Desconexão

Terrível descoberta


“Preciso arranjar mais Pocky.”

Kyouko viu que, na gaveta, o seu kit de sobrevivência estava em falta. Quando fechou, com o impacto, um pequeno pedaço da superfície do criado mudo desprendeu e caiu no chão.

“Droga...”

Os pés da cama, a porta, a escrivaninha, a penteadeira... tudo no quarto que era de madeira e que água havia alcançado, estava apodrecendo.

Quando a mãe dela ver isso.

Contudo, ela e Sayaka eram responsáveis pela faxina. Kyouko nunca viu a mãe entrar no quarto, aliás, raramente a vê devido o turno de trabalho. O pai, pelo o que sabia, trabalhava fora da cidade.

Apesar de ter uma família, tu teve uma vida bem solitária nesta casa. Pensou Kyouko enquanto observava Sayaka na escrivaninha. “E então? Teve alguma idéia?”

Sobre a escrivaninha havia várias anotações. Mapas, endereços e horários. Tudo o que Sayaka conseguira guardar em sua cabeça. Várias vezes ela se viu obrigada a destruir esse material na esperança que Homura não descobrisse a extensão dos seus conhecimentos. “Ainda estou pensando. Não sei como vou conseguir fazer a Madoka lembrar. Eu preciso de um tempo com ela, mas...”

Kyouko disse, cruzando os braços. “Tinha que ter aproveitado aquele dia que a Homura não tava na sala.”

“Mas você viu como ela chegou no dia seguinte toda alegre. Ela devia estar de tocaia. Estou te dizendo, tem que ser algo pensado. Oportunidades são ilusões nesse mundo, só existem armadilhas.” Sayaka falou enquanto organizava algumas folhas.

Kyouko chegou ao lado dela. “Por que não desiste disso?”

Sayaka virou para Kyouko. “De novo com isso?”

“Não.” Kyouko gesticulou. “O que eu quero dizer é sobre tentar outra coisa além de recuperar as memórias da rosinha.”

Sayaka ficou desconfiada. Imaginou o que Kyouko estaria pensando. “Se acha que temos uma chance contra Homura, eu digo que não. Antes de darmos um passo, ela vai ter apagado as nossas mentes.”

“Depois do que tu falou, eu até que tava afim de dar uma boa surra nela.” Então Kyouko balançou a cabeça. “Só que não é isso que eu tava falando.”

“Tem algum plano em mente?” Sayaka estava mais curiosa.

Kyouko coçou a nuca. “Bem... não. Eu só queria te ajudar nas idéias. Quem era boa nos planos era Mami e a Homura. Eu tava lá pra resolver a parada quando não dava certo. Heh.”

Sayaka suspirou e voltou sua atenção novamente para as anotações. “Então...”

“Ei Sayaka.”

“Hum...” Sayaka manteve sua atenção nas anotações.

“Por que a gente não tenta falar com a Mami?”

Sayaka ficou parada por um momento, depois olhou para Kyouko.

“Como eu disse. Ela é boa com planos. Além disso, ela estuda em outra sala. Homura pode ser rápida, mas acho que ela não consegue estar em dois lugares ao mesmo tempo.” Kyouko sorriu. “Não seria bom ter ela com a gente?”

“Claro que seria.” Sayaka disse sem entusiasmo. “O problema é justamente o fato que ela estuda em outra sala. Contactar ela é bem arriscado, ainda mais que provavelmente teremos que recuperar a memória dela.”

“Que mal hein?” Kyouko compartilhou o desânimo.

“Mas eu estou sem idéia.” Sayaka segurou um dos papéis da escrivaninha contendo um desenho da planta da escola. “Talvez valha a pena tentar.”

“É? Nós vamos tentar mesmo?” Kyouko ficou perplexa.

“Sim.” Sayaka falou. “Só que antes precisamos checar como ela está.”

A expressão de Kyouko fechou. “Cê não disse que ela tava bem?”

Sayaka teve cuidado com as palavras que iria dizer. “Se Homura alterou novamente as memórias dela, é possível que a rotina dela esteja diferente. Eu só quero uma confirmação, apenas isso.”

Kyouko fechou os olhos e passou a mão no seu rabo de cavalo. “Ah tá. E como pretende fazer isso?”

Sayaka sorriu, tanto por Kyouko ter aceitado seu argumento como pela resposta que ela iria dar. “Refazendo alguns passos.”

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O sinal toca, anunciando o fim de mais um dia de aula.

Sayaka e Kyouko foram as primeiras a sair da sala, uma rotina seguida à risca. As duas passaram em um corredor onde era possível ver o portão da escola através dos longos painéis de vidros. Muitos estudantes passavam por ali com pressa para ir embora.

Algo chamou a atenção de Kyouko. “Sayaka, vou comprar algo na máquina de doces.”

“Vai lá. Eu espero.” Sayaka ficou próxima aos painéis, para não bloquear a passagem dos outros estudantes no corredor.

Kyouko escancarou um sorriso. “Ei Sayaka...”

“Hum?”

“Me empresta uma grana aí?”

Sayaka irritou-se. “Já gastou todo o dinheiro que a minha mãe lhe deu?”

Kyouko continuava sorridente. “Pois é né.”

Sayaka balançou a cabeça em sinal de desaprovação. Depois abriu sua mala e pegou algo lá dentro com a mão bem fechada. “Aqui.”

Sayaka depositou uma nota de dinheiro bem amassada nas mãos da Kyouko.

“Tem que cuidar melhor do teu dinheiro, se compra comida com isso.” Kyouko retrucou.

Sayaka voltou a abrir a mala. “Pode devolver então.”

Kyouko segurou a nota com força, amassando-a ainda mais. “Obrigada.” E foi até a máquina de venda.

“Ai...ai...” Sayaka suspirou e ficou olhando para as pessoas lá fora.

Kyouko enfiou a nota no local indicado, mas a máquina rejeitou, cuspindo para fora. “Merda...” Ela esfregou a nota entre as mãos e tentou novamente. A máquina recusou outra vez, pois uma das pontas da nota estava dobrada.

O corredor foi ficando cada vez mais vazio.

“Vai lata velha!” Kyouko deu um soco na lateral da máquina.

“O que foi Kyouko?” Sayaka questionou.

“Essa máquina estúpida não tá aceitando o dinheiro.”

“Hum... Continua tentando.” Sayaka permaneceu observando as pessoas que passavam pelo portão da escola. Onde está você?

Enquanto esfregava novamente a nota, Kyouko percebeu um movimento pelo canto do olho. No reflexo do vidro de uma das salas, longas mechas escuras esvoaçavam. “Eu já decidi o que vou querer, vai ser amendoim coberto de chocolate. E você?”

Os olhos de Sayaka arregalaram-se. Esse é o sinal que Homura está por perto. “Eu vou querer bala de goma.”

“Beleza. Vou usar a minha técnica secreta.” Kyouko assoprou as palmas das mãos algumas vezes antes de esfregar a nota de dinheiro. Como em um passe de mágica, a nota estava esticada, com nenhuma de suas pontas dobradas. “Agora vai entrar.”

Vamos. Vamos. Apareça! A cada segundo que passava a angústia de Sayaka aumentava.

Então, no meio da multidão lá fora, ela reconheceu aqueles cachos loiros, com uma presilha em forma de flor. É ela! Parece estar indo embora com duas colegas. Espera, mas...

“Ei Sayaka!” Kyouko ofereceu o saco com balas de goma. “Vamos embora? A gente já tá atrasada.”

Sayaka pegou o saco. “É e muito. Vamos indo.”

As duas caminharam pelos corredores vazios. O único som vinha dos passos delas.

Mas isso não era verdade para Kyouko. Não para alguém que andou sozinha nas ruelas escuras de Kazamino. Nas longas noites, ela conheceu pessoas que não mereciam ser salvas das garras dos demônios. Nesse ambiente, mesmo uma garota mágica tinha que tomar muito cuidado.

Tem algo errado com os passos da Sayaka. Kyouko percebeu que no som havia algo a mais. Era o passo de outra pessoa.

Quem estava seguindo as duas havia tomado o devido cuidado de sincronizar a passada.

Sayaka, completamente ignorante, estava comendo as balas.

Kyouko concluiu que avisá-la poderia piorar a situação, a melhor coisa a se fazer era orar. Não olhe pra trás. Não olhe pra trás. Não olhe...

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“Então ela estava nos seguindo mesmo?”

Sayaka e Kyouko haviam entrado em uma loja de conveniência.

“Até a gente sair da escola. Tenho certeza.” Kyouko estava pegando caixas de Pocky na prateleira e colocando no bolso do uniforme.

Sayaka desconfiou. “Ei! Você vai passar no caixa, não vai?”

“Claro. Eu trouxe dinheiro comigo.” Kyouko deu uma piscadela. “E como tá a Mami?”

“Bem... eu a vi acompanhada de outras duas estudantes. Ela não deve se lembrar de nada.”

Kyouko puxou um sorriso de lado. “Isso dá de resolver. Heh.”

“É mas...” Sayaka ficou mais séria.

“O que foi hein?” Kyouko franziu a testa.

“Eu não vi ela com a Nagisa. Eu sei que as duas estavam juntas e...”

“Nagisa? Quem?” Kyouko interrompeu Sayaka.

“Ah claro! Você não sabe.” Sayaka sorriu. “Você a conhece como Bebe.”

“Bebe...” Kyouko abriu ainda mais olhos e escancarou a boca em alegria. “Aquela boneca falante tá aqui?!”

Sayaka ergueu uma das sobrancelhas. “Sim, mas na verdade ela é uma garota mágica também. O nome dela é Nagisa Momoe. Se lembra?”

“É...” Kyouko ficou passando a mão no queixo. “Ela tinha um cabelo bem comprido e claro, né? Parecia ser uma criança... ah! Tá difícil! Naquela hora estava acontecendo muita coisa, parecia um sonho louco.”

“Ei!” Sayaka empurrou ombro da Kyouko com a mão. “Aquilo foi bem real.”

“Tomara que seja.” Kyouko segurou a mão da Sayaka. “Então ela tá com a Mami.”

“Agora não sei.” Sayaka voltou a ficar séria e ponderou. “Naquele dia que eu vi a Mami com a Homura, pode ser que ela estivesse atrás da Nagisa.”

Kyouko falou em tom de preocupação. “Cê acha que a Homura...”

Sayaka olhou nos fundos dos olhos da Kyouko. “Você não vai entender, mas eu digo que Homura conheceu Nagisa em outras circunstâncias. Eu temo que ela possa ter cometido algo terrível.”

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Um gole.

Homura estava em seu salão, ainda vestida com o uniforme da escola, sentada na ponta de uma mesa comprida. Suas crianças também estavam em seus assentos. Ela colocou a xícara no píres.

“Como ficou?” Nagisa estava sentada em uma cadeira próxima a Homura. Usava um vestido preto com bolinhas vermelhas. Seus olhos alaranjados demonstravam a sua ansiedade.

“O chá preto está excelente.” Homura sorriu, sua mente vagava em memórias distantes. “É semelhante ao da Tomoe-san.”

“Sério?” A alegria irradiava na face de Nagisa. “Eu via como a Mami preparava, mas eu só pude começar a praticar depois que você mudou tudo e eu voltei a ser uma menina.”

“Entendo.” Homura não tardou em tomar mais um pouco daquele chá.

“Ah! Polina. Aqui.” Nagisa avistou sua lacaia trazendo uma bandeja de biscoitos com gotas de chocolates.

Homura observou como a lacaia estava tendo dificuldades de encontrar um espaço naquela mesa farta de doces. Tamanha abundância que suas crianças os usavam para atirar umas nas outras.

Homura bateu as palmas, a gema no seu brinco cintilou. “Modos na mesa, crianças.”

Nagisa ajudou Polina com a bandeja, mas não antes de comer dois biscoitos. Seu sorriso estava cheio de farelo.

Aquela cena fez Homura pensar. Eu consigo fazer alguém ser feliz. “Sabe bruxa...”

“Hum?”

“Eu vi a Madoka hoje. Ela não se lembra de nada sobre mim.”

Nagisa ficou mais séria. “É para ser assim, não é?”

“É... para ser assim...” Homura concordou sem entusiasmo. “Infelizmente Madoka continua muito isolada. Eu cometi um erro.”

“E qual foi?” Nagisa ficara curiosa.

Homura tomou mais um gole antes de prosseguir. “Quanto a capacidade que Madoka tem em fazer amizades, eu superestimei. As únicas amigas dela eram a Sayaka Miki e Hitomi Shizuki, especialmente a Miki-san. Torná-la uma estudante transferida só piorou a situação. Eu devia ter explorado outra solução.”

“E você sempre a está protegendo...” Nagisa comentou.

“Exatamente. Logo ela vai entender isso como um ato de amizade, de aproximação, e então...” Homura suspirou e colocou a mão na testa. “Preciso acabar com esse círculo vicioso.”

“Quer que eu seja amiga dela?” Nagisa sorriu.

“Não!” Homura exclamou, incrédula.

Nagisa ficou de cabeça baixa. “Então por que me contou tudo isso?”

Homura desviou o olhar. “Bem... eu...”

“Ah... entendi.” Nagisa disse em tom sereno. “Você só queria alguém para conversar.”

Homura respondeu prontamente, balançando a cabeça. “Não... é que...” Não houve tempo para ela procurar mais palavras. Uma torta a atingiu em cheio no rosto.

Nagisa ouviu o som ensurdecedor que as bonecas estavam provocando ao bater a talheres contra a mesa. Com certeza havia sido uma delas, mas qual? Jamais saberia. “Polina, traz guardanapos.”

Homura gesticulou. “Não precisa. Sabe disso.” Seu rosto estava coberto por um creme branco com pontinhos verdes. Ela passou os dedos para retirar o que estava na altura dos olhos e colocou na boca. “Mmmhhmmm... Torta de limão com raspas. Delicioso.” Ela focou em Nagisa. “Então bruxa, eu estou parecida contigo?”

Nagisa tampou a boca com a mão. “Ehihi. Eu acho que sou mais bonita.”

“Fufufu.”

Apesar do bom momento, Nagisa não queria deixar aquele assunto mais sério de lado. “Então Homura-chan... você pretende tornar alguém amigo dela?”

Compreendendo a entonação na pergunta da Nagisa, Homura respondeu. “Não será necessário. Na verdade eu quero que tudo siga o curso natural.” Ela passou a língua, removendo o creme envolta da boca. “Apenas pretendo facilitar.”

Nagisa ficou satisfeita com a resposta. “Eu também acho melhor não forçar, senão pode acabar ferindo os sentimentos de alguém.”

“Continua afiada, bruxa.” Homura lambia os dedos.

“Ai Homura-chan... Assim eu fico encabulada.” Nisso Nagisa deu uma olhada na xícara. “Ah! Desculpe, eu nem vi que estava vazia. Tem um pouco mais na cozinha. Eu não preparei muito porque não sabia se ia ficar bom. Quer?”

Homura continuava deslizando os dedos no rosto, retirando o que ainda restava da torta. “Adoraria mais uma xícara antes de partir e pode fazer em maior quantidade na próxima vez.”

“Obrigada!” Nagisa pegou o píres com a xícara e foi correndo até a cozinha.

Quando a porta da cozinha fechou, houve um breve momento de silêncio no salão.

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Homura estava checando o quanto o seu uniforme ficara sujo. “É. Vou tentar isso por primeiro, se tudo der certo, estarei resolvendo dois problemas de uma só vez.”

Suas crianças na mesa cochichavam entre si.

Homura pegou um biscoito na bandeja e ficou analisando-o. “Só imagino a expressão que ela irá fazer, quando souber.”

O biscoito partira em duas partes.

“Fufufu...”