Bruce Wayne

Consigo reconhecer a realidade como algo levemente aterrorizante. As fotos dispostas na escola infantil me atormentaram durante (ou ao menos pareceram) horas.

Clarissa e Charlie haviam experimentado a solidão e consequentemente a amargura, que os moldaram de formas distintas. Charlie guardou o espírito bondoso e passivo, enquanto Clarissa desenvolveu seu instinto de ódio e a imensa muralha que poderia proteger seus sentimentos.

O que mais dói é ter tido suas vidas arrancadas do meu total controle. Se eu estivesse com eles... Se eu ao menos estivesse acordado durante o início de suas vidas...

Agora, quase adultos, é algo totalmente incompreensível ser pai. Não os conheço em absolutamente nada: a não ser, claro, suas personalidades tão visíveis durante os poucos momentos em que ficamos juntos.

— Como se sente Batpai? — a voz do Coringa ecoou em meus tímpanos, causando-me mais uma onda de raiva. — Tão ausente da vida de seus filhos... Tsc, tsc. Clarissa tem bons motivos para ser rebelde...

Esmurro uma parede próxima descarregando a raiva presente misturada à culpa. Eu deveria ter buscado a verdade sobre o parto de Selina ou ao menos ter duvidado de seu instinto de que nossos filhos não haviam morrido. Contudo, eu não queria cavar mais um poço de esperanças para no final me afundar em amarguras.

A risada do Coringa continua reverberando insistentemente por entre as paredes da estrutura, lembrando-me dos meus erros. Os fantasmas do passado misturam-se com os do presente, fazendo-me cair de joelhos.

— É doloroso! — o palhaço constata alegremente. — Mas pense pelo lado bom... Você não teve que comprar fraudas. Certamente você faliria...

— CALA A BOCA! — berrei socando com força o chão.

— Pai!

Percebo que estou chorando quando o ar frio invade o corredor, e meu rosto esfria de imediato. Viro-me, e vejo Clarissa diante da porta aberta, como um raio de luz em meio ao meu desespero.

Sem sua máscara, reconheço em seus olhos a dor profunda que há anos me preencheu: o sentimento de solidão. E acompanhado deste, o medo.

— Clarissa... — digo, colocando-me de pé.

Ela hesita antes de se aproximar e parar alguns metros distante, seus olhos fixando-se em cada fotografia presa nas paredes. Umedecendo os lábios, meramente diz:

— Vencemos.

Não existe qualquer ar vitorioso em suas palavras, e perceber-me refletido nela é ao mesmo tempo surpreendente e doloroso. O que eu imaginava aos meus filhos era algo melhor do que eu tive.

— O que aconteceu? — questiono observando cada detalhe de seu comportamento.

As palavras parecem prender-se em sua garganta, e ela parece mais interessada nas imagens de sua infância e de Charlie.

— Acabei com Emeline... Nós fomos queimadas juntas no orfanato abandonado... E depois devolvi os poderes da Morte — Ela caminha pelo corredor atenta a cada detalhe, exceto em me encarar de fato. — Então eu tive meu corpo de volta junto da minha vida... — Seus punhos cerram-se. — Então eu estava em NovaHead, na escola em que estudei por intermináveis anos... E meus amigos eles... Estavam todos no chão. Foi aí que encontrei Stanley Jefferson — um riso escapa de sua garganta, nervoso e gélido. — Sabe, eu trabalhei com ele por longos anos. Ah, está aqui também! — aponta para uma foto qualquer. — Uau! Minha vida inteira aqui!

— Filha... — falo e sinto-me aquecido ao pronunciar essa simples palavra.

Clarissa me encara, seus olhos tão perdidos que me fazem ter vontade de abraça-la... Entretanto, contenho tal ação diante da reação que ela possa ter. Ao invés disso, tento decifrar o que de fato a atormenta.

Piscando repetidas vezes e com um sorriso irônico em seus lábios, Clarissa prossegue:

— Stanley me disse que Stella conseguiu controlar a Torre da Liga da Justiça para impedir que as bombas detonassem... Mas também disse que ninguém conseguiu impedir que o veneno dele funcionasse... Eu precisava morrer para que eles não... — Ela cerra os punhos com mais força, começando a tremer. — Sabe... Eu pensei que tivesse conseguido retardar o efeito dessa idiotice quando ressuscitei todos.

A negação percorre suas palavras, e finalmente compreendo o que de fato aconteceu.

— Eles morreram? — indago, sendo o mais calmo possível.

As lágrimas começam a rolar pelo seu rosto lentamente. Ela não consegue deter seus sentimentos...

— Eles estão em algum tipo de coma — responde engolindo em seco. — Eles estão... Em coma. Stanley disse que a morte seria muito fácil de esquecer. Mas um sono profundo sem chances de morrer? Não. — Ela meneia a cabeça com força, andando de um lado a outro. — Não. Um sono profundo me faria lembrar todos os dias como a culpa foi minha...

— Clarissa...

— Então — Clarissa dá de ombros, os olhos arregalados pela mistura perigosa de ironia e tristeza. — A Morte me concedeu um desejo! Um desejo! E sabe o que eu pedi? EU PEDI QUE OS PAIS DO DYLAN VOLTASSEM! — seu punho atinge a parede, tão forte a ponto de rachar o revestimento. No entanto ela não se importa, e continua perdida em sua própria dor. — Mas para quê? Para encontrar o filho em um coma duradouro do qual talvez nunca desperte?

— Vamos dar um jeito...

— NÃO TEM JEITO! — seu grito ecoa seco. Ela meneia a cabeça. — Não tem jeito... Não tem...

Antes que ela diga mais alguma coisa, puxo-a para meus braços, envolvendo-a tão forte a ponto de quase esmagá-la. Sua primeira reação é tentar se libertar, entretanto, aos poucos, ela desmorona. E eu detenho sua dor, servindo de consolo e aconchego. Executando o trabalho de um pai por mero instinto.

— A culpa é minha — Clarissa sussurra a voz embargada pelo choro. — Eu não sirvo para essa merda...

— Serve — falo hesitando com a mão erguida antes de aconchegá-la em seus cabelos, acariciando sua cabeça. — Você não tem culpa do que os outros fazem...

— Eu criei o veneno — replica estremecendo. — Entreguei a Stanley. Ele alterou a fórmula para um resultado diferente... Mas...

Clarissa engasga e a intensidade de seu choro aumenta. Passo indica proximidade, e vejo Coringa atravessar a sala com um sorriso sádico em seu rosto. Estou pronto para qualquer ataque, no entanto, ele meramente fala:

— Um belo trabalho pela frente, Batpai — acena e com rapidez desaparece pela saída dos fundos.

Espero por qualquer explosão ou artimanha, mas nada acontece. Eu poderia muito bem caçar Coringa e prendê-lo, mas Clarissa se torna prioridade no momento. Foram dezesseis anos sem qualquer contato com ela, e agora é mais do que evidente que precisa de mim.

Coringa é uma questão do Batman, mas Clarissa se torna uma questão do Bruce Wayne.

— Eu vou te ajudar a passar por isso — digo lentamente, e minha filha respira fundo, secando o rosto. — Vamos dar um jeito. Juntos.

(...)

Selina veio ao nosso encontro atravessando uma avenida destruída pelo que antes era uma floresta viva e que se tornara um amontoado de galhos e flores mortas.

Hera Venenosa estava no chão, e Arlequina era arrastada para dentro de um carro forte gritando suas típicas maluquices. Policiais corriam por todas as direções, e ambulâncias passavam em alta velocidade.

Na antiga Mansão Wayne encontrei algum tipo de familiaridade, mesmo que fosse de anos atrás. Sem Alfred ou qualquer sinal de vida, pude abrigar Selina e Clarissa, além de buscar por notícias concretas de Nova York.

Apenas cinco horas depois, quando estava prestes a escurecer, consegui fazer contato com alguém de Nova York.

— Os vilões se foram — Tony Stark avisa pelo celular apresentando um tom de voz de quem passara pelas piores batalhas em poucos instantes e precisa de um bom descanso rápido. — Aqueles que estavam mortos voltaram ao túmulo. E os que ainda estavam vivos, mandamos para celas improvisadas na minha torre.

— E Lexi? — questiono subitamente, digitando a senha que destrava uma passagem próxima à lareira.

— Ela está aqui. Não sei o que fizeram com ela, mas está pirando na maionese...

— Ainda não acabou — falo descendo um lance de escadas. — Os Destruidores...

— Eu sei — Tony respira fundo. — O tal Stanley deixou-se ser capturado. Clarissa deu uma boa surra nele de quebrar os ossos... E depois sumiu.

— Ela está comigo — digo rapidamente, sentindo a frieza das paredes que me cercam. Lembranças me vêm à tona, e uma súbita sensação de que não se passei mais de dezesseis anos longe daqui. — Estamos em Gotham esperando algumas coisas se normalizarem. E Charlie? Está bem?

— Está. Claro... O veneno não o atingiu porque Stanley não chegou a colocar nele. Mas ele acabou sendo atingido pela carga de poder da Stella e por isso está no hospital — um suspiro de desolação. — Mandei os Destruidores para o melhor hospital da cidade que não estava destruído. O Doutor Strange tentou de tudo, mas não conseguiu trazê-los de volta.

Sento-me na cadeira rotatória, diante do painel de controle de dimensões extremas. Inicio o sistema, o barulho das águas da cachoeira próxima é tranquilizante.

— Batman — o tom de Stark se torna ainda mais carregado. — Cuide da Clarissa. Permaneça com ela em Gotham.

Franzo o cenho.

— O que está acontecendo, Stark? — indago percebendo que existe algo a mais em meio às suas palavras.

Após um instante Tony prossegue.

— Wanda retornou quase uma hora atrás depois de ter morrido tão... Tragicamente — pigarreia, provavelmente buscando as palavras certas. — Ela encontrou a Liga da Justiça antes de nós em seu retorno. Eles fizeram contato com o governo e estão furiosos. Principalmente os pais do Dylan como todos os heróis por lá querem julgar a Clarissa como culpada por toda a tragédia no país e... Com Dylan e os outros.

O sentimento de raiva vem à tona, misturado com compreensão. Clarissa deve ficar aqui por algum tempo até a poeira abaixar.

— Vamos tentar resolver isso — Tony diz lentamente. — Mas apenas mantenha Clarissa aí.

— Quero um favor antes de qualquer coisa — digo antes de uma breve despedida.

Depois de concluir a ligação, a caverna entra em profundo silêncio. Úmida e fria abriga intacta os uniformes que pertenciam a Robin e a mim, seguidos de uma variedade de armas criadas por mim. A história da minha vida impregna cada canto dentro dessas paredes... A vida de um herói dentro de Gotham.

— Clarissa dormiu — a voz de Selina chega até mim, e trajando uma camisa velha que provavelmente encontrou em meu guarda-roupa, usufrui de uma expressão amargurada em sua face. Coloca uma taça de vinho diante de mim na mesa. — Acabou.

— Não sei se posso dizer isso — replico com um tom preocupado, acessando remotamente as câmeras da nave da Liga da Justiça.

Selina semicerra os olhos.

— Os vilões se foram. Os portais foram fechados e todos aqueles que não pertenciam a nossa realidade desapareceram. O que mais falta acontecer?

— Querem a Clarissa — digo gelidamente, focando na sala de reuniões onde Superman, Mulher-Maravilha, Mulher Gavião, Flash e Aquaman se encontram. — Acham que ela é culpada de tudo...

— Mas ela não é! — afirma Selina exibindo indignação.

Continuo fitando o telão do painel, apenas vendo as bocas se mexerem conforme possivelmente planejam algo. Cerro os punhos.

— Temos que manter Clarissa aqui — falo decididamente. — Até que a poeira abaixe e aos poucos as cidades voltem à sua normalidade. Vilões precisam ser presos e interrogados. Vamos manter Clarissa ocupada em Gotham.

— E Charlie? — os olhos da minha esposa caem sobre mim. — Ele não vai vir para cá?

— Embora queira Charlie aqui, acredito que ele vá ficar por um tempo em Nova York arranjando alguma maneira de trazer os Destruidores de volta — digo lentamente. — E de cuidar para que todos os vilões fugitivos sejam presos. Será bom que fique longe por enquanto. Clarissa precisa esquecer dos problemas em Nova York.

— Vai ser difícil. Ela desenvolveu um laço muito forte com os amigos — afirma Selina, bebendo um gole de vinho.

— Mesmo assim — digo resoluto. — Vamos mantê-la longe. Será o melhor para ela.

Continuo fitando o telão do painel, onde Superman lidera a reunião erguendo-se de sua cadeira resoluto.

Alguns problemas tinham acabado, mas ainda existiam outros para nos importunar.