulou em cima dele. Pedro caiu na calçada, batendo a cabeça, mas Lil estava batendo nele com muita força, e ele não tinha como se defender.

Eu fiquei em estado de choque por um momento, então me lancei sobre ela. Quem ela pensava que era para bater em Pedro? Mas antes de encostar nela, fui expelida como se tivesse batido em um campo de força.

Tentei de novo, mas não adiantava de nada. Lil estava sendo protegida por uma áurea vermelha, que não permitia minha passagem.

–Saia de cima dele! –Gritei, mas ela pareceu não me ouvir.

De repente, Pedro convocou o avatar de combate de Hórus e jogou Lil para longe. A menina caiu em cima de um monte de neve, mas eu me perguntava como os mortais não conseguiam enxergar aquilo. A Névoa ali deveria ser muito forte.

–Você vai pagar por isso! –Gritou a menina levantando e correndo para ele. Ela parecia estar crescendo, ficando maior e mais forte, até que ela já estava maior que eu, e agora ficou séria a situação.

Ela definitivamente estava maior. Puxei meu arco do pescoço e tentei acerta-la, mas Nico me puxo para o lado antes que Lil me atropelasse.

–Não podemos machuca-la. Ela é uma semideusa também, apesar de eu nunca ter visto alguém com esse poder. –Disse ele assustado.

–Ata, e ela pode bater no Pedro?! –Gritei levantando-me. Puxei meu cajado do Duat (um bastão de um metro e vinte de altura, de madeira e com chamas que apareciam magicamente na ponta), e ataquei.

Uma parede de chamas apareceu entre ela e Pedro, fazendo-os se separarem. Pareceu funcionar, então Nico me ajudou, ele agarrou a cintura de Lil, forçando uma mancha negra a aparecer, até ela não resistir mais a dor.

A garota caiu sentada, voltando ao normal. Ela parecia atordoada de mais até para falar. Por fim, Pedro desfez o avatar, ajoelhando-se ao lado dela.

–Desculpe-me, mas você me atacou primeiro. –Disse ele num tom gentil.

Ela levantou os olhos vermelhos.

–Eu achei que fosse zoeira de vocês, mas é verdade, vocês são como eu? –Perguntou ela e uma lagrima escorreu pela bochecha.

Eu olhei para os meninos e depois falei.

–Sim, mais ou menos. Mas não podemos explicar aqui. Você tem que vir com a gente, e precisa confiar em nós.

–Nós vamos ajuda-la, e você vai precisar nos contar tudo. –Disse Nico, o garoto olhava-a fundo nos olhos, como se pudesse ler sua alma.

Ela assentiu e levantou-se devagar, depois limpou a neve do casaco e seguiu reto na direção oposta.

–Siga-me, eu conheço um lugar seguro.

Ela nos levou para um apartamento no final da rua. Um prédio acabado, e desgastado pelo tempo, que facilmente teria passado despercebido por mim. Subimos até o terceiro andar e entramos no apartamento.

–Sintam-se em casa.

O apartamento não era muito grande, mas era quente e confortável. A televisão de 42 polegadas ficava em cima da lareira, e na frente, um conjunto de sofás confortáveis de couro. Uma mesa de mármore brilhava na frente da porta e um tapete de couro de vaca estava estendido em baixo.

Ela tirou o casaco e jogou em cima da mesa, ela tirou a touca e colocou no bolso do jeans. Agora, sem o casaco, ela parecia menor ainda. A camiseta preta de algum anime japonês, estava amarrotada, por cima de uma manga comprida cinza, e ela parecia não dormir a dias.

–O que exatamente nós somos? –Ela perguntou sentando-se pesadamente em um dos sofás.

–Você conhece aqueles mitos gregos? De Zeus, Afrodite e todos os outros deuses? –Perguntei calmamente.

Ela assentiu.

–Pois é, eles vivem até hoje. Acompanham a civilização ocidental para onde quer que vá. E agora estão aqui nos Estados Unidos. E de vez em quando eles resolvem ter filhos com mortais. E aqui estamos nós. –Explicou Pedro abrindo os braços.

Ela parecia não acreditar muito, mas concordou com a cabeça.

–Eu sou filha de quem?

–É sério que você ainda não descobriu? –Perguntou Nico levantando a sobrancelha.

–Não tenho ideia. –Respondeu ela sinceramente.

–Você é filha de Ares. –Eu disse.

–É por isso que eu sempre arrumo confusão? E é por isso que eu fico maior as vezes? –Perguntou ela.

Nós assentimos sérios.

–É por isso que você precisa vir conosco para o acampamento. Para treinar e aprender a controlar seus poderes. Lá tem mais filhos de Ares como você, talvez você se de bem com eles. –Falei aproximando-me com calma.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.