Destiny

Tentativa


O primeiro estrondo soou distante, não sendo o suficiente para acorda-lo de imediato. O segundo foi mais forte, e sentiu um tremor percorrer o próprio corpo, fazendo com que sentasse na cama de uma vez só, e em seguida saísse dos lençóis.

Gostaria que aquilo não passasse de um sonho muito realista, mas seguido de outro som, o palácio dos mares foi abalado em suas estruturas, e Poseidon sentiu o golpe, cambaleando pelos corredores só para encontrar a confusão de tritões que ia a sua procura. Um ataque, claro, que maneira melhor de começar o dia? Lançou um último olhar a porta do quarto onde estivera segundos antes, Atena ainda não tinha saído de lá, e isso era bom, se apressou para lidar com aquilo antes que tivesse de lidar com ela também.

Não era incomum que acontecesse, longe disso, por todas as partes haviam aqueles que decidiam se rebelar contra ele, gritando que não era merecedor daquele trono, não era seu rei. Seus inimigos estavam por todas as partes, Ceto e seus monstros eram os mais frequentes, a primordial o chamava de usurpador, incapaz de aceitar que ele tivesse conquistado aquilo. Talvez a intenção de Zeus em casa-lo com Anfitrite fosse apaziguar isso, fazer com que fosse aceito como um deles, não alguém que tinha nascido e vivido além das ondas. O nascimento de Triton era como uma promessa, um herdeiro, alguém igual a eles, reinaria tão logo Poseidon deixasse o trono para este.

Às vezes se perguntava por que não fazia isso de uma vez?

Contou um ponto ao constatar que estava certo, monstros marinhos enviados por Ceto, e derrota-los não era difícil, mas como sempre fazia, ele deixava alguns escaparem, sabendo que voltariam para a primordial, e que ela teria seus filhos - os mesmos a quem incitava um ataque tolo como aquele - pela sua misericórdia. Com um suspiro observou o estrago no palácio, ele adorava o lugar, tão sólido e tão seu, capaz de suportar forças ainda mais destrutivas.

Quando voltou ao interior encontrou Atena parada junto a escadaria, e tomou alguns segundos para observar com mais atenção. O cabelo claro estava desalinhado, mostrando que aquela aparência impecável não era assim tão natural, e seu rosto parecia um pouco pálido, mas não como dias antes, Atena parecia bem - Somente tinha acordado com um susto. Estudou o perfil da deusa, os lábios cheios e o nariz bem desenhado, os olhos tempestuosos se voltaram para ele como se soubessem exatamente o que Poseidon estava pensando. Sempre tinha sido assim.

Era como se Atena tivesse a capacidade de olhar através dele, além das palavras e dos gestos, ela descobria o que não era dito, o que tentava ocultar.

Em contrapartida descobrir o que ela pensava era algo complicado, por vezes a deusa tinha uma expressão de desafio, como uma esfinge divina, de sorriso misterioso, o encarando enquanto dizia: Decifra-me ou te devoro. Era muito fácil ser devorado por ela, e nunca era da melhor maneira.

- Você não foi devorado.

Ela o tinha flagrado observando, enquanto mergulhava em pensamentos, os olhos cinzentos se voltaram para ele com curiosidade. Pela primeira vez em dias não havia repreensão em seu olhar. Atena estivera irritada com ele nos dias que se seguiram após entrar na ala leste, acreditando firmemente que Poseidon mantinha uma criança como refém lá dentro. Sempre pensava o melhor dele, é claro.

- Não ainda. O quão furiosa você fica por ser acordada com um ataque?

O dar de ombros foi uma resposta simples, interpretou aquilo como um: Ficaria irritada com qualquer coisa que se tratasse de você. Mas a deusa o olhou de alto a baixo, como se procurasse algo. O tridente? Algum ferimento?

- Estou bem. - afirmou, embora ela não tivesse perguntado, e franziu o cenho para o deus. - Não foi um grande ataque.

- Algo a ver com o... - Atena parecia buscar uma palavra, lembrou como ela havia se incomodado ao ouvi-lo chamar o irmão de rejeitado.

- Não. Ceto causando problemas, como sempre.

- Suponho que ela não estivesse na comemoração de ontem.

- Não, ela não costuma comparecer, diz que não tem motivos para comemorar.

Não tinha dado falta da primordial, estivera por todo o tempo cercado de outros deuses, observando as nereidas em sua cantoria, e atento a cada passo de Anfitrite por ali. Desde o divórcio quase não haviam se falado, era o ciclo natural, ele imaginava. A antiga rainha tinha acenado do outro lado do salão, e ele a tinha levado para fora daquela aglomeração. Minutos depois a imagem vista por aqueles que transitavam pelos corredores era da deusa rindo enquanto Poseidon contava sobre o casamento arranjado, embora ele demonstrasse um pouco de raiva, Anfitrite tinha acalmado o rei com a mesma facilidade de milênios a seu lado, e pelo resto da noite não haviam saído um do lado do outro.

Volta e meia se via pensando se Atena gostaria de estar ali, ela tinha se recusado a participar, alegando que não era uma boa ideia, e parte dele concordava, quando tudo acabasse a deusa da sabedoria voltaria para o Olimpo, e ele seguiria a vida em paz.

Parecia uma boa perspectiva, então por que não se sentia satisfeito com ela?

- Ama disse que, assim que você voltasse, eu deveria te arrastar para o café da manhã. - a deusa interrompeu os pensamentos dele, bom, não queria mergulhar na paranoia.

- Encontro você em alguns minutos,pode ir na frente.

Atena não questionou, apenas seguiu pelo corredor na direção do salão de jantar, onde Ama distribuía uma refeição capaz de alimentar trinta deles e ainda sobrar. Subiu as escadas para voltar ao quarto, a cama parecia extremamente convidativa e o perfume da deusa da sabedoria estava por toda parte. Decidiu por um banho. Isso iria clarear sua mente.

Brincar de casinha era algo ao qual não estava acostumado, mas era isso que vinha fazendo desde que Atena tinha chegado ali: Faziam as refeições juntos, conversavam e implicavam um com o outro, deitavam na mesma cama e disputavam o cobertor - ele sempre perdia - e acordavam emaranhados um no outro. A princípio a sensação do corpo dela contra o seu tinha causado certo espanto, como se esperasse ser eletrocutado ao chegar muito perto, mas não aconteceu. A deusa enrolava os dedos em sua camisa e se aconchegava, como se o calor dos cobertores não fosse suficiente. Ela dormia, e tirava o sono dele.

Não era que ele a desejasse. Atena era linda, mas não da maneira que ele estava acostumado a se interessar. Outra série de fatores fazia com que o alerta de problema soasse no fundo de sua mente, por todos os motivos conhecidos, e aqueles que ninguém viria a saber.

"Eu não quero que me toque. Nunca mais" a voz gélida trouxe um arrepio ao corpo dele, mesmo sob a água quente. Sua mente adorava resgatar fragmentos que queria esquecer.

Apesar desses pensamentos, quando encontrou a deusa entretida no salão, não pode deixar de admirar só um pouco mais. Lembrava a conversa da noite anterior, Atena soando quase preocupada enquanto ele falava, o que estava acontecendo com eles? Ou seria só ele imaginando coisas?

Sentou ao lado dela, Atena não tinha tomado o lugar junto a cabeceira da mesa, o que fez Poseidon sentar mais perto, e inclinar-se para falar.

- Quer que eu te leve ao Olimpo hoje? - indagou, e teve que recuar muito rápido pois a deusa voltou o rosto em sua direção, exatamente como uma coruja.

- Não é uma boa ideia. Eles vão nos cobrar... - ela não terminou, e nem era necessário, a lembrança do que tinham de fazer era um letreiro néon no fundo de sua mente, irritante e assustador.

- Não se apressa a perfeição. - gracejou, embora achasse que uma combinação deles estivesse longe de ser perfeita. - Pensei que estávamos procurando uma brecha.

- Eu estou, mas quanto mais eu penso, menos alternativas encontro. - com um suspiro, Atena voltou seu olhar para as pessoas que entravam no salão e tomavam lugares na grande mesa, talvez curiosa sobre quem eram, uma pequena sereia ruiva acenou com entusiasmo na direção do deus, que retribuiu com um pequeno sorriso. - Quem é ela?

- Minha neta. E ei, por que não tentamos isso do seu jeito?

- Uma sereia, ruiva, filha de Triton,imagino. Não me diga que ela se chama Ariel. - com o silêncio do deus ela arqueou as sobrancelhas. - Quanta originalidade. E o que quer dizer com "do meu jeito"?

- Ao menos a mãe dela não se chama Athena. - provocou, fazendo a deusa revirar os olhos, Poseidon riu antes de continuar. - Sabe, como faz os seus semideuses.

- Partogênese, não seria a mesma coisa. - é claro que ela já tinha cogitado aquela possibilidade, já tinha pensado em todas possíveis. - É necessário que esse bebê nasça da união de nós dois.Se ele nasce assim, teria muito pouco de você, e muito de mim. Seria moldado a minha maneira, voltado para o que sou.

- Uma sabichona irritante?

- É impossível ter uma conversa séria com você, Poseidon. - ela começou a levantar, mas ele segurou seu pulso. - Solte.

- Eu estou tentando ter uma conversa séria, você se irrita com muita facilidade.

- Talvez porque não é você quem está em risco aqui.

Um movimento mais brusco e Atena se livrou dele, saindo da mesa e caminhando para fora dali. Num raro momento de iluminação percebeu que, talvez, não devesse provoca-la com nada daquilo. Se para ele era difícil imaginar ir para a cama - no outro sentido da coisa - com sua eterna inimiga, como seria para Atena, depois de tanto tempo sem desejar nada daquilo, entregar seu corpo apenas para evitar a destruição? Não importava se ela estivesse com ele ou com o irmão psicótico, de qualquer forma perdia, a única diferença era que ele não queria força-la a nada.

Levantou, deixando pela metade o que estava no prato e correu atrás da deusa. Sabia que ela não iria para o quarto, tampouco se esconderia no salão onde Anfitrite costumava ficar. Atena estava na biblioteca, seu eterno refúgio, caminhando entre as estantes, parecia sussurrar.

- O quão tolo é aquele que se deixa levar pelo sentimento? - indagou, e por um breve instante pensou que ela falava com ele. - O quão tolo é quem tenta lutar contra isso?

Era um dos versos de Apolo, ele reconhecia, a deusa recitava as poesias do irmão enquanto buscava escapar de tudo o que a esperava. Poseidon parou diante do pequeno corredor onde ela estava, Atena voltou o olhar na direção dele, em um silêncio que dizia muito.

"Decifra-me ou te devoro" Talvez não fosse assim, talvez Atena fosse mais branda, menos extrema,menos alguém que ele pensava conhecer.

- Desculpe. - Uma palavra, e viu nos olhos dela a surpresa, que tratou de disfarçar no mesmo instante. - Eu não tenho pensado como isso está sendo para você.

Atena baixou o olhar, os dedos longos correndo pelas páginas amareladas do livro. Por fim balançou a cabeça negativamente.

- Não acho que possa entender.

- Eu sei, mas posso tentar.

Aquilo pareceu ser aceito por ela. A deusa assentiu, dando a ele a chance de fazer mais. Ele poderia não entender, mas poderia tentar, sempre poderia tentar.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.