Era véspera de fim de um ano que marcava também o final do século XIX e a pax britannica imperava no coração da cinza e nublada Inglaterra imperialista. Zepelins trafegavam pelo céu como baleias no mar e fascinavam as crianças sujas e livres que corriam pelas vielas batendo carteiras em alguns tipos mais desavisados.

Uma neblina permanente pairava sob Londres, como um lembrete do custo de todas as técnicas engenhosas produzidas nas últimas décadas; as chaminés de fábricas vaporavam fumaça dia e noite e o barulho das locomotivas, dos automotores e das charretes se ouvia de qualquer parte, independente do estrato social ao qual se fazia parte. O movimento, assim como o progresso, era uma constante no dia a dia dos citadinos.

Londres não parava sequer nos dias comuns de preceito religioso. As gigantescas igrejas de arquitetura gótica tinham seu apelo com os órgãos de tubo soando músicas tristes e solenes, mas tão forte quanto a moral vitoriana que ditava os costumes e as regras adequadas era o contra espelho que vigorava nas ruas, nos mercados, nos pensionatos e prostíbulos que aumentavam em páreo com a densidade demográfica.

A ascensão da burguesia em contraste com o trabalho desumano nas fábricas, os bons costumes em oposição ao espetáculos diversos, o ópio e o puritanismo, o frenesi junto ao receio do futuro, o aglutinamento de algumas classes sociais em pontos chaves da cidade: esse era o cenário em que Violet circulava, semi alheia ao que acontecia ao seu redor, a sobrancelha franzida em uma concentração obstinada de quem havia nascido sob a insígnia de alguma estrela teimosa.

Ela andava com a cabeça baixa, olhando as próprias botas de pontas quase gastas. As mãos iam nos bolsos das calças, o tipo de vestimenta que ela havia assumido como parte essencial do guarda-roupa quase como numa contra resposta muda ao vestido-farda de patrulheira que usava antes de ser promovida à detetive da Scotland Yard, o quartel general da Polícia Metropolitana de Londres. O novo salário vinha a calhar, especialmente agora que ela arrumara um local decente no Quarteirão dos Ateliês, um apartamento de dois quartos que não precisava dedetizar toda semana.

O trabalho, no entanto, se acumulava aos montes e envolvia uma burocracia que só não era pior do que aquilo: trabalhar debaixo de uma nevasca na véspera de feriado. Havia crimes de todos os tipos para resolver, mas seus casos teriam que esperar. O inspetor havia feito escalas de rondas com todo o corpo policial. Em fim de ano, os índices de brigas, roubos e tentativas de assassinato subiam como balões de ar no céu de privamera.

Vi tirou o relógio do bolso e suspirou.

Ali estava ela de novo, nas ruas como uma maldita novata, aguardando sua carona com aquele mau humor habitual que lhe era legítimo de berço.

— Onde diabos você estava? – ela vociferou para Caitlyn, sua parceira habitual e investigadora principal nos casos de homicídio. O motor do automóvel fumegava, o que sugeria que ela havia corrido bastante para encontrá-la com apenas dez minutos de atraso.

— Tente de novo, Violet – Kiramann sibilou, o humor não muito melhor do que o da mulher emburrada ao seu lado, no banco do copiloto. Ela costumava ser pontual como ninguém, então a falha apontada doía um pouco mais.

— Ok, ok. – Vi cedeu, sabendo que algo havia acontecido para Caitlyn, geralmente polida e educada, estar com aquela cara de quem poderia sacar o rifle adaptado a qualquer momento do coldre. – Você está bem, Cupcake?

Kiramann soltou o ar com força, meneando a cabeça.

— Vândalos por toda a parte, você não sabe o inferno que passei para sair da Travessa Oblíqua – Caitlyn contou e Vi até que conseguia imaginar a parceira costurando o trânsito entre automóveis e charretes, derrapando com os pneus, subindo em calçadas, desviando da multidão louca de pedestres bêbados e alucinados tentando comprar presentes de fim de ano.

— Oh, pobre Cupcake… - Vi riu, resvalando o braço direito no ombro dela em solidariedade.

— Não venha de gracinha, Violet, eu poderia ferir alguém agora - mas ela estava abrindo meio sorrisos enquanto fazia ameaças soltas e Vi sabia que já estava se sentindo melhor. Achou que aquele era o momento ideal para lhe oferecer o copo fumegante de café que tinha em mãos especialmente para ela e não errou no pressentimento.

Caitlyn olhou para o copo estendido em sua direção como se fosse um báu do tesouro se abrindo magicamente em sua frente.

— Violet, eu poderia te beijar nesse momento – ela agradeceu, sorvendo um longo gole da bebida enquanto guiava o volante com a mão esquerda.

— Por hora, eu prefiro que você continue dirigindo – Vi respondeu, satisfeita, sentindo o próprio mau humor dissipar um pouco.

De algum modo, mesmo situações ruins se tornavam suportáveis quando ela estava com a colega de trabalho. Vi não sabia se era algo no rosto bonito de Caitlyn, na sua personalidade tão fácil de fazer troça, no jeito como ela franzia o cenho quando estava intrigada, na troca de farpas e flertes tão natural entre elas ou no fato de que, como Vi, Cait parecia apreciar o fato de trabalharem juntas. Fosse o que fosse, era o que a impedia de surtar dia após dia (ela sabia que tinha uma personalidade um tanto explosiva).

— Certo. Qual o perímetro que precisamos cobrir hoje? - Cait, agora abastecida de café, falou em sua voz natural, mesmo dividindo as ruas com outros motoristas irresponsáveis.

Violet releu a datilografia do tubo pneumático e disse:

— Dos Mercados das Fronteiras até a Praça da Incognição. Depois de terminarmos o turno, acionamos Alfred e Pat, aqueles imbecis, para assumirem o posto na madrugada.

— Eu nunca pensei que pudesse ficar ansiosa para vê-los. – Caitlyn murmurou, tomando outro gole enquanto dirigia.

— A vida nos prega peças, Cupcake. - Vi refletiu, fazendo-a gargalhar.

— Definitivamente, V – Cait respondeu, pensando, na verdade, nelas duas.

Se alguém dissesse a Caitlyn há três anos atrás que ela teria como parceira uma garota vinda da subferia que gostava de socar coisas (e, por vezes, pessoas), que xingava como um marinheiro e que tinha um temperamento no mínimo difícil, e, mais do que isso, que essa era uma dupla que funcionaria, ela abriria um sorriso contido e questionaria internamente a sanidade mental do informante.

Mas ali estava ela, e mais do que admirar a colega de trabalho, sua agilidade de pensamento, sua lábia e perícia das ruas, Cait vinha tendo pensamentos perigosos sobre Vi, especialmente quando ela abria aqueles sorrisos tortos de lobo ou a chamava de Cupcake, aquele estúpido apelido que grudara como uma música popular de rádio. Nos últimos meses, vinha sendo uma tarefa árdua se concentrar em outras questões porque Violet tinha por hábito fazer ao menos uma das duas coisas de cinco em cinco minutos.

Por sorte, a cidade sempre era uma competidora à altura e exigia tanta ou mais atenção do que aqueles assuntos duvidosos de coração. A ronda delas começou no crepúsculo e se arrastou noite adentro. Juntas, Cait e Vi contabilizaram a prevenção de pelo menos oito furtos, a prisão preventiva de três lunáticos, o fechamento de uma barraca de venda suspeita de poções de um charlatão e a tentativa de roubo a mão armada de um comércio.

Às duas da manhã, quando elas se encontraram com os oficiais que iriam rendê-las e assumir o automóvel da polícia, não havia mais nenhum pensamento de fundo romântico na cabeça de Caitlyn. Tudo que ela conseguia pensar era em sua cama quente, macia, convidativa. Não importava que ainda estivesse tão longe de casa e precisasse pegar o bondinho e depois uma carruagem. Tanto ela quanto Vi não quiseram a escolta de volta para a delegacia, como era de costume. Preferiam voltar para casa por conta própria, sem carona de Alfred e Pat e as inúmeras piadinhas sexistas que eles tinham conseguido reter em seus respectivos cérebros minúsculos.

Caitlyn Kiramann era uma mulher exausta e mesmo ela não acreditava que tinha uma cota muito grande de paciência à essa altura do ano e da noite.

— Sabe, eu não sinto falta dos tempos de patrulha – Cait murmurou, massageando os próprios ombros, enquanto seguia a pé com Violet para a estação mais próxima. A cidade seguia acesa como um pinheiro festivo, os vapores das fábricas manchando as paisagens de tons de cinza.

— Já eu acho que poderia fazer mil rondas agora que nos livramos daquele uniforme horroroso. – Violet refletiu, parecendo revigorada.

— Você só está feliz porque pôde socar aquele infeliz petulante que desconhecia a força do seu punho – Cait revidou, fazendo-a sorrir.

— Bom, cada um se diverte como pode, Cupcake.

Caitlyn meneou a cabeça, ajustando o cachecol para proteger o pescoço. Elas estavam agora passando pela Boulevard das Cem Tavernas e pelo menos noventa e nove delas ainda estavam funcionando.

Havia bêbados de todas as categorias zanzando pela neve.

— Quão grata você ainda está por aquele café de hoje a tarde? Porque eu sinto que poderia receber uma cerveja de agradecimento nesse momento – Vi mencionou, olhando com cobiça para as luzes de um dos estabelecimentos que parecia limpo e aquecido o suficiente.

Caitlyn pensou novamente em sua cama, mas olhou para Vi e sentiu algo dentro dela ceder, como sempre cedia quando se tratava de Violet.

— Não é como se eu estivesse atrasada para algum compromisso importante, não é? – encolheu os ombros – Espero que você se lembre disso e continue a alimentar meu vício em cafeína – pediu, atendendo ao olhar de Violet e se dirigindo para o pub que ela encarava.

— Você é uma boa parceira, Cupcake – Vi sorriu, uma vez com um copo de chopp na mão – Prometo continuar alimentando seus vícios e tudo mais.

— Eu agradeceria mais se você pudesse prometer seguir minhas ordens no próximo ano.

— Ah, bom, eu achei que estávamos tendo um momento amigável aqui, Kiramann. Não me peça coisas impossíveis.

Caitlyn girou os olhos, embora não estivesse irritada de verdade. Violet era o que era. Em tese, ela estava numa posição hierárquica superior à ela em um nível, mas na prática, elas funcionavam de uma maneira mais horizontal e democrática (em outros termos, isto significa dizer que Cait traçava os planos e Vi os seguia quando achava que convinha).

— Longe de mim pedir coisas que você é incapaz de cumprir, V.

Violet a encarou por um instante por cima do copo quase cheio. Ela gostaria de poder dizer que às vezes se sentia capaz de coisas impossíveis por conta de Caitlyn e da estranha relação que elas tinham, mas as palavras se perdiam por dentro, não encontravam o caminho da verbalização. Por isso, tomou mais um gole em silêncio. Caitlyn estendeu um braço e também decidiu por um copo no fim das contas, o que fez V erguer uma sobrancelha.

— O que foi? Você mesma disse: estamos tendo um momento amigável aqui. – Kiramann se defendeu.

— Eu queria fazer algum tipo de piada, mas acho que é a primeira vez em dois anos que bebemos juntas após o expediente, Cupcake.

— A novos inícios? – Caitlyn propôs quando o garçom de braço mecânico lhe trouxe a sua bebida.

— Acho que posso me acostumar com isso – Vi respondeu, levantando o copo para o brinde.

Quando elas saíram, uma hora após a deliberação de entrar, a rua estava um pouco mais vazia e a neve caia fininha do céu. Cait aproveitava o torpor momentâneo do álcool no sangue e Vi parecia achar graça do episódio inusitado que protagonizaram, apesar de vestir bem aquele último dia do ano.

— Você consegue sentir? É o doce cheiro do dia de folga. Quais os planos para hoje? – Cait perguntou, aproveitando da alegria pueril oferecida pelo teor etílico no sangue.

— Hm… te levar para casa – era de fato o único plano de Violet. Ela não tinha pensado nada especial para o último dia do ano.

— Violet, eu sei me cuidar.

— Eu não duvido disso – ela decidiu ser condescendente; sabia que Kiramann era tão teimosa quanto ela própria – mas é para isso que parceiras servem, Cupcake.

— Eu tenho quase certeza que isso não está no seu contrato – Cait pontuou, parando de andar por um instante.

— Kiramann, são três da manhã… Acho que podemos deixar essa pequena discussão pro ano que vem.

— Na verdade, faz mais sentido se eu acompanhá-la até a sua casa – Cait a ignorou, decidida. – Fica mais perto. Como estamos estreando coisas, você poderia ser cordial e me convidar para entrar.

Violet olhou para ela com certa incredulidade. Nunca havia lhe passado pela cabeça que Cait teria algum interesse em conhecer o lugar onde ela vivia, mas tinha um bom argumento no fim das contas.

— Temos um acordo se você concordar em pernoitar por lá. – Violet revidou, decidida a ceder só até aquele ponto. – Há espaço suficiente para nós duas. – concluiu, sentindo-se subitamente envergonhada.

— Eu não vou atrapalhar? - Caitlyn perguntou, sentindo a voz esmaecer.

— Acredite, eu vou dormir bem melhor sem ter que considerar as chances de a minha parceira ser roubada, esquartejada e morta enquanto volta bêbada para casa.

— Ah, o espírito de fim de ano realmente combina com você, V. – Cait ironizou. – E eu não estou bêbada. Mas tudo bem. Temos um acordo. – ela estendeu a mão e tentou não pensar no calor que a palma de Vi lhe proporcionava.

Elas voltaram a caminhar em silêncio até a estação. No bondinho, um idoso cantarolava uma velha canção natalina, funcionários de fábrica de rostos abatidos cochilavam e/ou resmungavam a respeito do velho bêbado e Violet, ao lado de Cait, sentia uma estranha ansiedade aflorando no peito. De repente, questões domésticas como limpeza da louça ou roupas de cama para hóspedes zuniam em sua tela mental como um enxame de abelhas. Ela achava que o apartamento estava apresentável, mas a cada minuto que passava tinha menos convicção. Algo no sangue azul de Caitlyn ainda infligia em Violet uma sensação de insegurança em questões banais e corriqueiras.

Ela se mexeu com incômodo no assento e o gesto não passou despercebido.

— Você quer dividir comigo? – Cait perguntou baixinho.

— Hm? – Vi questionou, voltando à realidade.

— O que está te incomodando.

— Ah. – ela sentiu o rosto esquentar. – Eu estava apenas pensando se tenho fronhas limpas. – era uma verdade parcial e Caitlyn a acatou, sem insistir.

Quando elas saltaram, não levaram nem cinco minutos para chegar à residência de Violet. O apartamento estava limpo e, na verdade, ainda com cheiro de desinfetante. Cait abriu um sorriso de quem estava certa no momento em que Vi abriu a porta. Era um quartel general asséptico e minimalista, como ela imaginara.

Kiramann não precisava ser uma detetive para saber que a mania de controle e a tendência quase obsessiva de Vi com limpeza tinham raízes no seu passado difícil, sendo nascida e criada na parte da cidade onde ratos e crianças cresciam juntos com a mesma resiliência e força de vontade, apesar (ou justamente por conta dos) ambientes inóspitos. Pensar nisso lhe pesava o coração. Ela sentia uma mistura de impotência e frustração que lhe drenavam as forças.

— O sofá é mais do que o suficiente para mim, V – Cait afirmou, logo depois de elogiar o espaço.

— Não – Violet enfiou as mãos nos bolsos, incerta do que fazer. Ela não era boa com visitas. Ela não tinha ideia do que anfitriões receptivos faziam, então apenas seguiu com o protocolo que vinha em sua cabeça: – Você fica no meu quarto, eu fico aqui – disse de maneira categórica.

— Violet, isto é ridiculo. – Caitlyn riu de nervoso.

— Por que? No inverno retrasado, quando eu me feri, você me levou para a sua casa gigantesca e até onde me lembro, aquela era a sua cama.

— A casa gigantesca dos meus pais. – Cait corrigiu. Ela também tinha um lugar próprio agora. – E estamos falando de uma situação atípica, V. Você estava ferida, eu precisava checar você.

Essa também era uma meia verdade; era perfeitamente possível ter alocado Violet em um dos muitos quartos de hóspedes, mas ela não havia conseguido. Não havia nenhuma explicação racional para isso: na época, elas haviam acabado de se conhecer e Caitlyn já não conseguia imaginar como seria perdê-la.

A verdade inteira é que, muito antes de ser uma investigadora, Caitlyn era uma caçadora. Ela tinha se livrado do peso de matar animais ainda na pré-adolescência, mas isso não a impedia de passar longas horas no bosque que rodeava a propriedade dos Kiramann, atirando em miras a curta e longa distância que ela mesma marcava antes de iniciar. Também não a impedia de conhecer os jargões, de entender que toda e qualquer presa, com vida orgânica ou não, tinha um ponto fraco.

E o seu, ao que tudo indicava, era Violet.

Desde o início.

— Além do mais… – Caitlyn continuou, rezando para que sua expressão aparentasse normalidade: – eu não cedi minha cama. Nós dormimos juntas. – Concluiu como se a lembrança não fizesse seu coração falhar.

Violet a encarou sem dizer coisa alguma. Muitas vezes tinha questionado a si mesma se elas funcionariam tão bem se naquele primeiro caso em que trabalharam juntas as coisas não tivesse saído tanto do controle de ambas. Na noite em que ela se ferira em uma emboscada armada por um industrial corrupto, Caitlyn havia tentado protegê-la de todas as formas possíveis.

Nos dias posteriores, em que ela ainda estava fraca demais, Kiramann havia cuidado dela em sua casa e elas haviam passado muito tempo conversando sobre suas respectivas vidas pessoais, o que abrira aquele limbo em que viviam até então de uma relação que era, sim, profissional, mas também tinha laivos de… amizade profunda? Era difícil definir. Violet sabia apenas que levaria um tiro por Caitlyn (e se fosse muito sincera consigo, sabia que essa situação hipotética parecia mais fácil de lidar do que aquele princípio de pé de guerra no meio de sua sala de estar).

— Isso deveria ser mais fácil, Cupcake – ela disse por fim, sentindo-se repentinamente muito cansada.

— O que? – Caitlyn piscou, confusa.

— Não sei, nós duas – admitiu, com dificuldade de simular qualquer outra coisa àquela hora da noite. Ela estava em casa, por Deus. Era o único lugar do mundo em que não precisava se sentir tão armada e tudo que Violet queria era desejar “boa noite” e dormir como se não houvesse amanhã, apesar de saber que a presença de Cait (no quarto, na sala, o que quer que fosse) a impediria de pegar no sono a sério.

— É estranho, não é? – Caitlyn suspirou, cansada também – Você provavelmente é a pessoa mais próxima que eu tenho e ainda assim nós agimos como duas estranhas às vezes.

— É isso – Vi assentiu, coçando a nuca. – Quer saber? Considere um milagre de ano novo: eu vou apenas concordar com você – Anunciou, apontando para o sofá de maneira solene. – Sinta-se em casa.

E apesar de surpresa, dentro do possível, Cait se sentiu. Tomou um banho rápido no banheiro minúsculo e aceitou o chá de camomila que Violet lhe ofereceu antes de se despedir e entrar para o quarto. Ela havia deixado cobertores e travesseiros no sofá enquanto Cait se banhava e agora Kiramann se beneficiava de todos esses cuidados da dona da casa enquanto se aprumava para dormir. De algum modo, sua vitória tinha um gosto amargo. Era quase como se uma parte sua quisesse continuar aquela discussão boba com Violet pelo resto da madrugada apenas para ter a sua companhia. Ela respirou fundo, sentindo-se patética.

Na cama, Violet não se sentia muito melhor. Estava tentando com muita força ignorar o significado contido no fato de que havia deixado a porta entreaberta e que seu coração martelava a cada silvo de vento vindo da direção do corredor. A voz de Caitlyn dizendo "eu poderia te beijar agora" voltava fantasmagórica para zombar de seus delírios noturnos. Não parecia correto imaginar como seria sentir a boca de Kiramann sob a sua e, ainda assim, ela não conseguia impedir os pensamentos febris.

Levantou-se em silêncio, apenas para perambular de um lado para o outro como um espírito errante. Havia sido uma péssima ideia receber Caitlyn. Era fim de ano e Violet sentia esperanças bobas brotando em algum charco escondido do peito. Era ridículo. Vi se viu obrigada a arrastar-se de volta para a cama em agonia. Então sentiu sede. Levantou outra vez, agora com um propósito claro: andar de maneira furtiva e quieta até a cozinha para buscar um copo de água e voltar para o quarto sem fazer ruído.

Ela se dirigiu até a porta e a abriu no mesmo momento em que Caitlyn, também empossada de um propósito, pretendia bater, do outro lado. Se encararam em silêncio.

— Pensei a respeito e acho que prefiro dormir com você – Cair disse, limpando a garganta com solenidade, ciente dos ombros erguidos e tensos como cordas de um violino arisco – Se você quiser, é claro.

Violet encarou Cait sem piscar, com absoluta certeza que era um trote. Enquanto sua saliva quente estacionava debaixo da língua e sua respiração se tornava tão frágil quanto concreto, mil situações e respostas deslizaram seu cérebro voraz. Estava séria, e tinha olhos calmos quando puxou Caitlyn pela cintura, com as mãos trêmulas de quem aguardava por isso há tanto tempo. A vontade se manifestava cristalina. Era de Caitlyn que Violet tinha sede, e foi também de Caitlyn que ela enfim tomou os lábios. Quem perguntasse o que havia se desenrolado nos primeiros minutos e horas e dias do ano que se seguiu, seria abençoado com um sorriso de mil fogos de artifício que os olhos de qualquer uma das duas exibia naquele instante em que colaram as testas para se encarar e firmar novas resoluções de tempo e ano.

— A todo e qualquer novo início – concordaram em voz alta, antes de se beijar.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.