Quando parou ali, em frente ao restaurante japonês, Félix não sabia mas Niko nem estava mais lá.

Cansado, pois não havia quase dormido na noite anterior, o loirinho deixou o trabalho logo após aquele momento, quando pegou Félix olhando em sua direção “Quer saber? Por hoje já deu. Melhor ir pra casa que ganho mais”. Ele deixou tudo sob os cuidados do gerente e se foi. Naquela noite não quis caminhar, pegou um taxi. Chegou rápido em seu apartamento, tomou um banho demorado, nem comeu nada “assim faço dieta” deitou-se no sofá e adormeceu logo. Se acordasse com fome, cozinharia algo para si. Não apenas por apetite mas porque cozinhar, para ele, era terapêutico.

De volta ao hotel, Félix lá estava sentado imóvel, na cama, olhando para uma pilha de envelopes à sua frente. Aquela era a razão do seu retorno para São Paulo. Era algo que ele, se pudesse, esqueceria. Mas precisava enfrentar. No dia seguinte procuraria a pessoa que, ele acreditava, era a mais indicada para ajudá-lo com aquilo. Embora o conteúdo daqueles envelopes estava lhe tirando o sono durante o último mês, naquele momento não havia muito que pudesse ser feito. “Quer saber? Vou curtir o hoje, vou aproveitar a vida, vou sair, espairecer!” Tomou um bom banho e arrumou-se. Frente ao espelho, parou se admirando e falando consigo mesmo “Félix Khoury, tenho pena de quem cair nas suas garras hoje.” E saiu.

No elevador, falava sozinho com o seu reflexo nas paredes “Você está... está cheiroso, magnífico, elegantíssimo e gostosérrimo!”. A princípio pensou em voltar ao mesmo bar da noite anterior, ou quem sabe iria até a boate que ficava perto. Decidiria na hora. Agora estava ansioso, deixou o hotel e começou a caminhar naquela direção.

“Amanhã eu alugo um carro, sinceramente não nasci para andar à pé”. Enquanto confabulava com seus pensamentos, de repente se deu conta que passava em frente ao prédio de Niko. Instintivamente olhou para cima, contando os andares até chegar na janela dele. Estava acesa. “A criatura está em casa” concluiu “É bom que fique aí e não apareça naquele bar hoje” seguiu caminhando. No entanto, lembrou-se da conversa que teve mais cedo com Paloma. Lembrou-se do dia quando Eron disse que havia pego o cargo dele no hospital. Pensou que se Niko soubesse do erro na venda da casa, Eron teria que desenbolsar a diferença do que foi pago à ele. Parou. Coçou a cabeça. Deu meia volta e rumou para o prédio do loirinho. “Ah, mas vou sambar de salto alto naquela lacraia!”

Só que, enquanto caminhava até lá, ia lembrando da noite anterior e do sexo, que tinha sido ótimo, mas também de como Niko ficou aborrecido com as coisas que ele disse. Félix achava que Niko tinha feito uma tempestade em copo d’água. Que não havia razões para Niko ficar chateado nem ter mandado ele embora. “Melhor não me meter, capaz dessa criatura geniosa brigar comigo de novo... vai que me capa com um facão de cortar peixe... melhor não” e aí deu meia-volta novamente, tornou a caminhar na direção do bar. “Eu vou é cuidar de mim”.

Entretanto, algo batia na cabeça dele dizendo que aquela era uma oportunidade não apenas para irritar Eron mas também... quem sabe, fazer algo diferente na vida, como por exemplo, ajudar alguem. Porque? Ele não saberia explicar. Talvez tivesse se identificado com o loirinho por alguma razão. Claro que não conscientemente. Mas a empatia com Niko aconteceu, sem dúvidas. “Esse carneirinho deve ter sofrido, parece tão frágil! Uma criaturinha sensível daquela nas mãos daqueles dois... cruzes! A criatura é boba, é tonta, mas... dá pena. Quer saber? Eu vou contar pra ele sim!”. Félix deu meia-volta mais uma vez. Decidido, caminhou até aquele prédio novamente e, lá chegando, tocou o interfone “Será que vou estar agindo por uma boa causa?”

Niko já havia despertado do cochilo, estava na cozinha. Se surpreendeu com o barulho do interfone. Se supreendeu mais ainda quando perguntou quem era e ouviu a voz de Félix.

“O que você quer?” disse mal humorado.

“Tudo bem... Ni, ko?”

“Não achei coisa nenhuma sua aqui, você não esqueceu nada. Por que voltou?”

“Ei! Calma! Eu quero falar com você. Posso?”

“Não temos nada pra falar, a não ser que você queira me pedir desculpas.”

“Eu? Desculpas pelo que? Eu não fiz nada.”

Niko desligou o interfone. E, é claro, atendeu novamente quando Félix, óbvio, tocou de novo.

“É um assunto do seu interesse.”

“Vindo de você, o que pode ser do meu interesse?”

“Escuta, criatura geniosa! Descobri que a Amarilys te enganou na venda da casa. Se não acredita em mim, Paloma sabe de tudo. Aquela fura-olho e aquela lacraia do olho azul te roubaram dinheiro. Tá bom pra você?”

Não demorou muito e logo Félix ouviu o barulho do portão se abrindo. Rapidamente entrou e subiu. Lá em cima a porta do apartamento já estava aberta esperando por ele. No corredor havia um cheiro maravilhoso, ele logo sentiu quando saiu do elevador. Cheiro esse que vinha lá de dentro da casa do loirinho. Félix empurrou a porta e entrou.

Aquele que parece um carneirinho vinha da cozinha, onde acabava de preparar algo. Por educação ofereceu à Félix, que recusou “Já jantei, obrigado.”

Niko disse que comeria mais tarde, então. Acomodaram-se no sofá e Félix fez uma única pergunta:

“Quando você vendeu sua parte na casa pro Eron, você não pediu uma avaliação?”

“A Amarilys que fez isso.”

“E você confiou nela! Confiou neles! É o apocalipse...”

“Ué... claro... foi uma corretora profissional que avaliou o imóvel.”

Félix então prosseguiu contando tudo que descobriu mais cedo. Reproduziu a conversa que teve com a irmã e o cunhado, acrescentando um drama aqui, outro ali, sobre Paloma não ter dito nada ao amigo.

Terminou recomendando que Niko contratasse uma advogada para resolver a questão.

“Aqui, anota o número. Doutora Sylvia Gusmão. Foi a Glauce, uma médica do San Magno, que me apresentou. Fui até ela quando pensei que meus pais iam se divorciar. Soube que é uma advogada diabólica!”

O loirinho anotou o número e agradeceu por Félix ter ido até lá lhe contar tudo.

“Não precisa agradecer. Eu não vim até aqui por você. Quero é ver aquela lacraia se ferrar.”

“Tá bom. De qualquer maneira, obrigado.”

Niko agradeceu novamente e acrescentou que, no dia seguinte logo pela manhã, procuraria a advogada e iria confirmar se houve mesmo um erro no valor do imóvel para que pudesse cobrar a diferença.

“Oi? Você ouviu o que eu disse? Ela confessou que, deliberadamente, arrumou uma avaliação abaixo do valor de mercado. Não foi um erro.”

Era difícil pra Niko acreditar, muito menos perceber, a maldade nas pessoas. Ele apenas balançou a cabeça concordando mesmo que, no fundo, acreditasse nas chances daquilo ser apenas um mal entendido. Não havia razão para que Amarilys lhe fizesse mal, muito menos Eron, era nisso que ele acreditava.

E Félix disse mais:

“Mete um processo no Eron!”

“Processo?! Não! Por que eu faria isso?”

“O que ele fez é crime, vocês tinham uma relação de anos, você tem seus direitos e...”

“Não, Félix! Tenho certeza que ele não sabe de nada.”

“Certeza? Você tem certeza!?”

Niko justificou-se dizendo que confiava no ex companheiro, que ele jamais o enganaria dessa maneira.

“Dessa maneira, não? OK. Mas te trair com a Amarilys...”

Niko mais uma vez usou de diversas justificativas defendendo Eron. Disse que, à princípio, Eron fez o que fez porque queria dar um filho aos dois. Félix revirava os olhos.

“Outra coisa, A Paloma devia ter te contado isso. Mas aquela ali...”

Niko também defendeu a amiga, disse que entendia o lado da médica, por ela ter amizade por Amarilys também, era natural que ficasse dividida, e que sabia que Paloma estava agindo como acreditava ser correto.

“Aff, Niko... você é ingênuo demais... a Paloma não é essa santa, não!”

“Como assim? Porque você diz isso da sua irmã?”

“Nada... esquece... não importa isso agora. Importa que estou espantadérrimo como alguém tão ingênuo como você conseguiu ser dono de restaurante!?”

Sorrindo, Niko tinha a explicação que, para ele bastava: “Eu sempre gostei de cozinhar. Sempre adorei culinária japonesa. Juntei minhas economias e pronto. Investi tudo ali. No começo foi difícil, restaurante dá um trabalho... eu chegava em casa morto às vezes, mas deu certo.”

Félix olhava para Niko incrédulo, não se lembrava de já haver conhecido criatura tão pura na vida. Pura e ingênua. Félix pensava na frente, antes mesmo que algo lhe acontecesse ele já estava se protegendo. Já Niko era totalmente entregue, não se protegia porque nem imaginava que certos perigos existiam, que certos tipos de pessoas andassem à sua volta. O Eron devia proteger essa pobre criatura, no entanto... depois eu que sou o malvado.— enquanto Félix pensava, o silêncio se fez entre os dois.

Até que Niko quebrou o gelo, fazendo o que melhor sabia fazer: ser gentil e demostrar gratidão.

“Por falar em saber cozinhar, você não quer mesmo provar o que eu fiz? É Fettuccine Alfredo de frutos do mar.”

Félix disse não com a cabeça.

“Come a sobremesa então. Fiz um doce maravilhoso, deixa eu te servir um pedaço.”

Félix recusou mais uma vez. Não parecia ter mais nada a dizer, mas continuava lá sentado, olhando ao redor da sala. Avaliando que aquele parecia ser um apartamento enorme para um homem sozinho e sem filhos como o carneirinho. Não aceitou a refeição, nem a sobremesa, já tinha contado tudo sobre Amarilys, mas não dava sinais de que ia embora.

Niko não sabia muito bem como agir “bom, então... se você já me contou tudo...”

Bastou isso e Félix levantou-se como um raio “não precisa me mandar embora, eu já vou mesmo.”

“Eu não estou te mandando embora...” Niko levantou-se também. “Olha, fiquei muito grato que você veio até aqui.”

“Vim porque quero pisar naquela lacraia.”

“Tá bom, Félix... mas mesmo assim...”

“Mas já vou, vou curtir a night, conhecer pessoas, aproveitar a vida...” Félix arrumou o cabelo, ajeitou o paletó e começou a caminhar na direção da porta.

Niko estava grato, feliz e sentiu que Félix, apesar de tudo, podia ser um bom amigo. Pensou rápido e, o que disse, saiu sem muito pensar “não quer aquele café agora?” ofereceu.

Félix parou, virou a cabeça e o encarou sorrindo.

Niko explicou-se “Olha é sério, estou te oferecendo um café, café de verdade, sem segundas intenções, ta?”

Félix então relaxou, aí perguntou se podiam conversar mais um pouco pois ele tinha outra coisa à dizer. Sentaram-se novamente. O moreno explicou-se dizendo que não foi pra cama com ele na noite anterior para se vingar de Eron. “Rolou porque rolou, porque fiquei à fim, queria transar, senti tesão por você quando te olhei todo molhado, todo enrolado tentando abrir o portão na chuva...” sorriram, e se havia qualquer ressentimento pelo acontecido na noite anterior, teminou ali. Ambos se sentiam mais leves, sem o peso do mal entendido pairando sobre eles.

“Rolou porque achei que você tinha me convidado porque estava à fim... a fim de sexo... e eu adoro gente ousada”

Eles riram.

“Eu não sou... não sou ousado...”

“Sei, Niko... sei.”

“É verdade, eu nunca convidei ninguém assim pra...”

Félix o observava enquanto Niko, um tanto tímido, ria sem graça de cabeça baixa.

“Eu acredito. Acredito... Carneirinho.”

Por alguns instantes se olhavam sem nada dizer. Ambos concluindo que foi uma bobagem toda a briga e desentendimento desde a madrugada anterior.

“Então, amigos?” Félix estendeu-lhe a mão. Niko aceitou e a apertou para celebrar a amizade. Continuavam se olhando só que, agora, de mãos dadas.

Niko lembrou da sensação maravilhosa da noite anterior, de sentir-se vivo de novo, de esquecer os problemas e amenizar as mágoas. Sentiu que gostava de estar na companhia de Félix. Não quis que ele fosse embora logo, quem sabe se oferecesse... “Se você não quer café, quer que eu prepare alguma outra coisa pra você beber?”

Félix não respondeu logo. Porque pensou em ir embora o mais rápido possível, havia algo ali que começava a assustá-lo. Ao mesmo tempo se perguntava porque aventurar-se pela noite paulistana atrás de companhia quando já tinha, segurando na sua mão, um carneirinho daquele? E enquanto segurava aquela mão, não conseguiu evitar de correr os dedos pelo braço do loiro, provocando arrepios nos dois. Eram dois adultos que sentiam atração um pelo outro. Por que não?

Respirou fundo e decidiu-se, pois nada tinha mesmo a perder “Tem algo sim, que eu quero beber...” aproximou-se do rosto do loirinho e disse colando a boca no ouvido dele “mas você não precisa preparar, já está pronto...”