Acordei cedo, Trianna ainda dormia na cama do outro lado do quarto.Eram 6 da manhã.

Me levantei bocejando e checando meu telefone. Ninguém me enviou mensagens ou algo assim.Vesti minhas roupas que estavam jogadas atrás da porta e deixei um bilhete para Tri.

Obrigada pelo pijama,muito confortável. Coloquei dentro da máquina de lavar. Fui pro trabalho, depois vou pra casa.VOU FICAR BEM!

Escrevi a última frase toda maiúscula,senão escutaria ”Who can it be now?” (que era meu novo toque,já que eu revivi minha paixão por Men At Work) um milhão de vezes.Ela sempre me ligava quando eu ia pra casa,ficar lá sozinha.

Fui para o café a pé, Trianna não morava muito longe de lá.O saxofone fez meu telefone vibrar e achei que Tri já tinha acordado. Olhei o visor, era Chad, meu melhor amigo.

– Bom dia,flor! Já de pé? – O sarcasmo era evidente,demais.

– Ah,cala a boca, Chad! Você sabe que eu não sou bancada pela mamãe como você é. – Peguei pesado.

– Como se você tivesse algum sinal da sua mãe. – Ele se arrependeu depois de falar – Desculpa...

– O que você quer afinal, Chad?Pelo que eu sei,quem está acordado muito cedo é você,considerando que hoje é sábado. – Ele deu um risinho leve antes de responder.

– Se você morasse com meu irmão duvido que conseguiria dormir mais do que isso.Claro que quando ele está bêbado piora,parece um trator dentro do quarto. – Quem riu fui eu dessa vez.Era uma boa razão.

– Não me culpe por Dante ser um babaca alcóolatra.

– Vai pra casa hoje?

– Vou. Por quê?

– Até que horas vai seu turno hoje? – Ele falava do serviço no Celeiro, o café onde eu trabalho.

– Pego às 7 e saio lá pras 3,se tudo correr como planejado.

– Me espera até as 4,ok?

– Ok.

Desligou.Fui para a porta dos fundos,no fim do beco.Carlos,meu chefe, estava nervoso.Ele era um daqueles imigrantes mexicanos que conseguiu entrar legalmente no país e ajuda quem vive lá ilegalmente,com empregos.

Eu não sou mexicana,ou imigrante ilegal,mas ele me ajudou como se fosse uma.Eu trabalhava lá há dois anos,quando minha mãe sumiu de vez. O governo queria me mandar pra casa da minha tia,Elizabeth,mas ela se negou a me acolher,dizendo que eu traria azar.

Depois disso quem se negou a ficar quieta num canto fui eu.Disse que fugiria se ficasse em lares adotivos.Não me levaram a sério e eu fugi na primeira noite.

Achei um cara alugando um apartamento no Brooklyn.Apesar de eu só ter 13 anos na época ele não se importou em alugá-lo pra mim.Desde que eu pagasse em dia,tudo ficava bem.

A mãe de Chad disse que responderia por mim em uma escola pública e daí minha vida segue quase igual.Chad me irritando o tempo inteiro e me dizendo quão bonito era,seu irmão Dante me cantando 24 horas por dia e Trianna tendo seus lapsos de interesses,seus vícios eternos,que sumiam em uma semana.

– Aonde infernos você estava,corazón? – Carlos também ama me irritar,como se percebe pelo apelido. – Vamos logo,as pessoas estão chegando.

– Sim,senhor. – Amarrei o avental e peguei uma bandeija.Me equilibrei nos saltos e fui para o balcão,que já tinha três pedidos.

Servia as pessoas que iam chegando,andando de um lado pro outro entre mesas numeradas. Essa manhã só eu e Alejandra atendíamos as 20 mesas. Ela ficou com as da direita,eu com as da esquerda.

Era um dia normal de trabalho,se não fosse pelo homem que entrou e se sentou em uma das mesas da esquerda.Ele era estranho.Muito pálido,parecendo um defunto,com uma barba e cabelos na altura dos ombros.Os olhos escuros poderiam ser tanto de um gênio do mau quanto de um louco.

As pessoas ao redor dele não pareciam confortáveis com sua presença,mas eu tinha o ímpeto de me aproximar dele.Caminhei normalmente até ele e peguei o bloquinho de anotações,esperando o pedido.

– O que o senhor vai querer? – Já eram onze horas,mas o movimento do horário de almoço não tinha começado ainda.

– O que você indicaria? – A voz dele era profunda e elegante,mas ainda assim eu não conseguia decidir se ele era mau ou louco.Apoiou suas mãos brancas sobre a mesa e esperou a resposta.

– O café expresso e uns biscoitos de avelã,são ótimos.

– Então é isso e uma conversa com você.

Qual é a desse cara?Tipo,eu tenho quinze anos,então pode tirar o cavalinho da chuva.Mas do jeito que ele falou não foi difícil perceber que não era daquele jeito que ele queria conversar.

Levei a xícara e o prato sem a bandeja,depois de pedir uma pausa de 5 minutos para Carlos.Coloquei tudo sobre a mesa e cruzei meus braços.Não me sentei,mas parecia ser o que ele esperava que eu fizesse.

– Não quer se sentar? – Neguei rápido com a cabeça. – Bom,ao menos fique perto da cadeira,pode ser preciso.

Ele deu um longo gole na xícara e pegou um biscoito antes de começar a falar.Eu esperava imapciente,meu tempo correndo no relógio acima da máquina de refrigerante.

– Sua mãe não teve ou tem culpa de nada.Mas você tem que entender que ela era sensível e despreparada pra tudo o que ela teve que enfrentar. – Arregalei os olhos por um minuto antes de disfarçar o choque,por ele saber da minha mãe.Ele percebeu mas não falou nada,continuou. – Ela fez tudo que podia,mas no fim a insanidade a controlou e ela fugiu.

– Desde quando você sabe da minha mãe?

– Desde que ela me disse que estava grávida e que eu era o pai. – A cadeira veio realmente a calhar.Me sentei tremendo um pouco.Cerrei os pulsos e pensei se era por choque ou raiva.Ou os dois.

– Então,o senhor vai me dizer seu nome,ou eu vou ter que manter minha raiva cega? – Ele bebeu o café de novo,mas não parecia normal.

– Eu entendo sua fúria.Mas eu não podia e não posso te reclamar.Ao menos não enquanto meus irmãos mantiverem a richa pelo poder.

– Então eu dependo da aprovação dos meus tios,que eu nem sei quantos e como são,para você aparecer? – Era raiva,totalmente.

– Mais ou menos.Não vai acreditar em mim,mas é pra sua própria segurança.Os deuses são assim.

– Como?

– Você perguntou meu nome não foi? – Tomou o último gole do café e pegou outro biscoito. – Hades,cabe a você dizer se é ou não um prazer.

– Olha,eu não sei qual é a sua,mas eu tenho mais o que fazer do que ficar ouvindo um louco se chamar de senhor do submundo e se declarar meu pai por ai. – Eu me levantei e ele segurou meu pulso quando eu ia voltar para o balcão.

– Eu compreendo,mas você vai entender logo,Elgin.Ao menos eu acho,já que é inevitável. – Ele soltou meu pulso,mas eu não sai de lá. – Sua mãe era muito bonita e determinada,porém fechada pra si mesma.Você se parece com ela. – Ele puxou uma caixinha do paletó,que agora mais parecia um manto, e me entregou se levantando. – Creio que será útil.Mais alguma dúvida,pergunte à sua amiga Trianna ou a Dante.

Saiu assim que meus cinco minutos acabaram.Coloquei a caixinha no bolso do avental e voltei a trabalhar,fingindo que nada tinha acontecido.Peguei o dinheiro em cima da cadeira e voltei a servir as outras mesas.