Destiny

A ala leste


As horas passavam muito devagar no palácio dos mares.

Atena não tinha certeza se a sensação que os minutos de arrastavam tinham a ver com o lugar ou com sua ansiedade, tão aflorada desde que ela havia despertado. Ainda sentia um pouco de tontura, e até um pouco nauseada pelo desmaio, e nada do que Ama oferecia lhe despertava o apetite. Estava preocupada, alerta e curiosa sobre onde o deus dos mares tinha se metido.

Uma vez vencida pelo cansaço, aquele blackout a consumira por completo, a deusa caiu num sono leve, e isso foi o suficiente para que Ama e Sebastian a deixassem sozinha. No fundo de sua mente, sempre tão racional, lembranças do passado começavam a emergir, e naquele estado totalmente indefeso, não havia chance de Atena combate-las.

Ela sonhou com o Olimpo.

Na época que ela nascera, a cidade dos deuses já tinha se estabelecido por completo, muitos anos após a guerra contra os titãs, e Atena desfrutava da calmaria que os outros deuses pareciam compartilhar. Ela era uma deusa jovem, recém-nascida, e mesmo assim não tinha demorado a assumir seu papel.

Era bonita, independente, sábia. E talvez isso atraísse tantos pretendentes, embora Atena não compreendesse isso na época, ela não enxergava seus atributos externos, e duvidava que todos aqueles que vinham até ela vissem além de sua aparência.

Exceto, talvez, ele.

Poseidon.

Não que ele fosse um de seus pretendentes, na verdade o deus parecia abominar tanto a ideia de casamento quanto a própria Atena, mas ele a entendia. Também tinha muitas pretendentes, e uma constante pressão de que estava na hora de sossegar ao lado de alguém. Talvez aquilo os tivesse unido.

Das mais improváveis relações, a amizade deles talvez fosse a maior. Os deuses não sabiam o que pensar, mas isso não importava. Eles sabiam o que era aquela relação: um acordo bastante proveitoso para ambas as partes. Ela costumava acompanha-lo nas festas do Olimpo, quando a pista de dança se tornava um campo minado de pretendentes para ambos. Não era nada que Atena não pudesse resolver com um “não” ou uma lança bem afiada, mas tinha que confessar que se divertia em ver a expressão decepcionada dos homens quando enlaçava seu braço ao de Poseidon antes de entrar no salão.

Os boatos de uma relação entre eles não demorou a surgir, nenhum dos dois se deu ao trabalho de desmentir, tinham mais coisas a falar quando passavam tardes sentados diante de seu templo, entre risos e brincadeiras, tão fáceis de lidar.

Então Atena acordou, e dividida entre o alívio de se livrar do sonho e as lembranças que a atormentavam, saiu da cama, ignorando a tontura que quase a fez permanecer ali. Por vezes acreditava que sua mente gostava de se torturar, recordando um passado mais do que enterrado.

Era culpa do blackout, ela sabia muito bem, como se tudo que deixara para trás estivesse voltando para lhe atormentar, porém mil vezes pior. A ligação com o rejeitado se mostrara mais profunda do que tinha imaginado, Atena viu o tártaro pelos olhos dele, sentiu toda sua fúria e tormento, e por alguns momentos compartilhou de seus pensamentos. Começava a pensar que Moros de fato a detestava, não bastava que ela estivesse casada com seu inimigo, que seu irmão quisesse trazer uma nova guerra, ele ainda queria... Com ela!

Por vezes pensava se não seria uma boa ideia fugir pro Himalaia e viver escondida numa barraca.

Mas ela era Atena. Ela não fugia de nenhum inimigo, mesmo que ele fosse seu irmão gêmeo. Não sabia se eram semelhantes, ou totalmente diferentes, como Ártemis e Apolo, pensava se ele seria um inimigo tão implacável quanto ela. Se sim, Atena precisaria de uma grandiosa estratégia.

Ou talvez de um pouco de impulsividade, por isso estava ali? Quem sabe esse fosse o grande motivo para as parcas decidirem a unir com Poseidon.

E ele ainda não tinha voltado.

― Espero que não faça nenhuma bobagem. ― pensou, em um murmúrio, como costumava fazer quando vagava pelos corredores de sua biblioteca. Esse pensamento a fez desejar sair da cama, uma vez que Ama e Sebastian não estavam mais ali, Atena não tinha que se preocupar com olhares curiosos e preocupação exagerada. Nunca foi algo com que ela soubesse lidar.

Ela caminhou pelo corredor, e pretendia seguir para o segundo andar, onde ficava a biblioteca, algumas horas em meio aos livros a fariam pensar melhor. Então, antes que descesse as escadas, virou em outra direção, o único lugar do palácio que não tinha visitado: A ala leste.

Atena sabia que devia ficar longe dali, sabia que havia um motivo para que tanto Poseidon quanto Sebastian não tivessem falado ou levado a deusa até aquele lugar. Racionalmente ela sabia disso tudo. Porém, a curiosidade sempre foi a maior aliada, e inimiga da deusa da sabedoria. E antes que pudesse hesitar novamente, ela entrou na ala proibida do palácio dos mares. Cada passo era lento e cuidadoso, Atena estava preparada para qualquer tipo de armadilha que pudesse surgir no caminho, ou tão preparada quanto uma deusa tonta e quase cambaleante poderia estar.

O corredor principal era complemente seco e limpo, não tinha tanta decoração quanto o restante do palácio, talvez por que ninguém mais fosse ver além de Poseidon. Haviam muitas portas, a maioria trancadas, e nas poucas que conseguiu abrir, encontrou os mais diversos ambientes: Uma pequena sala que parecia um aconchegante refúgio, um grande espaço que remetia a uma forja, uma sala cujas paredes brancas tinham mascaras azuis antigas, claramente uma recordação de uma antiga civilização.

O grande salão, porém, era de tirar o fôlego. Com o teto alto e claramente mágico – Atena sabia que uma alteração daquela deformaria a arquitetura do palácio -, sustentado por grandes colunas. Era escuro, exceto pela luminosidade vinda do espelho d’água. Havia pedras lisas ali, elas formavam um desenho, ou uma letra, e a deusa da sabedoria sentiu-se tonta novamente.

Era o símbolo de Atlântida, a lendária ilha que desaparecera nos mares. Os deuses tinham esquecido, os mortais viviam encantados com a história, porém sequer imaginavam como era real, e cruel. O que tornava tudo ainda pior? Ela tinha participação naquilo.

Havia um trono ali, e por fim Atena percebeu que aquele salão era uma reprodução do salão do trono, até mesmo os painéis com a história dos mares estava nas paredes escuras. Imaginou se era ali que o deus dos mares se refugiava, quase podia visualizar Poseidon sentado naquele trono, encarando aquele espelho d’água, pensativo e solitário.

Balançou a cabeça, estava mesmo “visualizando” seu inimigo sem que ele sequer estivesse por perto? Péssimos pensamentos, tinha mais coisas a fazer, como se livrar de um irmão vingativo, ao invés de enfiar-se no cantinho da solidão do deus.

Virou-se para ir embora, o lugar a deixava apreensiva, então ouviu um sussurro. Alguém chamava seu nome, era um som muito distante, mas o suficiente para que a deusa parasse no lugar e se voltasse para o salão. Ela era Atena, não tinha medo de nada. Em éons de vida tinha aprendido a lidar com deuses, monstros, mortais e até fantasmas. Caminhou em direção ao espelho d’água, certa de que veria que tudo aquilo era fruto de sua mente cansada e poderia partir.

― Olá? ― ela olhou ao redor, buscando qualquer movimento, mas não houve. Porém, sentado do outro lado do espelho d’água estava um menino, como se tivesse se materializado ali, e Atena sentiu um arrepio percorrer seu corpo.

Ele não a encarava, tinha o olhar fixo na água a sua frente, e sequer parecia se dar conta de que Atena estivesse ali. Pensou quem ele seria, um filho de Poseidon? Um filho de algum de seus servos? Talvez tivesse entrado ali por engano, talvez estivesse perdido, assustado.

― Você está bem? ― indagou, e ele ergueu o rosto, e seus olhos a encaravam como se não estivesse ali, mas perdido em pensamentos de éons atrás. Não era preciso, porém, que ele respondesse sua pergunta, aquele menino não estava nada bem.

Devia ter seis ou sete anos, mas com certeza parecia menor por seu porte franzino. Estava sujo, com os cabelos escuros bagunçados, a face manchada, e sua roupa era de um tecido grosseiro. O que mais preocupou a deusa era que aquela criança parecia assustada, seu olhar perdido e expressão vazia eram os mesmos que ela já vira em tantos rostos em meio a guerra, vitimas do estrago causado por mortais.

O menino, que havia voltado seu olhar de volta a água, empurrou ali um pequeno barquinho, e esse atravessou até a deusa da sabedoria, velejando sem qualquer dificuldade, mesmo com as pedras em seu caminho. Entendeu aquilo como um convite.

“Fique”, ele dizia silenciosamente. “faça-me companhia.”

Atena sentou diante do espelho d’água, e pegou o barquinho. Era simples, como se o menino tivesse feito seu próprio brinquedo, e sua vela era frágil demais. Não sentia mais medo, até puxou um pequeno sorriso enquanto colocava o barquinho de volta na água e o empurrava, fazendo com que cruzasse aquele pequenino mar de volta a seu dono.

― Você vive aqui? ― tentou novamente, e dessa vez, o menino olhou ao redor, como se analisasse o salão, então assentiu para a deusa enquanto tinha seu brinquedo em mãos. ― Alguém cuida de você?

Talvez Ama? Ou Sebastian? Embora Atena não pudesse confiar nessa possibilidade. Até ali ambos tinham se mostrado muito solícitos e preocupados, jamais deixariam aquele menino daquela forma. Como Poseidon podia? O menino tinha o barquinho em mãos, parecendo arrumar a frágil vela antes de coloca-lo de volta na água e mandar de volta a deusa.

― Meu nome é Atena. ― contou, esperando algum tipo de reconhecimento, mas ele apenas a encarou com a mesma expressão: Assustada, atormentada, como se vivesse um pesadelo do qual não conseguia escapar. ― Consegue me dizer o seu?

Ele balançou a cabeça, negativamente, no mesmo instante. A deusa da sabedoria sabia o que devia fazer: Pegar aquele menino e tira-lo do salão, levar aquela criança e cuidar, alimentar, proteger. Tinha que apagar de sua face aquele medo, e trazer um pouco de luz àqueles olhos. Contudo, sentia a angustia que irradiava dele, mil vezes amplificada naquele lugar, e era como se estivesse em seu corpo: Sentia fome, frio, medo. Estava sozinho, sempre sozinho. Eram sentimentos sufocantes, enquanto pegava novamente o barquinho, a deusa o manteve consigo por mais de um momento.

O menino não iria embora dali, ele temia o que estava além das portas daquele salão, temia aquela deusa desconhecida. Queria que ela lhe devolvesse seu barquinho. Atena deixou que a pequena embarcação fosse para ele.

― Você quer sair? ― arriscou-se a perguntar, e ele a encarou, por um longo instante, naquele silêncio que era carregado de palavras emudecidas.

Ao fundo, um som muito distante. Alguém chamava seu nome, Sebastian? Sim, parecia muito a voz do velho tritão. O menino inclinou a cabeça, como se tentasse ouvir com mais clareza, e Atena viu, com o coração apertado, quando ele pegou seu barquinho e levantou.

― Espere! ― foi inútil chama-lo, ele caminhou, com passos vacilantes e postura um tanto encolhida, até desaparecer nas sombras do salão. Atena levantou, querendo segui-lo, mas todos os seus sentidos entraram em alerta com a aura hostil que o salão agora tinha, mesmo o espelho d’água tinha sua calmaria perturbada por pequenas vibrações.

Ela recuou, embora não quisesse, até sair do salão. E depois cambaleou pelo corredor da ala leste, passando pelas salas, todas agora bem trancadas, e quando estava fora dali, deu de cara com Sebastian.

― Senhora Atena! ― ele parecia alarmado, seu rosto era pálido, e tornou-se ainda mais ao notar de onde ela vinha. ― Procurei por todo palácio! Alertei os guardas de seu sumiço.

― Eu estou bem, juro. ― garantiu, e viu ali sua oportunidade. ― Sebastian, eu estava...

― Eu sei, senhora. Não deveria ter entrado ali. ― o tritão agora a levava para longe, em direção as escadas, depois pelo labirinto de corredores.

― Mas eu vi coisas, e preciso de uma explicação. ― o tom exigente da deusa ao livrar seu braço fez o servo parar, ele a encarou, e por alguns instantes fez a mesma expressão que Zeus quando decidia falar seriamente.

― Sei que viu, e que precisa. Porém, nem tudo pode ser explicado. Aquele lugar é particular, não poderia entrar ali, muito menos sozinha, sabe-se lá o que poderia ter acontecido. ― gesticulou, exasperado, quando Atena o encarou. ― Por isso, aconselho, mantenha-se longe da ala leste, para seu próprio bem. Agora, o rei deseja vê-la no salão do trono.

Atena quis responder que não era ele a determinar o que lhe faria, ou não, bem. Precisava de explicações, precisava voltar lá e encontrar aquela criança, só assim se livraria daquela angustia que parecia impregnada em seu coração. Porém decidiu não descontar nele sua frustração, tinha um peixe maior para pescar, caminhou com passos firmes até aquele que a esperava: Poseidon.