Era estranho estar em terra firme, com as botas levemente afundando na areia, apenas observando o mar de longe. As ondas estavam calmas naquela noite, o grandioso navio mal balançava com os toques suaves das ondas. Contudo, Smee sabia muito bem o caos no qual aquela embarcação se encontrava, aquela visão longínqua não passava de uma ilusão.

O capitão estava morto.

Sim, o temível e respeitável Capitão James Gancho estava morto. Por mais que tivesse visto com seus próprios olhos ele ser atirado ao mar para as garras do crocodilo, Smee ainda não era capaz de acreditar naquela imagem. Talvez fosse por ser recente, ou terrível demais para sua mente suportar. Sentia-se com em um sonho completamente vazio, como se ele mesmo não fosse real, o que de certa forma explicaria toda a magia daquela terra.

Mas Smee mais do que ninguém sabia que a Terra do Nunca era real, sendo assim só podia ser mesmo realidade que James estivesse morto.

Suspirou exausto, sem tirar os olhos do navio dominado por Peter e os Meninos Perdidos. Toda a tripulação antiga havia sido expulsa e dispersa pela floresta. O contramestre sabia que o certo seria tentar reunir os homens remanescentes, mas não conseguia encontrar ânimo o bastante naquele momento. James havia sido a razão de ter se tornado marinheiro, fazendo com que Smee não visse mais sentido em permanecer em seu posto.

As coisas haviam saído do controle há muito tempo, mas ele era o único que sabia disso com maiores detalhes. O capitão havia se afundado na própria arrogância e desejo de vingança, enquanto o garoto que nunca crescia continuava vendo todos aqueles combates como uma mera brincadeira de criança. Todavia, aquilo havia deixado de ser um jogo quando os pedaços de pau haviam sido trocados pela lâmina de espadas.

O tempo passava de uma forma estranha naquela terra, fazendo com que Smee não tivesse a mínima ideia de por quantos anos tentara mudar os planos de Capitão Gancho, muito provável que era muito mais do que um ser humano conseguiria viver lá fora. Só sabia que fora desde o momento que James teve sua mão decepada pelo garoto e atirada para o crocodilo. Daquele momento em diante Smee soube que não havia mais volta, que qualquer relação de amizade que cultivaram durante a infância havia se perdido por completo, sobrando apenas o rancor e o ódio entre os dois.

E aquela mágoa e orgulho destruíram toda a razão de Gancho, deixando em farrapos a figura do homem que Smee havia aprendido a respeitar e admirar. Impedindo que o ouvisse implorar para que retornassem para casa, voltassem aos negócios da pirataria e aproveitassem todo o respeito que adquiriram de todos aqueles ao redor dos sete mares. Porém como o fim dessa história revela James nunca lhe deu ouvidos, estando ocupado demais em planos maléficos para exterminar o diabo com asas como Gancho costumava chamar Peter.

Era difícil naquele momento não pensar em toda a trajetória que levou o Capitão Gancho para a boca da morte. Parecia-se com algum tipo de tragédia grega, um triste destino de todos os envolvidos. Smee desviou o olhar do barco para o meio da mata, começando a andar em direção à árvore oca que servia de casa para Peter e os Meninos Perdidos.

Não se lembrava de quem foram seus pais, nem de como havia ido parar na Terra do Nunca. Viveu por tanto tempo como criança naquele lugar místico, que suas memórias mais primitivas foram sugadas por todo o encanto da infância e da imortalidade. Entretanto, jamais se esqueceria da noite em que Peter trouxe James até os Meninos Perdidos.

Desde o momento em que pôs os olhos nele a primeira vez, sabia que James mudaria toda aquela pequena sociedade. Tinha a expressão altiva, de uma segurança tamanha para alguém usando uniforme escolar. Havia arrogância nos olhos e sua voz parecia hipnotizar qualquer pessoa, tendo um talento nato para a lábia. De certa forma ele por vezes lembrava o próprio Peter com aquele dom natural para liderança e ânsia por aventura.

Havia certa rivalidade entre tais figuras imponentes, com Peter e todo seu misticismo encantador contra o espírito ambicioso de James e suas histórias sobre o mundo lá fora, que antes parecera tão sem graça para aqueles garotos que escolheram viver isolados naquela ilha de mágica.

Mas isso não queria dizer que Peter e James não se davam bem, na verdade ao se juntarem ganhavam mais força. A trupe de garotos os seguia por toda a ilha, curiosos com as aventuras que criavam e as histórias fantásticas da qual falavam. Torciam com ardor nos duelos que os dois criavam, com espadas de madeira e se equilibrando em troncos a beira de cachoeiras! Se Peter em si era capaz de deixar aquele lugar ainda mais mágico, James conseguia enaltece-lo ainda mais quando se juntava ao garoto imortal.

Porém, se Peter era o menino que nunca cresceu, James era o menino que crescera rápido demais.

James nunca teve a intenção de permanecer como menino naquela ilha para sempre, ao contrário de todos os outros perdidos. Divertira-se e aproveitara cada momento que aquele lugar coberto de magia havia lhe proporcionado, entretanto, ele era um garoto que ainda possuía seus planos e ambições para o futuro. Tais planos que só poderiam ser conquistados se um dia saísse da ilha.

‘’Um dia serei o capitão de um enorme navio Smee! Dominarei os sete mares e terei ouro o bastante para cobrir toda a sua proa. ’’ Era o que dizia quando divagava sobre seu futuro, já pensando em nomes para batizar sua hipotética embarcação. O pequeno Smee que até então nunca tivera qualquer ideia do que seria caso se tornasse adulto um dia, se viu completamente imerso nos sonhos de James, vendo que o seguiria até o fim do mundo se fosse preciso.

Em meio às lembranças Smee se deparou com a árvore que fizera parte de sua mágica infância. Cada vez que ele vinha apreciá-la, parecia que sua forma estava diferente, com os túneis mudando de formato e posição dependendo da hora em que a visitava. Era imponente, cercada por uma clareira de grama verdinha e límpida, porém sem uma folha sequer em seus galhos. Parecia-se com uma escultura, feita pelas próprias mãos da natureza.

Era ainda a mesma árvore de quando eram crianças. Tal fato, Smee pensava, deixava toda a circunstância ainda mais infeliz.

James realmente foi embora, um dia foi capaz de entediar-se com as maravilhas da ilha, por isso resolveu crescer e virar o capitão tão respeitado que almejava. E como um bom amigo e subordinado que sempre fora Smee resolveu se juntar a ele. Outros meninos até ficaram tentados a também acompanha-lo, mas a persuasão de Peter era forte demais para as crianças acharem que valia a pena abdicar da eterna infância.

Peter não impediu que eles fossem embora, contudo jamais foi conivente. Não se despediu, ficando amuado no topo de uma árvore de braços cruzados e rosto descontente, não querendo falar com ninguém até esquecer-se completamente de James. Coisa que não demorou tanto assim, dado que sua memória era péssima.

James foi embora remando um pequeno barco de pescador, e voltou vários anos depois no mais imponente dos navios de sua época.

Após alcançar toda a glória e ser temido por qualquer criatura viva no mar, o Capitão resolveu que estava finalmente na hora de voltar para a Terra do Nunca.

Não é como se tivesse retornado apenas pela nostalgia do lugar, isso estava nas últimas de suas intenções. O capitão era ganancioso e vigarista, sabia de todas as riquezas que aquele lugar guardava, além da tão almejada imortalidade. Contudo, não é como se tivesse esquecido por completo de todo o tempo que passou ali quando criança, por isso fora um tremendo choque a se ver recebido como a pior das criaturas por aquele que um dia foi seu amigo.

Peter não conseguia ver o Capitão como o James do qual havia conhecido há muito tempo atrás. Para o garoto tratava-se de dois indivíduos completamente diferentes e sem qualquer relação. Quem sabe realmente o fosse, todavia o Capitão ainda derivava do seu eu criança, mas crescer era coisa que Peter sequer compreendia. Apenas o via como uma grande afronta e ameaça contra seu reinado imortal.

O estopim obviamente fora a mão decepada e jogada ao crocodilo. Smee teve certeza daquele dia em diante que não adiantaria mais implorar para o Capitão que retornassem, pois o homem havia se afogado no próprio ódio de desejo de vingança.

Enquanto Peter continuava o mesmo de sempre, e este que era o problema.

— Senhor Smee! Aqui Senhor Smee! – O pirata se sobressaltou ao ser interrompido de seus pensamentos, arrumando os óculos e virando o rosto para o alto em direção àquela voz tão bem conhecida. Peter estava sentado de pernas cruzadas no galho mais alto da árvore, com uma expressão repleta de travessura e um sorriso que mostrava todos os dentes. Não parecia nada mais que um menino pestinha, porém vestindo o glorioso chapéu que antes pertencera a um dos mais temíveis piratas, Smee sabia muito bem que fora aquele menino que acabou com a vida de Gancho, fazendo com que caísse na boca do crocodilo.

— Oh... Olá Peter. – Disse sem jeito, não de forma entusiasmada como geralmente o fazia. Não sabia de que forma deveria tratar o garoto naquele momento, onde toda a tragédia havia recém acontecido. Sequer esperava encontrar o menino tão cedo assim.

Peter e os Garotos Perdidos não admitiam a presença de adultos na Terra do Nunca, entretanto Smee era uma exceção à parte. Talvez no fundo Peter lembrava-se dele quando criança, ou fosse por causa de sua personalidade doce e amistosa, um tanto contraditória para um pirata. Nunca negou conversar com as crianças, por vezes até participava de suas brincadeiras quando lhe pediam, sequer reclamando quando lhe arrancavam os óculos e embaçavam sua lente. Smee nunca havia sido uma ameaça, e provavelmente nunca o seria apesar das circunstâncias.

— Quer fazer parte de minha mais nova tripulação? Sou agora o capitão do maior navio que esses sete mares já viram! – Peter disse triunfante enquanto dava piruetas pelos ares, falando de forma como se Smee não tivesse participado de todos os eventos daquela conquista.

— Eu não entendo. – Smee murmurou abstraído por todo sentimento de luto, nostalgia e confusão que se misturavam em seu interior. Olhando para Peter como se o mesmo fosse um fantasma de um passado muito distante. – Vocês eram amigos...

— De quem está falando Senhor Smee? – Peter indagou curioso, aproximando-se do pirata e deitando no ar na altura de seu rosto, com as mãos recostadas na face como se estivesse preparado para ouvir uma história.

— Você, você e James. Não se lembra de nada Peter? – Questionou suplicante. O menino franziu o cenho, ficando em silêncio por vários segundos, tentando se lembrar de alguma coisa no meio de sua memória confusa entre fantasia e realidade.

— James? Ah sim, um ótimo oponente na luta de espadas! Uma pena que foi embora. – Disse enquanto flutuava ao redor de Smee, como uma lua rodando um planeta. – Mas ele sempre se achou de mais, nunca gostei disso. O que pensa sobre isso Smee?

Smee não respondeu, ao invés disso fechou os olhos e deu um longo suspiro. Estava exausto daquela terra de sonhos e fantasias.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.