—Você não é daqui, não é?

—Só dirija o veículo, por favor.

Renée Montoya não estava de bom humor. E nem tinha motivos. Quebrara uma unha. Perdera suas chaves do carro. Terminara com a namorada. Estava em Nova York. Fora designada a uma missão que ela particularmente detestou. Assim não foi sem motivo que ela falara rispidamente com o taxista, apesar de aquele homem não ter culpa alguma em qualquer um dos acontecimentos citados.

Ela ajeitou o cabelo com desânimo. Sempre o mantivera amarrado para possíveis e vindouras necessidades. Era uma mulher vaidosa, mas o trabalho vinha em primeiro lugar. Cruzou as pernas, olhando pela janela, e se interessando muito pouco pelo que via lá fora. Alguns hidrantes. Muitos prédios. Muita gente. Um sol fortíssimo. Ela sentiu falta do tempo nublado ao qual estava acostumada. Sentiu falta das poucas pessoas que ocupavam as calçadas. Sentiu falta dos prédios assustadoramente altos onde gárgulas repousavam com suas carrancas por toda a eternidade. Estranhamente, sentiu falta de sua cidade. Sentiu falta de Gotham City.

Gotham. A cidade mais obscura em que uma pessoa poderia colocar os pés. Infestada de ladrões, assassinos, névoa, e pior... Loucos. Alguns temiam os loucos, pois eram normais o suficiente para saber que o lugar deles era dentro de uma sala acolchoada. Alguns fingiam-se loucos, assim poderiam justificar suas ações sob o manto da demência. Alguns caçavam loucos, estes mesmos não sendo nem um pouco normais, verdade seja dita. Mas alguns... Eram loucos. Desprovidos de qualquer senso moral ou barreira empática, espalhavam o terror pelas ruas e, quando presos, faziam todos passarem a maior parte do tempo temendo sua fuga. Gotham era infestada de loucos. Mais do que isso, ela tinha o espécime mais puro do que poderia ser classificado completa insanidade. O perfeito louco...

Montoya paga o taxista, dizendo mentalmente um palavrão. Tivera uma manhã péssima. Tivera de se apresentar numa delegacia nova iorquina, apertada, abarrotada, abafada e barulhenta, para só então poder prosseguir com sua missão. Sua missão. Ela piorava o teor do palavrão imaginado a cada vez que se lembrava de qual era sua missão. E se lembrava de tudo que esta acarretava. Montoya fechou os olhos.

Os gritos. O som dos golpes impiedosos. Os tiros. As risadas...

Os pelos da nuca dela se arrepiaram. Ela entrou no grande prédio à sua frente, sem fazer questão de olhar sua fronte metalizada, passando pelo hall e mostrando seu distintivo na recepção. Subiu as escadas em silêncio. Queria pensar em outra coisa. Qualquer coisa. Pensou na namorada. Arrependeu-se. Olhou para os degraus. Continuou subindo. Detestava elevadores.

Chegou ao segundo piso. Já estava coberta de suor. Tirou seu terninho azul, que combinava com a calça, e pegou o elevador. Não aguentaria subir mais 30 levas de escada. Não naquele calor.

Montoya enxugou a testa, suspirando audivelmente. Estava sozinha no elevador, assim podia se permitir certos exageros. Enquanto o elevador subia silenciosamente, uma pequena televisão transmitia o jornal do meio dia. A detetive começou a assistir com atenção. Qualquer coisa para esquecer aquela caixinha de ferro horrenda em que se encontrava trancafiada. Na tela, um âncora de roupa engomada falava rapidamente com voz gutural.

Mais uma obra foi inaugurada no Harlem, desta vez um complexo cultural para famílias carentes cuja construção foi patrocinada pelas Empresas Wayne. O próprio Lucius Fox esteve presente e deu o discurso pouco antes de cortar a fita vermelha e inaugurar a construção.

Este lugar” dizia Fox, em uma tribuna pequena, falando a uma centena de pessoas. “é apenas mais um passo para tornarmos a vida destas pessoas algo do qual elas possam se orgulhar. Fizemos isso em Gotham, e agora estamos aqui, e, se Deus permitir, levaremos isso para além do oceano, e por fim para o mundo inteiro. Não fazemos isso apenas para ter uma boa imagem. Não fazemos isso por nós. Isto é em homenagem a Bruce Wayne. Se ele pudesse estar aqui conosco, com certeza se orgulharia, e faria questão de... Dar um discurso melhor do que o meu.”

Neste momento a imagem voltou para os estúdios e o âncora voltou a falar.

As Empresas Wayne tem se afastado cada vez mais do ramo armamentista e se engajado em empreendimentos humanitários, sustentáveis, e com o ramo tecnológico e científico de ponta. Apesar disso, continua como a maior concorrente às Industrias Stark na projeção e construção de equipamento bélico. Em Nova York, já foi responsável pela construção de 11 complexos como o inaugurado hoje no Harlem.

Neste momento, a repórter ao lado do âncora começou a falar.

Notícias internacionais: T’Challa, príncipe do império de Wakanda, na África, enterrou hoje seu pai, T’Chaka, até então o rei, numa cerimônia aberta ao público. O cortejo formado pela família real, pela guarda imperial e pelo povo em geral carregou o caixão do monarca desde o palácio real até um cemitério tribal, onde as últimas honrarias foram feitas. A morte de T’Chaka põe fim a uma era de paz e prosperidade, tanto dentro como fora do reino. Cabe agora ao novo rei seguir os passos do pai, e guiar Wakanda daqui para frente.”

Renée escutava aquelas notícias sem prestar muita atenção, vendo imagens exclusivas do príncipe ao lado da esposa, que possuía um longo cabelo completamente branco.

—Belas madeixas... — murmurou Montoya, percebendo que chegara ao andar desejado, e as portas se abriram. Ela saiu do elevador, dirigindo-se a uma antessala de tamanho médio, mas austeramente decorada, pintada de cor gelo e sem quadros, onde uma secretária de cabelos castanhos e cacheados digitava em seu computador numa velocidade assustadora. Tal levantou os olhos, sorrindo para Montoya.

—Detetive Renée Montoya?

—Sim.

—Sua visita já é esperada. Entre, por favor.

Montoya sentiu algo estranho no estômago. Talvez fosse o cachorro quente que comera pouco antes. Ou talvez fosse medo. Ela já estava sendo esperada. Por algum motivo isso a assustou. Olhou para a porta dupla à sua frente, esta fechada. O que ela encontraria além dela?

Sua mente vagueava entre memórias vagas e antigos medos. Seus tempos como policial em Gotham. Maus tempos...

Ela colocou de volta seu terninho, respirando fundo e indo até a porta, girando a maçaneta e entrando. Viu-se dentro de uma sala ampla, bem arejada, com janelas imensas e retangulares que circundavam todo o aposento. No meio dele, uma mesa também retangular de madeira escura e bem encerada, com cadeiras do mesmo material ao seu redor e separadas em espaços absolutamente idênticos. Um lustre pendia do teto. Nada especial nele. Uma música tocada ao piano ecoava para além das janelas, soando tanto calmante como enervante, dependendo ao estado de espírito pré-adquirido do ouvinte.

Renée parou ressabiada. Do outro lado daquela mesa gigante e lustrosa, jazia um homem alto, magro, metido num belo terno preto bem passado, encarando tranquilamente a cidade além da janela. Uma janela gigante, diga-se de passagem.

A detetive deu um passo à frente.

—Sr. Napier?

O homem se virou. Sua face era aquilina, extremamente pálida, e tinha leves olheiras. No entanto, não podia se dizer que ele não era um belo homem. Era na verdade muito atraente. Um esboço de sorriso surgiu em seus lábios cianóticos. Sua postura era absolutamente ereta, como se houvesse algo segurando seus ombros para trás. Os sapatos eram brilhantes, e a gravata possuía um nó que Montoya jamais vira e não tinha ideia de como fora feito. O cabelo preto bem penteado terminava a aparência perfeita daquele homem. Perfeita. Apenas seus olhos o traíam.

Olhos de um verde intenso, e brilhantes como duas tochas. Montoya sentiu-se congelar. Aquele não podia ser...

—Det. Renée Montoya, eu presumo. — disse ele, indo até ela e cumprimentando-a.

—Sim.

—Jack Napier, muito prazer.

Montoya teve um sobressalto. Cumprimentar Napier foi como cumprimentar mármore. Apesar da aparência extremamente magra, pelo visto ele era também extremamente forte.

—O prazer é meu, Sr. Napier.

—Gosta das janelas? — disse ele. Ela não reconheceu aquela voz. Ela se lembrava da voz rascante e perfurante de antes, que sempre precedia alguma tragédia sem antecedentes. Esta era sedosa, cadenciada, apesar de aparentar possuir uma calma artificial. De fato, tudo naquele homem parecia artificial. Como uma maquiagem...

—Como disse?

—Janelas. São grandes. Mostram a cidade inteira. Linda cidade. Meu psiquiatra me orientou a ver beleza e qualidades em tudo. Fez boa viagem?

—Sim, obrigado.

—Sempre usa terninho?

—Perdão?

—Não estou me desculpando. A secretária vive se desculpando, seja por quedas, manchas, ou mesmo atrasos. A mãe dela fabrica bolinhos de chuva caseiros. Acho que ambas são católicas. Acredita que ateus vão para o céu?

—Hmm, eu não sei...

—Não quero tomar de seu tempo, você deve ser ocupada. O que quer ver primeiro?

—O de sempre, acho que já conhece a rotina.

—Certamente. — ele começa a caminhar. — Venha comigo, por favor. Olá, Silvia. — ele diz para a secretária. Os dois saem para o corredor. — Como deve saber sou o diretor desta empresa.

—Você a criou?

—Desde de que ela era uma mudinha. — ele disse olhando diretamente para frente. — Sem parcerias. Detestaria depois de tanto trabalho acabar por ser demitido de minha própria empresa só por que os outros investidores são a maioria. Levantei-a sozinho, e agora ela é uma bela árvore. — eles pegam o elevador, e Napier aperta um botão. — A Napier e CIA tem por objetivo produzir produtos sustentáveis que manterão nosso planeta vivo por muito mais tempo. Afinal, um planeta saudável tem mais motivos para sorrir, não acha?

—Parece interessante.

Eles saem do elevador, e Montoya se vê num andar pintado todo de branco, cujas salas eram separadas por paredes de vidro compensado e pessoas vestidas de branco andavam para lá e para cá.

—Aqui é o ninho da inteligência. Não gosto que as grandes mentes fiquem trabalhando longe de mim, só Deus sabe o que tramariam... Tenho cientistas, engenheiros, biólogos, os melhores em seus respectivos ramos. Creio que melhores que eles só os que trabalham nas Empresas Wayne. — Napier abriu a boca. Parecia que estava prestes a soltar uma gargalhada. Mas daí fechou-a rapidamente, voltando a andar com ar bem menos animado. Limpou a garganta. — Deverá perdoar minha falta de bom humor. Meu psiquiatra me orientou a evitar sorrisos largos e risadas, e principalmente piadas. Nem imagino o porquê, mas regras são regras.

—Entendo.

Ele abre uma porta que levava a uma das salas de vidro, esta repleta de mesas e computadores de última geração.

—Por favor, entre. Pode fuçar à vontade, apenas não os atrapalhe.

Montoya olhou ao redor, para todas aquelas pessoas, e resolveu que não iria incomodá-las.

—Acho que não... Que não preciso falar com elas.

—Mesmo? Interessante... O outro detetive sempre as incomodava.

—Olá, chefe. — disse uma mulher bela e ruiva, de jaleco branco e identificação, sorrindo.

—Olá. Detetive... — Napier aponta para a mulher ruiva. — Esta é a Dra. Pâmela Isley, a chefe deste departamento. Ela é, de longe, a mulher mais inteligente que conheço.

—Você não costuma sair muito, senhor. — brinca a Dra. Isley, rindo. Daí ela cumprimenta Montoya amigavelmente. — Muito prazer.

—Dra. Isley? — outro de jaleco, este um homem de estatura média, de meia idade e cabelos castanho claros, se aproximou com uma prancheta nas mãos. — Estamos prontos.

—Obrigado, Dr. Connors. — ela respondeu. — Com licença.

Enquanto isso Napier apertava os lábios um contra o outro, impedindo-se de sorrir.

—Fique à vontade. — disse Montoya.

—Olá, detetive. — disse o Dr. Connors, assentindo com a cabeça, daí se vira para o patrão e faz o mesmo. — Com licença, patrão...

Os dois se afastam, conversando enquanto caminhavam. Montoya voltou-se para Napier, que olhava ao redor de forma vaga.

—Sr. Napier?

—Pois não?

—Precisarei lhe fazer algumas perguntas de caráter pessoal, não acha melhor irmos a algum lugar menos... Cheio de gente?

—Acho uma ótima ideia.

Eles se dirigiram até o elevador mais uma vez, desta vez tendo por objetivo a sala de café.

Montoya suspirou de modo cansado. Elevador... De novo.

—Não parece gostar de elevadores, detetive. — comentou Napier, os dois já dentro do elevador.

—Não gosto. — ela diz, juntando as mãos detrás das costas. — São apertados.

Napier assente com a cabeça, voltando a olhar para frente.

—São ótimos lugares para pensar. Lugares pequenos são assim. Acredito que o melhor lugar para se ter uma boa ideia seja dentro de uma caixa. Gosto muito de pensar, apesar de minha capacidade intelectual estar seriamente comprometida... — ele baixa a voz, assim como a cabeça. — Muitos remédios, sabe...

—Entendo. — ela murmura, voltando a imaginar como aquela voz pudera ficar tão aveludada. — Não gosta de remédios?

—Nada contra remédios, eles nos curam. Mas eles... Doem um pouco. Coisinhas cruéis, estes remédios... São o mal estar comprimido numa cápsula. E eu não consigo pensar, não raciocino direito. Isso é frustrante. — ele se vira para ela. — Poderia colocar isto no relatório? Talvez o Dr. Wolper possa revisar minha dosagem.

—Eu colocarei, não se preocupe.

—Obrigado. — ele esboçou novamente um sorriso, voltando-se para frente. Ele olhava para a televisão, e Montoya olhava para ele. Não sabia se permitia a si mesma ter pena ou se permanecia odiando aquela criatura.

O elevador abre as portas, e eles vão até a sala de café, sentando-se cada um em uma poltrona. Montoya tira seu relatório, e pega sua caneta.

—Então, como tem se sentido ultimamente? Algo estranho?

—Não.

—Precisarei que seja mais específico. — ela sorriu. Neste momento uma garçonete coloca duas latinhas de suco de laranja sobre a mesa.

—Obrigado, Leila. — disse Napier. — Faço exatamente as mesmas coisas todos os dias. São as circunstâncias que mudam alguma coisa de vez em quando, não eu.

—Fez algo fora da lei?

—Por que não passa na delegacia e pergunta?

—Já fiz isso, passei na delegacia responsável por essa região e você permanece limpo como o traseiro de um bebê.

—Então por que perguntou para mim? — ele diz, juntando as sobrancelhas.

—Por que é necessário.

—Eu disse, estou bem. — ele pega a lata, abrindo-a. Encara a detetive de forma irônica. — E traseiros de bebê normalmente são bastante sujos.

—Foi uma metáfora... Uma piada...

—Piada... — ele murmurou, olhando para o lado, e Montoya viu uma nuvem passar por seu rosto. — Eu gostava de piadas. Peço que não diga qualquer outra.

—Ok.

—Prossiga, por favor.

—Algum relacionamento?

—Apenas profissional.

Montoya o encarou por um instante, voltando a olhar seu relatório.

—Eu soube que você está num relacionamento com a psiquiatra responsável pelo seu tratamento inicial, aquele que você fez antes de começar a ser tratado pelo Dr. Bartholomew Wolper.

—Sou uma ameaça para ela? — diz ele, cruzando as pernas, visivelmente incomodado com aquele assunto.

—Você é?

—Não sei. — Napier juntou as sobrancelhas novamente, pensativo. Toma um gole de seu suco, ainda confuso. — Meu psiquiatra não me disse nada sobre isso.

Montoya dá de ombros.

—Enfim, foi o que ouvi.

—Dra. Harleem Quinzel. — ele diz. — E eu estava num relacionamento com ela. Terminamos.

—Por quê?

—Diferenças irreconciliáveis.

—Quais?

Ele revira os olhos num suspiro.

—Precisamos falar disso?

—Términos de relacionamento podem ser traumatizantes. A última coisa que queremos que você tenha é um trauma.

—Eu. Estou. Bem. — Napier reclina-se na poltrona. — Muita gente termina namoros sem ficar traumatizada, e fui eu quem terminou, pergunte a ela se ficou traumatizada.

—Ela não está sob os cuidados do Estado.

—O Estado não cuida de mim, ele me vigia. É bem diferente.

—Tem visto televisão?

—Não.

—E jornais?

—Meu mordomo não me deixa lê-los.

—Então não está à par das notícias.

—Estou à par do que me interessa, faço pesquisas na internet. Um empresário que não sabe o que acontece no mundo está falido.

—Olhar na internet é o mesmo que ver na televisão ou...

—Eu sei o que meu psiquiatra quer evitar, quer evitar alguma imagem que possa aparecer, não sei qual a natureza desta imagem que tanto apavora a ele e à polícia em geral, mas saiba que minhas pesquisas são puramente textuais, eu faço questão de não olhar imagens.

—Entendo. — Montoya pensou brevemente, daí resolveu arriscar. — Alguma memória antiga retornou á sua mente?

—Não.

—Nenhum sonho ou...

—Eu não sonho, detetive.

—Pensa muito em algum animal ou criatura...

—Qual o objetivo desta pergunta?

—Ela é importante, acredite.

—Às vezes me pego observando criaturas aladas à noite. — ele disse naturalmente. Daí ele se calou, e seu silêncio contínuo fez Montoya levantar o olhar. Ele havia parado completamente, como uma estátua, e seus olhos pareciam se apagar. Neste momento ela notou que a latinha, começara a mostrar rugas em sua superfície, presa entre os dedos ossudos de Napier. — Gosto de vê-los voar... Na noite.

—Entendo...

—Você entende muita coisa... — Montoya olhou na direção de Napier e congelou a perceber que ele a encarava fixamente. A vida voltara a ele. E a latinha encolhia cada vez mais. O metal não conseguia resistir a força imposta a ele. Um brilho estranho surgiu nos olhos do empresário. E agora Renée não sabia se aquele olhar deveria diverti-la ou apavorá-la. — Ou você é uma excelente entendedora, ou está simplesmente me estudando. Não gosto que me estudem. Acorda o que há de mau em mim. Mas como meu psiquiatra me orientou a ver o que há de bom nas pessoas, vou escolher a primeira opção. Continue com seu interrogatório, detetive... — ele disse entredentes. — Por favor.

Montoya voltou a olhar seu caderno. Por um instante, um tom mais rascante tomou aquela voz artificial. A detetive resolveu não abusar da sorte. Pisava em território perigoso. Melhor que isso, chegou à conclusão de que devia ir embora.

—Acho que terminamos.

—Já? — Napier disse, surpreso, parecendo novamente calmo e educado. Colocou com muita naturalidade a latinha completamente amassada sobre a mesa e se levantou. — Desta vez foi rápido. Excelente. Vou querer que a senhorita venha sempre fazer meu check-up.

Montoya sorriu sem vontade.

—Espero que não...

—Como?

—Detesto esta cidade.

—Eu também. — ele disse, ainda animado. — Mas não me deixam sair daqui. Sou um prisioneiro deste sol infernal.

—Boa sorte com o calor e suor. — ela disse, guardando suas coisas.

Napier esboçou um sorriso levemente mais largo. Ajeita seu paletó num gesto fluido.

—Eu tenho de ir. Sabe onde fica a saída. Até a próxima, detetive. — ele sai caminhando a passos firmes e quicantes, daí para repentinamente e vira-se para a detetive. — A propósito, eu não suo.

Montoya viu-o afastar-se cada vez naquele corredor, até desaparecer numa porta. Ela olhou suas coisas, daí olhou para as duas latinhas de suco de laranja sobre a mesa. Não havia ninguém ao redor. A curiosidade a atentou.

Ela pegou sua latinha, abriu-a, tomou seu conteúdo rapidamente. Envolveu-a com os dedos.

Apertou-a. Uma mão. Duas mãos. Uniu ao esforço seus braços bem treinados. Mordeu os lábios. Cerrou os olhos. Seus braços tremeram. Soltou um suspiro de frustração e espanto.

A lata não amassou.