Terminaram de correr o andar para se deparar com uma porta contendo um aviso: Não abra, mortos dentro.

“Que merda é essa?”, Linn deixou escapar lendo a mensagem e dando um passo atrás, assustada, quando a porta sacudiu com o avanço dos errantes.

Sam estremeceu, mas permaneceu no mesmo lugar. Não porque fosse mais corajosa que a amiga, mas sim porque notou a grossa corrente e o forte cadeado que mantinham a porta fechada.

Apesar do susto, aqueles foram os únicos errantes que encontraram no prédio, assim como qualquer outra pessoa, e mesmo assim estavam presos e não ofereciam perigo imediato.

Durante a vasculha, encontraram a farmácia, mas ela estava saqueada, limpa e vazia, como nenhum outro lugar daquele prédio. Linn olhara consternada para Sam, e esta apenas deu de ombros. Seguiram pelo hospital sem perder nada de vista que pudesse ser útil, encontrando alguns preciosos medicamentos pelos quartos, na ala cirúrgica e outros cômodos. Como o hospital não era muito grande, levou apenas três horas para retornarem ao quarto de Rick.

“Que droga!”, Linn praguejou quando se aproximavam pelo corredor, notando a maca fora do lugar e a porta do quarto aberta. Ela correu à frente de Sam, aflita. “Ele não está aqui”, disse quando a amiga se aproximou arrastando a perna e entrou no aposento.

Sam se apoiou na porta e tentou esquecer a dor pelo esforço, os olhos vasculhando o local e notando que não havia sangue em parte alguma, bem como que o suporte móvel do soro estava no chão.

“Acha que ele... se transformou?”, Linn perguntou com uma nota de pesar na voz.

“Ou acordou.” Sam deu de ombros. “Em todo o caso, não é mais de nossa conta.”

Dando a volta para sair do quarto, Sam percebeu que Linn não a seguia.

“Linn?”, chamou um pouco assustada com o modo como esta encarava a cama.

“Precisamos encontrá-lo”, ela falou com a voz estrangulada.

“Não mesmo.” Sam foi contra. “Nem conhecemos o cara.”

Linn a olhou longamente.

Sim, sabia que Sam estava certa, não era racional o que sentia no momento, se importar com aquele desconhecido não era prudente e aquela necessidade de querer mantê-lo em segurança não era normal. No entanto, Linn sentia que aquela era a atitude certa a tomar.

Desviou os olhos da amiga e encarou novamente a cama vazia.

Sam estava se blindando. Ela fazia isso desde que se conheceram. Sam procurava formas de manter as pessoas fora do seu coração, porque quando alguém conseguia penetrar sua couraça, ela os abrigava ali dentro com tanto amor, que a dor em perdê-los era muito maior do que a de nunca tê-los possuído.

Linn, por outro lado, estava mais disposta a tentar, sempre estaria, desde quando não a decepcionassem. Nesse momento, e em todo o tempo até ali, batalhava para manter sua essência e aquela a vontade de se dar e tentar, sem medos ou receios. Lutava para não se transformar em um dos selvagens que vez ou outra surgiam no seu caminho, porque não queria ser como eles.

Nunca!

“Não vou me transformar em um monstro”, sussurrou mais para si mesma do que para Sam. “Não vou.”

Linn estava apertando com força o arpão na cartucheira da perna e a outra mão estava cerrada tão apertada que Sam pode notar e perceber que as unhas feriam sua palma.

As palavras de Linn soaram muito baixas, porém pôde ouvir com clareza o que ela disse e a dor e desespero que as acompanhavam.

Linn não queria se tornar alguém como ela, Sam deduziu. Linn, que sempre estava disposta a ajudar outros, que fora criada por um casal que a tirara das ruas e dera a ela esperança e um coração livre de quaisquer preconceitos, não aceitava o mundo atual e a forma como ele modificava as pessoas, tirando-lhes a humanidade em prol da sobrevivência.

Não importava quem era aquele homem, Linn só não queria perder-se. Parecia a Sam que ajudar o tal do Rick se tornara aquele divisor de águas para a amiga. Linn precisava ajudá-lo, caso estivesse vivo. E Sam não podia se furtar a auxiliá-la.

Aproximando-se do leito agarrou novamente o prontuário e verificou o endereço.

“Caso ele tenha se transformado, não há nada que possamos fazer”, Sam disse se aproximando de Linn. “Mas, se ele estiver vivo, aposto como está indo para casa e, nesse caso, podemos tentar encontrá-lo.”

“Acha que ele conseguiria?”, Linn falou acompanhando Sam para fora do quarto.

“Não sei.” Sam sacudiu a cabeça, o rabo de cavalo balançou de forma graciosa. “Mas ele me parece alguém com força o bastante para tentar.”

Ou sorte. Sam pensou.

Saíram do hospital sem maiores problemas. Sam guiou Linn pelas ruas, já que conhecia a cidade o bastante para saber que caminho seguir. Usando muletas, mantinha o passo rápido, ainda que muito mais lento do que costumava ser.

Tentaram conseguir um carro, mas foi impossível, sempre o era, apesar de Linn ser ótima mecânica.

Depois de quase uma hora, quando viraram uma esquina, o avistaram, mesmo que ele não pudesse lhes ver. Linn sorriu satisfeita. Sam ficou surpresa que ele tivesse realmente chegado até ali; no íntimo, havia desejado não encontrá-lo em lugar algum.

Pela distância não podiam ver se ele não era um dos errantes, mas estar ele no endereço de sua residência era um fator a mais para acreditar que não tinha se transformado.

“Um deles”, Linn pontuou e correu em direção ao caminhante, magro e todo de preto, que já se aproximava de Rick.

Sam capengou às suas costas, largando as muletas pelo caminho ao ver que Linn atirava com o arpão na cabeça do errante e se aproximava do ex-comatoso.

“Ele desmaiou”, Linn explicou quando Sam se aproximou. “Temos que levá-lo para um abrigo.”

Sam olhou para a casa ao fundo, número 817.

"É a casa dele”, falou e o agarrou pelas pernas, enquanto Linn se ocupava da maior parte do peso o segurando pelos ombros.

Algumas horas depois, tinham feito tudo que podiam para manter a casa protegida: janelas cobertas, entradas barricadas, enquanto se protegiam no porão.

Rick acordou quando a noite ia alta, ainda se sentia desorientado, mas consciente o bastante para notar que estava em seu porão, deitado sobre um colchão velho, mãos atadas e ainda semidespido, agora sem a bata do hospital, mas com um cobertor a altura da cintura. Sentiu uma fisgada do lado direito quando tentou soltar as mãos e praguejou alto.

“Ele acordou”, ouviu uma voz jovem e dura falar à sua direita e ele se virou para saber de quem se tratava.

Uma garota.

Muito jovem pelo pouco que podia ver. Seu cabelo era escuro e estava preso em um rabo de cavalo. Não podia precisar sua altura, porque ela estava sentada, mas parecia atlética. Tinha a mão apoiada contra as coxas e segurava uma faca de caça, que pareceu a ele muito afiada e bastante perigosa, pelo modo como ela lhe encarava.

Rick estreitou os olhos ao sentir a animosidade da garota, apesar de não entender o porquê.

Logo outra pessoa entrou em seu raio de visão: uma mulher, na casa dos vinte, ruiva e muito bonita. Diferente da jovem, ela lhe endereçou um sorriso, satisfeita.

“Quem são vocês?”, perguntou.

Sua voz saiu rascante pela falta de uso, baixa, grossa, diferente.

“Eu sou Linn”, a ruiva se apresentou. “Essa é Sam.”

“O que estão fazendo na minha casa?”, questionou com calma. “Por que me amarraram?”

“Precisávamos trocar seu curativo e não sabíamos como reagiria quando acordasse”, Linn explicou se aproximando e agachando ao seu lado, o joelho sobre o colchão.

“Pode me soltar?”, pediu.

“Claro, Rick”, Linn falou.

“Linn!”, Sam advertiu e a mais velha recuou.

Rick percebeu que não por medo, mas pareciam ter algum tipo de acordo sobre como deveriam tratá-lo.

A garota se ergueu e caminhou com dificuldade para próximo dele, a faca embainhada, mas com uma automática nas mãos.

“Preste atenção, xerife”, informou. “Vamos soltá-lo, mas se tentar algo, qualquer coisa... atiro em você.”

Ele acreditou.

Os olhos dela, castanhos claros, grandes e expressivos, não deixavam dúvidas de que ela atiraria nele sem pestanejar, caso ousasse ultrapassar qualquer limite que elas criassem.

“Como sabe meu nome?”, ele perguntou depois que Linn soltou suas mãos, massageando os pulsos para a que a circulação voltasse.

“Estava escrito em algumas cartas amontoadas na entrada”, Linn mentiu e Sam a olhou erguendo uma sobrancelha. No entanto, Rick pareceu satisfeito com a explicação. “Pensamos que tinha se transformado em um deles... em um errante.”

“Em quê?”, ele perguntou olhando de uma para outra.

“Em um morto-vivo andante”, Sam explicou.

Rick olhou para ela, notando sua perna esticada, a face em um ricto de dor, na forma arrastada como dizia as palavras. Cansada, foi o que lhe veio à mente para defini-la, ao encará-la com mais cuidado. Linn, no entanto, poderia ser descrita como esperançosa. Havia algo fresco que lhe tomava ao olhar para a ruiva, como se ela não se deixasse abater pelo quer que fosse que estivesse acontecendo ao mundo.

“Vi um corpo quando vinha para cá”, ele disse encarando Linn. “Estava...”, ele hesitou como se fosse penoso lembrar, ou horrível demais para conceber. “Estava desmembrada e parecia morta há muito, mas ainda se mexia.” Rick olhou para Sam. “Parecia algo saído de um pesadelo.”

“Sim, são como um pesadelo, apesar de serem bem reais”, Linn concordou. “Começaram a chamá-los de errantes”, Linn explicou sucintamente, do início. “Acertar a cabeça, atingir o cérebro, é a única forma de matá-los.” Terminou, por fim, seu relato.

“Não seja mordido ou arranhado”, Sam acrescentou, após escutar Linn contar tudo a ele.

Rick olhou para a perna dela onde o curativo podia ser visto por entre as abas do tecido rasgado da calça.

“O que houve com sua perna?”, perguntou perspicaz.

Sam sorriu ligeiramente, algo torto e não necessariamente humorado.

“Nada que seja da sua conta”, respondeu abrindo os olhos e o encarando. “Deve estar com fome”, afirmou e já ia se erguer, mas Linn fez um gesto para que ficasse sentada, caminhando para o outro lado do cômodo, no escuro, e retornando com uma lata e uma colher.

Rick começou a comer sem receios. Alguém não se preocupava em trocar os curativos de um estranho para depois matá-lo envenenado; mesmo que percebesse a má vontade da garota mais jovem em lhe ajudar.

Notou que Sam fechou olhos e adormeceu alguns minutos depois, mas Linn estava bem alerta e lhe encarava sem pudores, como se ele fosse um espécime raro. Percebeu que ela achava peculiar e interessante contar toda aquela história para alguém que parecia cético a cada palavra que ela dizia. Se não fosse pela errante da bicicleta, ele mesmo não teria acreditado em nada do que ela dissera e ela bem o sabia.

Ao pensar na forma como aquelas duas mulheres estavam sozinhas e desamparadas, mesmo que elas parecessem não precisar de ninguém, pensou em Lori e Carl, em como e onde eles estariam.

Linn falara que em Atlanta as forças armadas mantinham refúgios e lhe pareceu que sua família pudesse ter tentando se proteger em tal lugar. Lori tinha família em Atlanta e seguir para lá seria algo mais seguro do que permanecer em uma cidadezinha tomada e sem muitos recursos.

Mas talvez quisesse apenas se iludir. Conhecia a esposa, ela era um osso duro de roer, mas não a via com a determinação daquelas duas mulheres a sua frente, não para o tipo de luta que elas pareciam estar travando.

Lembrava-se das últimas palavras que trocaram, do que ela lhe dissera mais cedo naquele dia em que levara o tiro: Às vezes imagino se você se importa mesmo conosco.

Aquilo fora cruel e dito para magoá-lo. Levar tal lembrança dela, e de seus sentimentos quanto a ele como marido e pai, só tornava ainda mais imperioso encontrá-los e mantê-los seguros.

Fechou os olhos e pensou que talvez o mundo não estivesse tão despedaçado. Ainda tinha esperança no governo. Pelo que Linn dissera, aquelas coisas eram lentas, apenas em bandos podiam ser um perigo. Ainda podia acreditar que homens com competência para mandar um homem à Lua, teriam capacidade de lutar e vencer aquele tipo de praga.

Permaneceu por um longo tempo deitado, ainda acordado, pensando em Lori e em Carl, até que as duas deram sinais de que estavam em um sono pesado.

Mesmo que ainda tivessem suas reservas contra ele, elas pareceram confiar o bastante para baixar à guarda e dormir. Ou, quem sabe, estivessem apenas tão cansadas que foi impossível permanecerem acordadas quando podiam se dar ao luxo de descansar em um local relativamente seguro.

Com cautela se ergueu, usado o cobertor como uma manta, sentindo-se extremamente envergonhado por estar apenas de roupa íntima. Agarrando uma lanterna em sua caixa de ferramentas, subiu as escadas com cuidado, abriu a porta e caminhou até o quarto.

Com a lanterna, procurou na bagunça, e no meio do material empoeirado, por alguma peça de roupa sua que estivesse em condições de uso. No fundo de uma gaveta, encontrou uma calça jeans e depois caçou pelo chão uma blusa escura. Colocando a lanterna na cômoda, sentou-se na cama para recuperar o fôlego e vestiu a calça.

Estava vestindo a camisa quando alguém o agarrou e o jogou contra a cama. Tentou se livrar, mas rolou com ele para o chão e entrou em desespero quando o sentiu agarrar sua camisa e rosnar, avançando para lhe morder.

Um segundo antes que conseguisse seu intento, aquilo foi puxado e Rick pode divisar alguém com cabelos flamejantes o acertar na cabeça com uma faca.

Levou um susto de morte e virou para se defender quando uma mão o tocou no ombro, para se deparar com Sam. Ela lhe olhava com ódio, depois, um pouco compadecida.

Erguendo a mão, ela colocou um dedo sobre os lábios e pediu silêncio. Devagar apontou para a porta do quarto e Rick pode ver mais duas figuras zanzando do lado de fora, entre eles e o caminho que os levaria a entrada do porão, ainda desatentos ao que se passava ali dentro.

Procurou por Linn e ela já estava do lado da cômoda, agarrando a lanterna e a apagando. Rick deixou que os olhos se acostumassem à penumbra e percebeu o quanto imóvel as duas mulheres se mantinham. Fez um movimento de recuo, mas Sam apertou os dedos em seu ombro e ele compreendeu que não deveria se mexer.

A mão dela estava quente e parecia um pouco trêmula. Rick lembrou-se da forma como ela arrastou a perna, da dor estampada em sua face e no modo como ela apagara mais cedo, quando seu instinto lhe dizia que Sam fizera o possível para manter-se acordada.

Logo ela se afastou, esgueirando-se como pôde até a parede oposta, enquanto Linn fazia o mesmo do outro lado. Como um reflexo, elas seguiram até a porta, atravessaram, agarram cada uma seu errante, acertando-os por baixo do maxilar com suas facas.

Rick estremeceu com a cena. Era um policial e, para si, aquela ação mais parecia a um assassinato que qualquer outra coisa. Mas sabia que não o fora. Aquelas coisas estavam mortas, não eram mais pessoas e o que Linn e Sam fizeram, mesmo que ainda estranho aos seus olhos, se chamava sobrevivência.

Em poucos segundos, elas regressaram, ajudaram-no a se erguer e voltaram ao porão. Não havia tempo de verificar por onde eles entraram, principalmente se mais deles estivessem na casa.

“Seu desgraçado!”, Sam cuspiu na direção dele, a voz baixa, mas carregada de ódio.

“Desculpe”, ele apenas disse.

Sempre fora homem o bastante para admitir seus erros e ir lá para cima fora um dos grandes.

“Tire a camisa”, Sam mandou apontando a automática em sua direção, próxima o bastante para que Rick avançasse, agarrasse ao mesmo tempo a arma pelo cano e o pulso dela sem muita gentileza, torcesse e puxasse, terminando por apontar a bereta na direção dela.

Fora algo rápido, sutil, surpreendendo até mesmo ele, pois sabia que estava no limite de suas forças. Com elegância, ele tirou o carregador, expeliu a bala da agulha, pegando-a no ar, depois estendeu para Sam a arma descarregada, que ela agarrou em um puxão sem tato.

“A munição fica comigo até você se acalmar”, ele apenas disse. A voz soando de um modo imperioso, evidenciando uma autoridade que nenhuma das duas notara nele até aquele momento.

“Tire a camisa”, Linn pediu erguendo o arpão em sua direção, dando um passo atrás e se colocando fora do alcance dele.

Rick retesou o maxilar, depois retirou a camisa se virou para que elas tivessem certeza de que não fora mordido ou arranhado.

“O que você pensou?”, Linn perguntou. “Não escutou nada do que dissemos?”

“Vocês disseram que barricaram as portas”, Rick informou baixo, daquele jeito que Linn estava se acostumando a apreciar. “Precisava de uma muda de roupa.”

Sam se virou, afastou-se, agarrou algo e voltou, empurrando contra o peito dele: roupas limpas.

“Bastava pedir”, ela disse, os olhos fuzilando-o.

Ele suspirou, segurou as roupas e estendeu a munição para ela em um gesto de paz.

Sam pegou o carregador, depois se aproximou dele e sussurrou bem próxima, tanto que ela pode sentir o calor da pele dele e o seu cheiro: antisséptico e suor.

“Se colocar ela em perigo de novo, mato você.”

Seus olhos procuraram os dela.

Sim, ele se deu conta, aquelas não eram palavras vazias.