A primeira coisa que me indicou que as coisas estavam erradas foi o rastro largo e brilhante em suas bochechas altas.

A segunda engloba todo um conjunto behaviorista: a bebida entre suas mãos e pernas estiradas no chão do bar, seu tronco apoiado no freezer dos fundos, sua postura lânguida demais, abatida demais, frágil demais.

A terceira veio tão espantosa quanto inverossímil, estranha aos ouvidos e inconcebível à mente:

— O que você quer, Wannie?

Afundo as mãos em meus bolsos, convencendo a mim mesma de que isso não é meu trabalho. Mark deveria achar qualquer outra pessoa para dar cabo no marmanjão que causa problemas em bares pela noite, não jogar essa responsabilidade em meus ombros.

Inclino-me em sua direção, descrente com toda a leva de informações:

— O que está acontecendo com você, amigão? — pergunto diretamente, sem muitas esperanças de que ele escute, mas ele replica, afiado.

— Eu não sou seu amigo

Aperto os lábios, incrédula com a ideia de que todos esses anos em lei de silêncio seriam rompidos nesta trégua insensível e insípida.

— É claro que não — concordo com ele, respirando fundo e tomando a garrafa de suas mãos. — Vamos, levanta. A oferta de ajuda é unilateral mas não é finita, ela não tem tanto saco e precisa dormir.

Ele se levanta, tonto, enquanto o observo crescer em tamanho sem, no entanto, enxergar a postura orgulhosa que ele exibe toda vez que nos cruzamos pelos corredores da faculdade.

Parece apenas quebrado.

Quando atravesso a porta que dá acesso ao bar, Mark me alcança, parecendo desconfortável.

— Me desculpa, Wendy. Eu não sabia o que fazer com ele, só pensei em você.

— Tudo bem, Mark — respondi, lutando com o peso do homem em meus ombros — Só não pense mais em mim na próxima vez

O caminho a frente se torna utópico e inatingível, dado o peso; a circunstância por si só e o cheiro opressor de álcool exalando dele todo.

É incômodo, mas me parte o coração da mesma forma.

O velório foi há poucos dias, eu estive presente. Seu pai era um homem bom e gentil. Mesmo naquela época, quando os boatos se espalharam pela cidade e eu me senti na obrigação de pedir perdão à ele, eu não fui julgada precipitadamente, nem por um momento.

No final, isso era tudo que eu esperava do filho, uma resposta tão íntegra e convicta quanto a do pai.

É óbvio que você se enganou feio, Wendy.

Olho por cima do ombro para a figura concentrada em acertar os passos, reparando bem em seus olhos avermelhados, ainda cedendo lágrimas frescas ao relento.

— No final, ele se foi como um criminoso. Não há julgamento justo aqui.

Quero dizer que ele está errado, que o homem não tinha dívida alguma com a sociedade, que era uma das pessoas mais justas que conheci, mas temo inflamar o fogo mais que me autoafirmar novamente.

Ainda dói, principalmente porque tudo aconteceu à custa da imagem dele. Dói porque de todas as pessoas do mundo, a última que eu esperava duvidar de mim era esse garoto que agora carrego sofregamente nos ombros. Dói porque para autoafirmar minha própria verdade, eu inflamei minhas convicções de uma maneira que jamais poderia retornar à sua forma natural.

E no final, nossos laços já haviam sido rompidos, indiferentemente de quem estivesse certo.

E dói ainda agora, quando penso no que poderíamos ter sido lá atrás. Ele entrou, trouxe as malas, fez morada, bagunçou meus dogmas, e se foi.

E eu fiquei. Parada no tempo, incapaz de seguir em frente, ainda segurando sua bagagem.

— Ele me dizia "filho, assuma seus erros, vá se acertar com a menina Son", como se a sua fé em você bastasse.

Eu não queria estar com tanta expectativa nas palavras de uma babosa embriagada, por isso já fui cortando.

— Pare de falar, cara. Faça esse favor a mim e a você.

Surpreendentemente, ele parou. Subimos alguns morros, meus pulmões fritando quando alcançamos o portão da sua casa. Não havia ninguém esperando-o, eu sabia. As pernas desajeitadas que subiram os degraus da entrada quando o soltei me disseram que eu não podia deixá-lo por conta, mas isso eu também já sabia.

— Wannie... — ele começou, lerdo, quando eu enfiei a mão nos bolsos de seu casaco para achar as chaves da casa.

— Não me chame assim

A casa continuava a mesma, só que agora com uma montanha de louça suja e panelas ainda esquecidas no fogão. Ele não fez cerimônia quando seus olhos avistaram o sofá, só atirou-se ali.

— É só que... — ele continuou, encolhendo as pernas instintivamente — A escola...

Meu Deus, ele pretende dormir mesmo nesse sofá, pensei, tomando a liberdade de seguir alguns cômodos adiante. As noites estavam mais frias nessa semana, e de toda forma, se ele estivesse pensando que eu ia tirar os seus sapatos, que já soubesse desde já que as cobertas seriam o máximo de empatia que ele teria vindo de mim.

— Depois dela... Eu soube que o boato partiu de outra pessoa.

Voltei ao sofá, incrédula. Ele estava encolhido entre as almofadas, já sentindo o frio vindo das canelas. Novamente, tratei de me lembrar de que eu não deveria manter tanta expectativa nas palavras grogues de uma babosa bêbada, abrindo cobertor após cobertor em cima de seu corpo.

— Ah, é? — incitei, ainda inconformada com a informação, subitamente mais triste que revoltada — É agora que você vai me pedir desculpas? Dizer que sente muito por ter me afastado da sua vida?

— Eu não pedi desculpas a você antes porque... Depois de tudo... Eu só... Não queria mais.

Com as mãos eu nivelei a trama do cobertor em seu corpo, demorando-me com os olhos em seu rosto mais tempo do que o habitual. Parecia relaxado, os cílios ainda molhados, a boca aberta e amassada contra o estofado do sofá.

— É um direito seu, amigão. Fique bem.

E saí, deixando o garoto desmaiado, a casa em desordem, seus sapatos emparelhados no tapete de entrada e com sorte, um pouco da bagagem desarmônica que carrego.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.