Dead Island

A primeira das cores


Os passos, ainda que leves, ecoaram pelo vazio da grande casa enquanto a garota loira subia as escadas em direção ao corredor do segundo andar. Olhou para trás ao alcançar o topo e mordeu o lábio inferior em desgosto. Tão grande e bem decorada casa... Tão perfeita que era como uma casa de bonecas em tamanho natural.

A luz do sol invadia o hall através das enormes janelas ao lado da porta de entrada, criando uma atmosfera artificial pela maneira como os detalhes do vidro trabalhado manipulavam os raios de sol para que se projetassem de forma adequada no cômodo. Tudo ali era assim: projetado.

O olhar caiu sobre a mulher parada próxima à porta com os braços cruzados e expressão confusa enquanto encarava a garota no alto da escada. A loira sorriu, mantendo os lábios cerrados, e inclinou levemente a cabeça antes de seguir seu caminho rumo ao cômodo mais escuro daquela casa.

A mulher descruzou os braços e ergueu a sobrancelha, parecendo refletir por instantes antes de também deixar o cômodo e ir rumo à sala de estar.

***

Batidas suaves foram ouvidas através da porta de madeira branca, mas a ocupante do quarto fez que não ouviu, na esperança de que fossem embora. Grunhiu baixinho em irritação ao ouvir a maçaneta sendo girada, é claro que quem quer seja, não iria embora. A primeira regra daquela casa era clara: nada de portas trancadas. Pelo menos as dela, porque não se lembrava de uma vez sequer ter encontrado as portas dos cômodos de seus pais destrancadas, dos quartos ou dos respectivos escritórios.

Enrolou-se mais no edredom e virou-se para o lado oposto ao da porta, fingindo ainda dormir. Ouviu a porta fechar-se e passos ecoando pelo quarto silencioso, e sentiu o colchão afundando levemente quando o “intruso” sentou-se ao seu lado. Estremeceu ao sentir uma carícia suave em seu rosto, desistiu e abriu os olhos. Não precisou virar-se para saber quem era.

— Seulgi. - Disse baixo, sem se dar ao trabalho de deixar a voz rouca e arrancando uma risada curta da loira.

— Porque está fingindo dormir?

— Porque não queria minha mãe me dando aulas de como me comportar no jantar de noivado pelo dia todo.

Praticamente viu o sorriso sumindo no rosto da loira e por fim virou-se.

— E você, que faz aqui?

— Vim ver se ainda estava viva. Sumiu por mais de uma semana.

Acostumada à semi-escuridão, viu perfeitamente os olhos felinos a analisá-la.

— Estive ocupada.

— É claro que esteve.

Seulgi levantou-se e dirigiu-se à janela mais próxima da cama, abrindo as cortinas em um único puxão. Ouviu o resmungo alto da garota na cama mas não se incomodou e andou até o outro lado do quarto, abrindo a outra janela.

Voltou o olhar para a cama, sorrindo ao ver a garota coberta até a cabeça.

— Levanta dessa cama, Joohyun. Não vai querer estar com a cara toda amassada quando Sehun chegar e já são cinco da tarde.

— Ele só vem às oito... - A voz de Joohyun saiu abafada pelo travesseiro e pelo edredom. Seulgi voltou para a cama, apenas para puxá-lo de cima da garota, fazendo com que ela rolasse pelo colchão.

— E eu quero passar um tempo com você, agora levanta daí e vai se arrumar.

Joohyun levantou-se, passando a mão pelos cabelos ligeiramente bagunçados. Deixou o edredom embolado em cima da cama e caminhou para uma porta, também de madeira branca, no canto do quarto. Passaria despercebida para qualquer um que entrasse no cômodo pela primeira vez. Fechou a porta atrás de si e não demorou até o barulho da água corrente ser ouvido através dela.

Seulgi olhou ao seu redor por alguns instantes. Ainda que já conhecesse aquele quarto quase tão bem quanto o seu próprio, nunca deixava de se surpreender. Ele não destoava do resto da casa, era um cômodo perfeitamente planejado e decorado - pela mãe de Joohyun - assim como todos os outros.

As paredes eram divididas, sendo brancas na metade de cima e lilás bem claro na metade de baixo. Uma estante branca lotada de livros organizados por ordem alfabética e intocados ocupava toda a parede esquerda. Uma escrivaninha com nada além de um notebook em frente à uma das janelas, na parede de trás, e na parede esquerda as portas de correr do closet e a porta “oculta” do banheiro. Encostada na parede da frente, onde ficava a porta de entrada do cômodo, uma grande cama de casal com dossel, e uma cômoda com um abajur ao lado esquerdo.

Mas Joohyun colocara alguns toques pessoais em cantos daquele quarto.

Em uma das prateleiras da estante, os livros estavam propositalmente fora da ordem alfabética metódica. Em outra, a última prateleira, estavam os únicos livros que Joohyun lia. A maioria deles com uma capa escura, todos dos mesmos três autores. Todos gastos pelo incontável número de vezes em que foram manuseados.

Na escrivaninha, ocultos pelo computador, grandes “X” feitos com estilete estragavam a madeira. Um “Baechu” escrito de corretivo também estava lá, visível no canto direito do móvel. Seulgi riu ao lembrar-se do rosto vermelho de Joohyun e das incontáveis vezes em que a ouvira pedir que parasse de chamá-la assim. Mas jamais limpara o pequeno ato de vandalismo de Seulgi em seu quarto. O “Baechu” ainda estava ali, sujo pela poeira dos anos, mas presente.

Um adesivo gigante de sakura decorava uma das portas de seu closet, também fora Seulgi que ajudara Joohyun a colocá-lo, quando tinham 16 anos. Joohyun escondia (não muito bem), certa devoção pelas flores de cerejeira. Mas claro, apenas Seulgi sabia disso.

Uma foto - a única de si mesma que Joohyun deixava em exposição porque queria - das duas com dezessete anos, sentadas em um balanço. Naquela foto em especial, Joohyun trazia um sorriso sincero que Seulgi lembrava-se de ser o único que já tinha visto no rosto da garota em anos de amizade. O estranho a quem Seulgi pedira que tirasse a foto ruborizou ao devolver seu celular, gaguejando para Joohyun sobre como ela era bonita, ganhando um novo e tímido sorriso em troca.

E por fim o detalhe mais gritante e o único que causara alguns olhares enviesados dos pais: as pesadas cortinas negras na janela. A justificativa de Joohyun para a presença delas era absurdamente simples: ela não gostava da luz do sol.

Seulgi revirou os olhos consigo mesma e riu, jogando-se na cama da amiga. Esperou por alguns minutos, mas Joohyun não dava indícios de que sairia daquele banheiro tão cedo, então resolveu apenas esperá-la no jardim. Joohyun certamente saberia encontrá-la.

***

Joohyun desceu as escadas rapidamente, não querendo esbarrar com a mãe em algum canto da casa. Passou pela sala de estar para ter acesso ao jardim dos fundos, onde tinha certeza que Seulgi estaria. Caminhou lentamente pela grama em direção ao centro do jardim, no espaço em meio a um círculo de rosas brancas e vermelhas onde Seulgi gostava de ficar deitada. Sua mãe não gostaria nem um pouco de saber desse hábito, aquelas rosas eram a única coisa do jardim que a interessavam, por serem tão chamativas.

Encontrou-a sentada, sorrindo bobamente para a tela do celular.

— Sorrir como idiota para si mesma é contagioso?

Seulgi virou-se abruptamente, assustada, revirando os olhos ao notar o sorrisinho sacana no rosto de Joohyun.

— Eu não virei uma insensível ainda depois de tantos anos convivendo com você, então acredito que está segura.

— O que tem de tão interessante nesse celular pra te deixar com essa cara? - Joohyun inclinou-se curiosamente, mas fechou a cara ao ver a tela bloqueada.

— Não é da sua conta. - Seulgi mostrou a língua de Joohyun revirou os olhos.

— Que maduro da sua parte.

— Eu vou deixar você entrar mais na minha vida se me deixar entrar na sua. - Seulgi a encarou, a sobrancelha levantada.

— Mais do que você já entrou é impossível. Tem você em todo canto até mesmo do meu quarto. - Joohyun estava séria ao proferir essas palavras, como se pela primeira vez considerasse o fato. - Não vai mesmo me dizer quem é?

— Como sabe que é alguém?

— Eu te conheço.

— É, só a mim que você conhece pelo jeito.

Seulgi deitou-se na grama, olhando de baixo para cima para Joohyun.

— Vai ficar parada aí?

— Sabe que eu não gosto de ficar no chão. Além disso está esfriando, eu vou entrar.

— Senta aqui, Joohyun. Eu disse que queria passar um tempo contigo, ainda acho palhaçada essa história de casamento e você não tem conversado comigo desde que me deu a notícia.

Joohyun suspirou, impaciente e incomodada.

— Não há o que falar sobre isso, nós já tivemos essa conversa muitas vezes.

— Senta, Joohyun.

A garota hesitou, mas acabou por sentar-se ao lado da loira.

— Veja.

Olhou para Seulgi, confusa.

— Ver o que?

— O pôr-do-sol.

Joohyun olhou para o céu por alguns instantes, sem expressão.

— O céu tingido desse tom, não é lindo? Ele só fica assim em dois momentos do dia... Adoraria que o céu fosse alaranjado durante todo o dia. - Seulgi soou sonhadora, um tom de voz novo para Joohyun.

— O que tem demais nisso?

— Mas talvez seja isso o que torna esses momentos tão atraentes... O fato de existir uma hora específica para vê-los, o fato de serem tão... Únicos. Sim, creio que seja essa a palavra exata. - Continuou a divagar, sem dar atenção para o descaso da garota atrás de si.

Joohyun fitou Seulgi, que observava o céu com uma expressão realmente encantada. Ergueu uma sobrancelha e resolveu entrar. Levantou-se. Os passos foram abafados pelo gramado, mas Seulgi ainda podia ouvi-los. Ouviu também o novo suspiro frustrado e os passos fazendo o caminho reverso, e ouviu o baque surdo do corpo que caíra a seu lado na grama.

Assistiu o sol descendo no horizonte até que os muros da casa de Joohyun tapassem sua visão, e então fechou os olhos e sorriu.

Seulgi era como o tom alaranjado do céu ao pôr e ao nascer do sol: única. E esperava encontrar o tom correto que finalmente faria Joohyun enxergar que a vida não é feita de preto, branco e cinza, e sim de um misto de todas as cores existentes. Até mesmo aquelas que não se consegue enxergar.

— Eu não quero que você passe pela vida sem nunca ter vivido, Joohyun. Sei o que pensa sobre isso, mas eu quero que me dê uma chance de mostrar que as coisas são diferentes. Pelo menos experimente isso antes de se afundar de vez em uma vida vazia.

Joohyun manteve-se em silêncio, surpreendendo Seulgi. Manteve os olhos fixos no céu, ainda que já não houvesse sol, refletindo pela primeira vez sobre as palavras de sua única amiga.

A primeira cor que entrara em seu mundo, alaranjado.

***