Aquela manhã estava fria naquela cidade quase desconhecida para Laura, que deambulava sozinha pelas ruas. As suas mãos estavam frias, apesar de tapadas pelo tecido das luvas tom de creme, outrora brancas. O cachecol que usava não protegia as suas faces, agora avermelhadas pelo frio.

Um suspiro escapou dos lábios de Laura, transformando-se em vapor de água – ela sorriu, lembrando-se que, quando mais novo, o seu irmão Xavier fingia que era um dragão quando o vapor de água se formava naqueles dias frios. Era uma memória terna.

Voltou a olhar para o papelzinho, um pouco amassado, que tinha em mãos. Nele estavam as indicações para chegar a uma livraria, onde tinha um livro difícil de encontrar. Laura queria oferecê-lo ao Tim, o seu irmão mais velho, como presente de Natal. Não sabia como ir para lá. Era o seu terceiro dia naquela cidade e já tinha gasto os seus dados móveis, um erro quase que fatal na opinião dela, visto que naquele momento estava desesperada para encontrar a bendita livraria.

Mais outro suspiro.

Olhou para o lado e viu uma bela mulher encostada à parede, provavelmente com a mesma idade que ela. O seu cabelo loiro estava preso numa trança, com uma boina, e usava óculos, porém, o que chamou mais atenção foi o batom vermelho presente nos lábios dela.

Laura engoliu em seco. Talvez fosse sorte, ser abençoada por tal vista. Com o seu melhor sorriso para passar boa impressão, aproximou-se. Iria aproveitar a oportunidade para falar com ela.

— Bom dia, vive nesta cidade?

A mulher olhou para ela, arqueando a sua sobrancelha. Por que ela estava a falar consigo? Os seus olhos indicavam que ela estava a analisar Laura; sorriu, como se tivesse gostado do que estava a ver. A belga ficou nervosa, as borboletas apareceram na barriga sem convite.

— Sim.

— Ótimo! Será que me pode dizer onde é esta livraria? – Laura mostrou o papel e a mulher leu. Esta ajeitou os seus óculos com uma mão antes de responder.

— Tens que ir pela rua principal e virar na segunda cortada à… esquerda. É por aí. Sim, é por aí.

Laura agradeceu e dirigiu-se para onde aquela mulher tinha indicado, feliz com o seu feito.

Uma limusine parou à frente da mulher e saiu um homem vestido à mordomo – até porque era um.

— Demoraste, Francis.

— Mademoiselle Emilie, peço perdão, mas a vi com aquela senhorita e pensei que seria indelicado interromper a vossa conversa. – Francis respondeu, com um sorriso no seu rosto. Ele sabia da preferência da sua senhora.

— Era somente uma turista a pedir por direções, não tenhas ideias erradas.

— Direções? – Francis questionou-se, abrindo a porta para Emilie entrar. – E a Mademoiselle soube dar? Só anda de limusine…

Emilie entrou na limusine, sem responder. Talvez tivesse dado direções erradas só para parecer simpática; não tinha culpa se não conhecia a cidade em que morava.

De qualquer forma, ela nunca mais voltaria a ver a outra.

Ou foi o que pensava.

Tu.

Emilie desviou o olhar, fixando-se na janela do comboio. Não esperava encontrar a outra assim tão rápido, muito menos ali, nos lugares da primeira classe.

— Tu mandaste-me para o lugar errado. – anunciou Laura, sentando-se ao lado de Emilie. No lugar pago pela última.

— Esse não é o teu lugar. – vocalizou somente isso.

— Não devies o assunto!

Emilie perguntou-se quanto tempo Francis demorava a chegar com as bebidas. Devia ter ido de limusine, apesar de que seria mais desconfortável – mais para o Francis do que para ela, ela tinha que admitir. Tudo por culpa do jantar de Natal em família; que família também? A dela era uma farsa. Casamento organizado para a prosperidade de uma fortuna que Emilie viria herdar se o seu nome ainda constar no testamento.

Mulheres. Era a razão da última discussão calorosa com os seus pais. Emilie Massy, mulher considerada perfeita, cheia de dotes e cortejada por muitos, amava mulheres com todo seu coração e alma. E os seus pais só queriam um herdeiro – que, a bem da verdade, Emilie não estava disposta a dar. Não gostava da ideia, nem sabia lidar com crianças.

— Mas encontraste a livraria, não foi?

— Sim, no outro lado da cidade!” Laura revirou os olhos. – Podias ter dito que não sabias onde estava.

— Podia, mas depois ficava a parecer mal não saber onde fica uma das livrarias mais conhecidas da cidade onde moro.

— Melhor do que uma sabichona que manda os turistas pro outro lado da cidade!

Emilie fez um barulho com a língua, cruzando os seus braços.

— Pensei que nunca mais te iria ver.

— Mas aqui estou. – Laura piscou o olho, formando nos seus lábios um sorriso sarcástico. – No fundo, querias me ver de novo.

Não houve oportunidade para Emilie falar, uma vez que Francis chegara com a bebida pedida dela.

— Mademoiselle Emilie, aqui está a sua bebida. – Anunciou, entregando o copo. O seu sorriso dizia tudo.

— Francis, nem penses nisso!

— Oui, oui. – olhou para Laura. – A menina vai desejar algo?

— Quê- não! Não é preciso! Obrigada!

— Com certeza. – Respondeu somente isso, sentando-se nos bancos à frente.

Laura apercebeu-se que o lugar onde estava fosse de Francis, porém não chegou a verbalizar – a porta abriu-se e o revisor passou por ela. Laura engoliu em seco; estava no lugar errado, que consequências aquilo poderia arcar? Logo ela, professora universitária de direito, estar em tal situação por conta de Emilie.

Mas Francis tomou a iniciativa e mostrou três bilhetes ao revisor. Este verificou, desejou uma boa viagem e seguiu em frente.

Laura suspirou de alívio.

— Obrigada, Francis!

— Sempre às ordens. – Ele balançou a mão. – Perdoe-me, mas qual é o seu nome?

— Laura Janssen, prazer.

— O prazer é nosso; o meu nome é Francis Bonnefoy, ao seu dispor, e a senhorita que está ao seu lado chama-se…

— Eu sei falar, Francis. – Advertiu Emilie, pousando o copo, agora vazio, no suporte.

— Perdoe-me, Mademoiselle.

— O meu nome é Emilie Massy.

Laura observou os lábios de Emilie, ainda impecáveis, apesar de ela ter acabado de beber alguma coisa.

— Massy? Como aquela empresa de jóias famosa?

— Exato; pertence à minha família.

O rosto de Laura revelou a surpresa sentida. Um “wow” escapou dos lábios, como um sussurro.

— Bom, de qualquer forma, não me dou bem com a minha família. – Emilie sorriu. Talvez se contasse a sua história, a outra acabar-se-ia por afastar e ela teria, por fim, paz. Bastava Laura agarrar na isca.

— Oh, por quê?

— Tivemos uma discussão. – Olhou pela janela, na tentativa de assumir um ar melancólico. – Eles não gostam da ideia de que eu não quero ter um herdeiro ou um marido. – Voltou a olhar para Laura, pronta para o grande final. – Afinal, eu gosto de mulheres.

— Ah, também eu- digo! – Laura corou horrores e Emilie arregalou os olhos. – Também gosto de mulheres, mas tenho boas relações com a minha família…

Emilie amaldiçoou o destino por ter atraído uma lésbica; o seu plano tinha falhado miseravelmente. Enquanto isso, Francis aguentava a sua risada – que situação a sua senhora tinha se metido!

— Sério? Que bom. – Emilie meramente disse isso, sem saber como progredir.

— Hmmm, mas entendo como é não concretizar os objetivos dos pais. – Contou, ajeitando-se no banco confortável. – Sabes, a minha família é formada por advogados. Os meus pais, os meus irmãos… mas eu não quis, não gostava da ideia. Queria ser outra coisa, mas mesmo assim tirei o curso de direito. A minha professora notou que eu não queria ser advogada, que eu só estava a seguir as pisadas da minha família, então sugeriu que me tornar-se professora de direito como ela e voilà, sou professora universitária.

Emilie ouviu com atenção e interesse à história de Laura. Outro sorriso escapou dos lábios, desta vez um sincero.

— Com que então a professora universitária de direito anda a se sentar no lugar errado de comboio propositadamente?

— I-isso! Não tem nada a ver!

Desta vez, Emilie riu-se, a primeira vez após tanto tempo. Tanto Laura como Francis foram apanhados de surpresa. Emilie aproximou-se de Laura.

— Gostei de ti, Laura. – Confidenciou baixinho, como se fosse um segredo que ninguém poderia saber. – Estás livre daqui dois dias, por volta das 5 horas?

— Acho que sim? Por quê?

— Estás convidada para a hora do chá.

Laura arqueou a sobrancelha, afastando-se um pouco para poder olhar melhor para a outra.

— Francis, anota a morada dela. Vais buscá-la.

— Com certeza, Mademoiselle Emilie.

— Espera, quê-.

Ela não conseguiu contrariar a vontade de Emilie e também não conseguiu explicar a Tim o motivo de Francis estar à porta da casa deles com uma limousine.

— Vim buscar a Mademoiselle Laura. – Anunciou Francis, provavelmente sem saber o risco que estava a enfrentar.

— Quem tu és? – A voz de Tim fez com que Francis sentisse arrepios. Agora sim, ele sabia o que estava a enfrentar.

— Tim, eu disse que eu ia tomar chá com… uma amiga.

— Com ele?

— Não, com a chefe dele!

— Perdão por interromper. – Francis começou, com a mão no queixo. – Mas a Mademoiselle Laura vai com essa roupa?

— Sim, por quê?

Francis suspirou; Laura estava bonita, de facto, com uma camisola amarela e calças jeans, mas o evento que era iria frequentar não era somente uma festa do chá, muito pelo contrário, era muito mais que isso. Porém, Emilie tinha previsto esta situação e Francis tirou da limousine um vestido formal.

— Por favor, vista isto e, quando terminar, avise-me para eu tratar da maquilhagem e do cabelo. O mais rápido possível, por favor.

Emilie, assim que avisada de que Francis e a convidada dela tinham chegado, dirigiu-se até à porta de entrada. O seu coração quase parou quando viu Laura no vestido verde escuro de saia longa e esvoaçante, com as mangas de tecido verde transparente e bordados de flores.

Por outro lado, Laura engoliu em seco quando viu Emilie no seu vestido vermelho de cauda de sereia e de mangas curtas caídas, com rendas no decote. O seu cabelo estava apanhado numa trança presa num coque.

— Meu Deus. – Laura não se conteve. – Estás linda!

— Obrigada. – Emilie aproximou-se e sorriu. – Fico feliz que o vestido que escolhi para ti fica-te bem.

— Podias ter dito que era uma festa formal, eu tenho vestidos formais…

— Bom, ver-te com algo que eu escolhi é satisfatório.~

Laura corou horrores e murmurou um “obrigada” envergonhada. Tinha a certeza de que Emilie estava a flertar com ela e o pior é que estava a funcionar.

— Vem, vou te apresentar aos meus pais.

Ambas dirigiram até ao salão onde estava a ocorrer a festa do chá – que não tinha nada de festa do chá. Várias pessoas importantes estavam reunidas naquele lugar e a principal bebida era vinho francês.

— Não entendo a tua definição de chá.

— Tradicionalmente, 5 horas é a hora do chá, não é?

Emilie agarrou no braço de Laura e arrastou-a até aos pais dela. Quando estava perto, fez uma vénia aos pais. Laura a imitou.

— Pai, mãe, permitem-me que vos apresente Laura Janssen, professora universitária de direito.

— É um pra-.

— Que história é essa, Emilie? – O pai de Emilie interrompeu Laura bruscamente. – Tua namorada?

— Eu não-.

— Sim, pai, ela é a minha namorada e futuramente a minha esposa.

De novo, Laura parecia que ia ter um ataque cardíaco ao ouvir aquelas palavras.

— Só queria vos apresentar mesmo. – Emilie sorriu sarcasticamente e agarrou na mão de Laura com carinho; um contraste de ações. – Por favor, aproveitem a festa.

Ambas afastaram-se do casal e foram para a varanda, onde poderiam conversar com alguma privacidade.

— Desde quando sou a tua namorada?

— Desde agora. – Emilie apoiou-se no muro da varanda, observando a fonte que se encontrava no centro do jardim. – Pode ser uma farsa ou de verdade, como quiseres.

— Oh, então vais me dar opção de escolha?

Não me queres ajudar?

Laura fez um barulho com a língua e apoiou-se no muro também, muito próxima de Emilie.

— Bom, se é para namorar, que seja a sério, mas aviso-te que ser professora deixa-me com pouco tempo livre.

— Tudo bem.

Ela aproveitou-se da proximidade delas e beijou a bochecha de Laura, que corou pela surpresa.

— Estarei no teu cuidado, querida.~

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.