Desamparo
Em seus braços
— Ei! Espera, Haru!
A criança parou bem debaixo de uma cerejeira. As pétalas cor de rosa pousavam sobre sua cabeleira negra graciosamente, fazendo-o ignorar momentaneamente a voz esganiçada que o chamava.
Rin ganhara uma bicicleta há pouco tempo e desde então não parava de manobrá-la irresponsavelmente. O menino jogou o guidão para a esquerda e riscou o asfalto, buzinando firme enquanto fazia a curva para bloquear a passagem do amigo. Ao fim da manobra, Rin exibiu um largo sorriso, todo pomposo e convencido. Haru não tinha muita paciência para suas amostras exibicionistas, mas relevou pois pétalas de cerejeira caíam sobre sua cabeça.
— Ficou impressionado?
— Se eu disser que sim, você me deixa em paz?
— Credo, Haru. Assim você me desmotiva...
As madeixas ruivas de Rin dançavam ao ritmo da suave brisa que vinha do leste. Haru deixou-se corar por um leve instante ao admirá-lo e virou a cabeça, recomeçando a caminhada logo em seguida. Rin fez beicinho, levemente frustrado, mas pedalou sua bicicleta para fazer companhia ao amigo.
— Você quer jogar RPG lá na minha casa? — convidou o garotinho ruivo após alguns arrastados minutos de silêncio. — A Gou disse que, dessa vez, deixa você ser o orc.
— Rin.
— Sim?
— Quer ir à praia comigo?
Rin parou de pedalar, freando a bicicleta pouco antes da linha do trem.
— Ei, eu fiz o convite primeiro!
O moreno também parou de caminhar e ergueu a cabeça, olhando diretamente para aqueles intensos e quase vítreos olhos rúbeos.
— Por favor.
Rin suspirou. O que não fazia por um amigo?
//////
A bicicleta estava encostada na mureta carcomida pela maresia e os dois garotos estavam mais à frente, sentados na areia, de frente para o mar. O sol se punha preguiçosamente no horizonte enquanto o vento assobiava e cobria a cidadezinha de Uradome.
— Sabe — Os olhos, tão vermelhos quanto rubis, acompanhavam o vai-e-vem da água. —, soube que meu pai costumava dizer que, em Uradome, o mar é enfeitiçado.
— Enfeitiçado? — Aquilo despertou a curiosidade do mais novo.
— Para fugir da perseguição, bruxas transformaram-se em sereias há muito, muito tempo — A voz de Rin era cerimoniosa, como se estivesse deixando como único legado uma narrativa épica e confidencial. — Elas vagavam pelos oceanos em busca de um novo lar e só aqui se sentiram verdadeiramente protegidas. Após séculos, elas dissolveram-se e passaram a ser a própria água, sendo conhecidas como as guardiãs de toda a costa dessa praia.
Haru olhava boquiaberto para a água à sua frente. Sempre desconfiou de suas propriedades mágicas — não era à toa que se sentia tão energizado quando mergulhava nela. Entretanto, logo a divagação deu espaço para uma preocupação. Hesitou um pouco antes de perguntar:
— Rin, por que você é meu amigo?
O ruivo ergueu uma das sobrancelhas, desconfiado. Por que uma pergunta tão estranha? Mas, pensando bem, Haru era realmente estranho. Todo aquele jeito introspectivo, aquelas cortadas um tanto ríspidas, o corar frequente em seu rosto...
— Sei lá. — concluiu de maneira despreocupada.
— Como assim, "sei lá"? — questionou Haru, indignado.
— Só te achei legal e ponto, ué.
A decepção de Haru era aparente. Esperava ser especial, esperava ter algum atrativo, alguma coisa que despertasse a atenção do amigo. Rin logo notou seu descontentamento e, rolando os olhos, resolveu incrementar a resposta.
— Você às vezes é meio grosso, meio cavalo. É caladão demais, e quando abre a boca...
— Já terminou?
— Ainda não — Rin achou graça e esboçou um sorrisinho. — Mas você é inteligente e observador. Não é todo mundo que costuma reparar em mim, mas você definitivamente pesca os mínimos detalhes. — Haru corou. Não pensou que suas ocasionais espiadelas em Rin fossem tão perceptíveis. Sentiu suas orelhas arderem e escondeu sua vergonha abaixando a cabeça. — Mas por que a pergunta?
— Sei lá, só deu vontade de perguntar...
— Nem vem com essa! Sei que tem algum motivo por trás. Desembucha.
Haru apertou os joelhos contra seu peito, encolhendo-se como se fosse uma lagarta no casulo. Murmurou:
— Meus pais não gostam de mim...
— Oi?
— Eu disse...
Um nó se formou em sua garganta e logo as lágrimas tomaram conta de seu rosto.
— Ei, ei! — Rin estava assustado. Nunca vira Haru chorar antes. Era quase assustador vê-lo tão frágil, os ombros trêmulos e a respiração entrecortada por soluços. Não fazia a menor ideia de como reconfortá-lo — até que, numa tentativa desesperada de fazê-lo parar, contornou o corpo do amigo com os braços e o trouxe para perto de si. — O que foi? Ei...
— Meus pais não gostam de mim — ele respondeu enquanto se debulhava em lágrimas. Desnorteado, Rin dava tapinhas consoladores nas costas de Haru, tal como fazia com seu cachorro. Não era muito bom em lidar com a tristeza alheia — normalmente era ele o sofredor da história. — Acho que vão se separar...
— Mas o problema não é você, e sim eles, não é?
— Não sou o suficiente para manter os dois juntos… — murmurou, fungando logo em seguida e tentando secar as lágrimas penduradas em seu maxilar. Odiava que as pessoas o vissem chorar.
Rin suspirou, abraçando o corpo de Haru com mais força.
— Meu pai morreu há alguns anos — O ruivo fez uma pausa. Haru abrandou o choro na hora, afastando um pouco a cabeça do peito do amigo para ouvir melhor. — Ele era um pescador — por isso as tantas histórias sobre magia e o mar. Mas uma tempestade o levou para longe e destruiu tudo. Sinto tanta falta dele...
Foi a vez de Rin chorar, deitando a cabeça sobre o ombro de Haru. Este, por sua vez, tentou assumir o controle, acariciando de maneira desengonçada a cabeça do outro enquanto um filete de lágrimas escorria timidamente pelas suas bochechas. Ambos choravam silenciosamente sob o céu já escuro enquanto as ondas movimentavam-se de jeito manso, suas caudas espumosas batendo contra a água cristalina.
Passados alguns minutos, Rin fungou e disse:
— Eu gosto de você.
Haru arregalou os olhos e afastou seu corpo abruptamente dos braços do ruivo.
— O-oi? — gaguejou a criança.
— Por que o susto? Nunca te disseram isso? — Rin se sentia perdido.
— Você gosta... de mim? — Haru indagou, descrente e ansioso. O rubor tomava conta de todo seu rosto.
— Sei que seus pais gostam, sim, de você. Mas, caso não acredite nisso, saiba que estou disposto a assumir esse sentimento deles. — Rin mirou profundamente o par infinitamente azul à sua frente como se fizesse uma promessa. Sua voz estava embargada. Parecia que estava prestes a chorar outra vez, tamanha era a solenidade do momento.
Haru sustentou seu olhar e, sem pensar, tomou a mão do amigo.
— Eu também gosto de você.
Uma pausa. O garoto piscou algumas vezes e, finalmente se dando conta do que fizera, largou a mão de Rin num sobressalto. Entretanto, o ruivo fez questão de recuperar o contato, entrelaçando suavemente seus dedos nos do moreno.
— Vamos ficar juntos pra sempre! — decretou. — Nunca vou te abandonar, tudo bem?
Haru estava tão envolto em magia e gratidão e encantamento que as palavras sequer saíram de sua boca, resumindo sua incredulidade com um aquiescer rápido.
Ambos continuaram ali, encarando a lua que pairava bem lá no alto.
//////
— Eu vou para a Austrália.
Haru paralisou e deixou que seu interior esculpisse o semblante. Os olhos estavam arregalados, petrificados. Gradativamente, uma ruga formava-se em sua têmpora.
— Como assim? — Não pôde deixar de perguntar. A situação toda era absurda demais.
— Vou morar lá... — Rin sequer conseguia sustentar o olhar de Haru, contentando-se em olhar para seus próprios pés. Suas mãos repousavam estupidamente ao lado de seu corpo, então resolveu esconder uma delas no bolso e a outra começou a coçar sua nuca. A voz falhava. — Lori e Russell me convidaram. Além disso, pretendo cursar a universidade de Sydney…
De que valeu toda a relação dos dois? Toda a rivalidade e, depois, a reconciliação? Se soubesse que Rin o abandonaria depois de tudo, jamais teria sido seu amigo. Sentia seu coração desmoronar, o fluxo sanguíneo abrandando a velocidade para dar espaço a um vazio fluido e contínuo. Entretanto, logo o torpor foi substituído por um furor que cobriu seu rosto de vermelho. Estava furioso.
— Você prometeu não me abandonar! — As palavras foram cuspidas de sua boca, certeiras. Rin sobressaltou-se e recuou instintivamente. Nunca ficou tão assustado. Aquilo estava totalmente fora de controle. Haru estava fora de controle. — Você mentiu!
E as lágrimas vieram à tona, traçando um sinuoso e ininterrupto percurso em suas bochechas coradas. Parecia aquela criança pequena que Rin acolhera tantos anos antes: sofrida, insegura, desamparada. Os ombros trêmulos, o rosto escondido nas mãos em concha, o arfar pesado, a coluna envergada como uma torre prestes a cair. Rin se sentia culpado, mas também sentia falta dos pais que o adotaram. Além do mais, o Japão não era seu lugar. Tudo ao redor — desde as cerejeiras até o mar sossegado e sem ondas — despertava as lembranças que tinha de seu pai. Tudo doía demais.
Doía também nunca ter tido Haru.
Tudo nele lhe era tão familiar. A maresia, o cloro da piscina, a madeira da mobília. O cercou com seus braços, assim como o mar cobria as ilhotas dispersas em Uradome. Um nó formava-se em sua garganta, ardido e doído como uma chibata açoitando sua traqueia. Seu coração estava pesado, preso a grilhões invisíveis. Sentiu as mãos de Haru prendendo-se às suas costas numa tentativa desesperada de fazê-lo ficar. Era como se quisesse capturar o vento.
— Eu te amo muito, muito… — Rin tentou dizer. A vida de Haru era no Japão, ele sabia. Tudo que o moreno sempre sonhara estava na placidez do interior, na areia pálida da praia, na desambição daquela cidadezinha. As velas do desatino, em contrapartida, lançavam Rin em direção à orla de Sydney. Lá era o seu lugar.
— Não como eu te amo. — A voz de Haru estava abafada. Parecia que tinha sido apunhalado pelas costas, sentindo-se indefeso. E estupidamente apaixonado. Ergueu a cabeça e, lentamente, aproximou-se dos lábios do outro rapaz. Só queria calar aqueles sentimentos, beijar Rin até não restar-lhe fôlego, preencher o buraco que formara-se em seu peito. Não poderia deixá-lo ir.
Rin retribuiu o beijo. Nunca sentiu tanto carinho e tanta dor. Segurou o rosto de Haru entre as mãos enquanto experimentava daqueles lábios macios. Depois de tantos anos sufocando aquele sentimento, enfim deixava derramar o amor que sentia pelo antigo rival. Depois de tantos anos mirando com profundo desgosto os beijos trocados pelo amado e por Makoto, pensava que o moreno jamais seria seu. Neste momento, entretanto, lá estava Haru, murmurando seu nome entre um beijo e outro. Rin afastou as madeixas negras de seu rosto e encostou seu lábios em suas pálpebras, sobrancelhas e testa. Entrelaçou seus dedos nos do moreno como fizera há tantos anos.
— Por quê? — indagou o ruivo. Passada a magia, restava a dúvida.
— Desculpa — Foi tudo o que o outro conseguiu dizer. Fungou mais um pouco, ainda atordoado pelos sentimentos que o atingiram em cheio nos últimos dez minutos. Não acreditava que traíra Makoto. Sentia-se culpado por isso — parecia que uma flecha envenenada por arrependimento fora cravada em seu peito. Não, não era isso. Sentia-se culpado por mentir para Makoto pois, desde o início, escondia seu desejo por Rin. Mas, quando ele foi embora — abandonando-o no Japão, levando consigo as memórias e luares e botões de rosas —, algo murchou em seu interior. Uma frustração reprimida, uma vontade extravasada apenas quando a água cobria seu corpo.
Mas não se arrependia de ter beijado Rin. Afinal, eles estavam destinados a isso.
Haru segurou a barra da camisa de Rin e fez menção de levantá-la, mas o ruivo o impediu.
— Ainda estou muito confuso.
— Eu sei — Droga, droga, droga, pensou Haru. É claro que está! — Rin, eu te amo muito. Só não quero que você vá embora...
— É só por isso que você me beijou? — As palavras apenas escorriam, abruptas e afiadas. Largou a mão de Haru e suas sobrancelhas estavam franzidas. — Para me convencer a ficar? Você sempre soube que eu estava apaixonado por você!
— Eu nunca soube! — Haru protestou, visivelmente frustrado. — Olha, meu namoro com Makoto foi um engano. Tudo foi um engano, menos nós dois. E agora que temos uma chance de recomeçar, você não pode ir embora.
— Isso só aconteceu porque eu disse que iria para a Austrália! Caso contrário, eu seria padrinho do seu casamento com Makoto daqui a alguns anos. — Rin estava enfurecido.
— Pare de me tratar como se eu fosse seu rival!
— A verdade — O ruivo o mirou com desprezo. — é que nós sempre fomos rivais.
Haru ficou em silêncio. Seus olhos esboçavam um profundo vazio e seu rosto assumiu uma expressão indecifrável, digna de perícia. Rin cruzou os braços e batia o pé impacientemente contra o chão. Apesar da carranca, seu interior estava em frangalhos. Sentia vontade de chorar e desabar ali mesmo, mas seu orgulho ainda era maior que tudo. Precisava preservá-lo e honrá-lo.
— Desculpa. — pediu mais uma vez, mas seus olhos estavam opacos. A voz não tinha emoção alguma. Na verdade, essa era a defesa de Haru. Caso se comportasse dessa maneira, nada atravessaria as altas muralhas que o protegiam do mundo lá fora.
— Eu vou embora — Anunciou e deu as costas, pisando duro em direção à porta. Haru o impediu, segurando seu pulso com força. — Nanase… — Rin ameaçou, porém saiu mais como um chamado desesperado.
— Não vou te deixar ir dessa vez. — E abaixou o olhar. Não conseguia conter a vermelhidão que se espalhava pelas suas bochechas. Reergueu a cabeça e fitou Rin com convicção. Estava decidido a fazê-lo ficar, isso era certo.
Os olhos rubros o encaravam com intensidade. Mais alguns minutos e eles conseguiriam derreter Haru facilmente. Em vez disso, alguns segundos depois, abrandou o olhar, suspirou e propôs:
— Quer ir à praia comigo?
//////
— Esse não é meu lugar. Essa calmaria toda… Essas lembranças… Sinto falta da vida de lá.
Os dois rapazes estavam à beira do mar, a água tocando-lhes os pés enquanto observavam o pôr do Sol.
— Desculpa por ser tão egoísta — As mechas negras seguiam a brisa vinda do mar. — Não é como se eu não pudesse te visitar e vice-versa…
— E mensagens de texto. Podemos mandar mensagens um para o outro — Rin colocou as mãos nos bolsos de seu longo casaco. Fez uma pausa antes de continuar. — Mas não era sobre isso que eu queria falar.
Haru aguardou em silêncio, mas percebendo que o ruivo não fazia menção de dizer qualquer coisa, franziu as sobrancelhas.
— E então?
— Eu só estava pensando em como você ficaria lindo com um terno branco.
Haru olhou para Rin, perplexo.
— Como assim…?
O ruivo sorriu e pegou a mão de Haru. Eles estavam frente a frente — duas enormes sombras projetavam-se na areia à medida que o Sol descia para dar espaço à noite.
— Estamos apaixonados um pelo outro há nove anos! — Ele lembrou e esboçou um grande sorriso logo em seguida. — Quando eu terminar a faculdade, o que acha de... casar comigo?
Os olhos azuis de Haru estavam arregalados. Era demais para seu coração de apenas dezenove anos. Sentiu suas mãos suarem e apenas conseguia se concentrar no movimento da água tocando e fazendo cócegas em seus pés. Qualquer reação jamais seria exagerada o suficiente para fazer par àquele pedido absurdo e impensado e incrível. Passado o choque inicial, não conseguiu conter o sorriso e, sem dizer nada, limitou-se a anuir com a cabeça enfaticamente.
Rin abraçou o noivo. Noivo! Haru não conseguia acreditar. Ele estava simplesmente petrificado, mas não parava de sorrir. O ruivo começou a chorar e o beijou sem qualquer embaraço; em seguida, levantou a cintura dele e carregou o corpo sobre seu ombro direito como se não pesasse quase nada. Em resposta, Haru apenas se contorcia de rir, dando leves soquinhos nas costas de Rin só por brincadeira e só porque estava estupidamente feliz.
O entardecer caiu, permitindo que a lua iluminasse a silhueta dos dois rapazes sorridentes caídos na areia, de mãos dadas e embalados pela noite. Enquanto a brisa de Uradome continuasse a ressoar e o encanto do mar protegesse a praia, tudo ficaria bem.
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