Não! Não! Não! Não!
Por favor, não! Agora não! Eu nem pude dizer adeus! Por favor, não!
Quando a luz desapareceu, levou tudo com ela: German, o cavalo, o gramado, tudo havia desaparecido.
Tudo!
Eu estava na praça outra vez, debaixo da mesma árvore em que o German e eu estávamos encostados há alguns minutos, porém, agora era muito maior e a casca envelhecida.
Não! Por favor! Me deixe voltar! Por favor!
Não conseguia pensar direito. Apertei o celular, desesperada, tentando fazê-lo funcionar, tentando voltar. Eu precisava voltar. Aqui não era mais meu lugar. Não era mais minha casa. Nunca foi.
German era!
Desesperada, quase cega pelas lágrimas, comecei a correr em direção à loja onde comprei o celular. Ela teria que mandar de volta!
Esbarrei em algumas pessoas, que me olhavam com espanto, mas não pude parar para me desculpar. Não podia perder tempo. Entrei na loja ainda correndo, indo direto para o balcão de celular.
— Onde está a outra vendedora? — perguntei sem fôlego para uma garota.
— Quem? — ela me olhou espantada.
— A outra vendedora! A que me vendeu este aparelho há alguns dias. — eu tremia muito. Quase não conseguia ficar de pé.
— Creio que se enganou de loja, moça. — ela falou, enquanto examinava meu vestido. — Sou a única que trabalha neste setor.
— Não! — teimei. — Estou falando da outra vendedora. Uma mulher mais velha de cabelos grisalhos e com voz suave. A que me vendeu este aparelho! — mostrei o celular como prova.
A garota olhou em volta, assustada.
— Por favor, se acalme, sim? Vai ficar tudo bem. — ela levantou as mãos espalmadas, me trazendo a nítida lembrança de German com as mãos abertas dizendo que não me tocaria depois de me beijar pela primeira vez.
Meu desespero se intensificou.
— Não! Não está tudo bem! — berrei. — Eu preciso encontrar aquela mulher! Ela precisa... Ela tem que me ajudar. Eu tenho que voltar! AGORA!
Eu tremia muito, me apoiei no balcão para não cair. Não vi quando a garota chamou os seguranças, mas lutei contra eles empurrando com toda a força que tinha.
— Me solte. Eu tenho que voltar. German está me esperando. — as lágrimas me impediam de ver qualquer coisa. — Ele vai sofrer se eu não voltar. O que pensa que está fazendo? Me solta! — empurrei alguém com tanta força que acabei caindo.
Alguém se aproveitou disso e tentou me imobilizar. Debati-me no chão, gritando contra a pessoa, ouvindo muito barulho ao meu redor, mas ainda não conseguia enxergar nada com clareza. Mais mãos tentaram me segurar, até que um tempo depois, senti uma picada em meu braço, e tudo desapareceu outra vez.
A primeira coisa que vi quando abri os olhos foi o teto branco. Um bip constante perto de minha cabeça me acordou.
Olhei em volta e percebi que estava num quarto de hospital.
Como foi que eu vim parar aqui?
— Angie? — uma voz suave perguntou.Virei-me para o outro lado e a vi sentada numa cadeira ao lado da cama.
— Fran? O que estou fazendo aqui? — perguntei ainda confusa. Quando consegui focalizar seus olhos, a memória me invadiu.
— Fran! — gritei me atirando em seus braços surpresos. Eu a abracei com tanta força que poderia ter quebrado uma costela. Meus olhos arderam e senti as lágrimas descerem por meu rosto. — Senti tanto a sua falta! Você não pode imaginar a confusão em que me meti!
— Posso imaginar, sim! Pode me explicar onde estava todos esses dias e porque estava usando aquela roupa? E porque deu piti numa loja? A sorte foi que o Diego viu te colocarem na ambulância e me ligou avisando. Ele está lá baixo resolvendo toda papelada. Por falar nisso, cadê seus documentos?
O Diego estava ali também?
Eu a soltei para poder ver seu rosto.
— O que aconteceu? — perguntou, parecendo preocupada.Endireitei-me na cama.
— Fran, é uma história muito longa e eu prometo que vou te contar. Mas só depois que eu sair daqui, está bem?
Sua testa se enrugou.
— Por que? — perguntou desconfiada
— Porque é uma história complicada e meio... Doida. Você pode querer não me tirar daqui. — tinha aprendido minha lição.
— Claro que não vou te deixar aqui! E nós temos tempo. Você não vai sair do hospital antes que o médico a libere. Então, vê se desembucha logo, — seu tom duro e, ao mesmo, tempo preocupado
— Fran, eu estou bem... — Mentalmente porque eu sabia que só ficaria bem de verdade se pudesse estar com o German outra vez. — Eu tenho que sair daqui logo. Tenho que procurar uma pessoa.
Suas sobrancelhas se arquearam.
— Uma pessoa? — repetiu, a voz baixa e desconfiada.
— Sim. E você vai me ajudar! — afirmei, sem dar a ela a chance de decidir se ajudaria ou não uma amiga aparentemente surtada.
— Está bem. — Fran falou, cautelosa — Eu te ajudo, depois que você me disser tudo o que está acontecendo.
Suspirei. Encarei a Fran por um longo tempo, decidindo se contava ou não. Ela era minha irmã em muitos sentidos, merecia saber a verdade depois da preocupação que causei — totalmente sem intenção. E ela não me internaria, eu quase tinha certeza disso.
— Tudo bem, Fran. O que eu vou te contar não é uma história fácil de engolir. — ela assentiu, o rosto sério. — Tente manter a mente aberta, tá? — Está me deixando preocupada, Angie. Fala de uma vez!
— Lembra-se da noite em que fomos ao Toca e meu celular caiu na privada? ela assentiu. — Começou aí! No sábado, eu acordei cedo e fui comprar um novo, você sabe que eu não sabia viver sem ele. — fiz uma careta ao pensar nisso. Quantas coisas inúteis pensei serem tão importantes a ponto de não poder viver sem elas! Sacudi a cabeça, desgostosa. — Então, quando cheguei à loja...
Contei tudo o que aconteceu na loja, depois na praça e como fui parar no século dezenove. Nesta parte, suas sobrancelhas se arquearam, mas eu não parei. Disse a ela tudo que passei por lá, a casinha, o pé de alface, a carruagem, as pessoas que conheci, os vestidos e falei sobre o principal.
German.
Não pude conter as lágrimas que rolaram continuamente em meu rosto. Falar dele triplicava a dor intensa que eu já sentia. Narrei como acabei me apaixonando por ele sem me dar conta disso, sobre seu bom humor e seus modos educados, a forma carinhosa com que tratava a irmã, como cuidou de mim quando estive doente, a noite mágica que passamos juntos.
Precisei de alguns minutos para continuar, a dor que invadiu meu peito me tirou o fôlego. Só consegui soluçar e tremer por um tempo. A Fran passou seus braços em mim, tentando me acalmar, mas eu não conseguia nem mesmo respirar. Quando olhei seu rosto e vi que ela também chorava, fiquei ainda pior, pois eu não sabia se ela chorava por minha dor ou se chorava por mim ou pela perda da minha sanidade.
Continuei com a história: a noite do baile, o ataque de Santiago, minha fuga. Contei absolutamente tudo, da dança final perto da pedra até minha volta para cá e o pouco que me lembrava sobre a confusão na loja.
Quando terminei, fiquei sentada tentando me controlar. Tentei muito não pensar em German, mas toda vez que eu piscava via seu rosto assustado, sua mão esticada tentando me alcançar, atrás de minhas pálpebras. Um pesadelo que se repetia a cada vez que eu fechava os olhos. Fran ficou em silêncio por alguns minutos, me observando, analisando meu rosto retorcido pela dor.
— Angie, preciso te fazer uma pergunta. — sua voz séria, assim como seu rosto. Apenas a encarei. — Você está usando drogas?
— Ah! Fran! Você também não! — eu gemi.
— Desculpe, Angie. Mas o que acaba de me contar é... — ela me fitou, tentando encontrar a palavra certa.
— O que? Surreal? impossível? Maluco? História da carochinha? — ajudei.
Ela sacudiu a cabeça concordando.
— Mas é a verdade, Fran. Você viu o vestido, não viu?
— Vi, mas... Como? Por que?
— Não sei! Não faço ideia! Acho que, se eu conseguir encontrar a vendedora, talvez ela me explique e me ajude. — por que ela tinha que me ajudar, não tinha? Ela havia armado a confusão e agora iria consertar! Ah, se ia! A Fran não disse nada, vi a história se repetir de novo e de novo em seus olhos de esmeralda, tentando encontrar sentido.
— O que você vai fazer agora? — ela perguntou horrorizada depois de um tempo.
Suspirei de alívio.
— Vou procurar por ela. Vou fazer com que arrume as coisas... Que me mande de volta. Ela vai ter que consertar isso. De uma forma ou de outra! — eu disse firme, secando meus olhos.
— Você pretende voltar? Me deixar aqui sozinha?
— Você não está sozinha. Tem o Diego, tem seus pais. — seria muito difícil nunca mais ver a Fran. Éramos tão unidas que, com exceção da minha viagem para o passado, eu não tinha uma única memória que não a incluísse. Mas ela estaria feliz, eu sabia disso. Estaria ao lado do amor de sua vida, teriam filhos lindos, brigariam pelo resto da vida e se reconciliariam todas as vezes, como sempre foi. Não precisaria me preocupar com ela.
Ainda assim, seria doloroso não tê-la por perto.
— Não é a mesma coisa. E meus pais não falam comigo, você sabe disso. — retrucou tristonha.
— Eu sei! Mas eles podem mudar de ideia e você pode vê-los quando quiser. E você tem o Diego, que é maluco por você. Imagine se... Imagine se ele precisasse ir morar na... Groenlândia e nunca mais voltasse a pôr os pés aqui. Se tivesse a chance de ir com ele, você iria?
Ela não respondeu imediatamente. E nem precisava, eu sabia a resposta, assim como ela.
—Você entende, Fran? Eu preciso dele! Claro que eu sentiria uma saudade louca de você, mas, ao menos, saberia que está feliz. Além disso, se eu não voltar, ele... — era insuportável imaginar. Doloroso demais imaginar que eu nunca mais voltaria a ver o German. Nunca mais ver a Violetta, a Olga e todos os que deixei para trás. Minha nova família. E eu não tinha uma há muito tempo.
— Também morreria de saudades! — ela tocou minha mão gelada. — E tudo o que eu quero é te ver feliz. Mesmo que... nunca mais...Vou te ajudar a encontrar a tal mulher e vamos obrigá-la a te mandar para lá! Nem que eu tenha que usar a força! — Fran era tão exagerada! Mas dessa vez eu estava com ela.
— Onde estão minhas coisas?
—Tudo que me entregaram foi isto e aquele vestido estranho. — ela levantou o celular.
— Ficou tudo lá com ele. Tudo! — a dor me deixou quase cega, pontos negros embaçavam minha visão. — Como foi com o Diego? — perguntei, tentando me distrair para não partir em duas.
— Foi maravilhoso! Bem, quase. Eu estava muito preocupada com você. Não sabia o que tinha acontecido... Te procuramos em hospitais e até em necrotérios!
— Desculpe, Fran! Não dava pra te mandar um bilhete. Acho que os correios ainda não fazem esse tipo de entrega. — e sorri, secando os olhos com as costas das mãos.
— Sua maluca! Não podia se meter em nada menos complicado, pra variar? — ela sorriu também.
— Ah! Fran! — Estiquei os braços e a abracei bem forte.
—Estou tão feliz por você e o Diego!
Ela me abraçou também. Depois me olhou espantada.
— Está chorando?
Não tinha percebido.
— É que eu... Não imagina como estou feliz por vocês dois! Serão tão felizes juntos! São perfeitos um para o outro.
— Já chega! Quem é você? Onde está minha amiga? — ela disse com a testa enrugada, depois sorriu.
— Você tem razão. Não vai acreditar em como eu mudei. Sou uma outra mulher. Uma que é romântica, chorona e melodramática. Tudo que eu nunca fui. Sou uma EMO!
— Claro que não é. Só está apaixonada. — ela sorriu, depois seus olhos se estreitaram. — Pela primeira vez!
— Fala logo, — eu resmunguei.
— O que? — perguntou inocente. — Eu te disse? Que tipo de amiga eu seria se tripudiasse de seu sofrimento dessa forma?
— Obrigada. — suspirei.
— Mas eu te avisei! É diferente de eu te disse.
Precisei fazer um teatro para o psiquiatra do hospital, inventado que tinha bebido demais e estava com stress de trabalho para poder justificar ter pirado, saído na rua vestida daquele jeito, invadido lojas e agredido pessoas. Prometi procurar um psicólogo para me ajudar a aliviar o stress. Ele até me deu o telefone de um especialista.
Saí do hospital com as roupas que a Fran levou para mim, meu vestido e o celular estavam dentro na sacola de plástico.
Tive que suportar as piadinhas do Diego durante todo o caminho até meu apartamento.
Você estava doidona, hein, Angie? O que você usou? Me arruma um pouco! Não seja fominha. Divide o bagulho!
Entrei em meu apartamento e tudo estava exatamente como eu havia deixado: de pernas pro ar. Foi estranho entrar ali de novo. Tanta coisa tinha mudado. Eu tinha mudado. A sensação de estar em casa não existia mais. Era apenas um apartamento.
—Tem certeza de que está bem? — Fran perguntou pela milésima vez.
— Tenho! Pode ir. Vocês têm muito o que fazer agora. — eu disse, lhe dando outro abraço.
— Se precisar, me liga. A qualquer hora!
Assenti, mas eu precisava ficar sozinha um pouco. Queria botar os pensamentos em ordem, descobrir alguma pista de como encontrar a mulher. Diego não largou sua cintura em momento algum. Eu sorri. E depois ele me surpreendeu me abraçando — sufocando — antes de sair.
— Se cuida, garota. — ele disse, antes de fechar a porta, já era noite. Fiquei contemplando meu apartamento vazio. Tão vazio quanto eu. Tudo que era meu ficou com German minha bolsa com meus documentos, meu livro, minha nova família, meu coração, minha alma.
Peguei o vestido e o aproximei do rosto. O cheiro dele ainda estava impregnado no tecido. Respirei fundo, deixando seu aroma inundar minha cabeça. A única lembrança concreta que restou. A única coisa que me fazia crer que eu não tinha imaginado tudo. Que ele era real. Que o que vivemos foi real. Ficava cada vez mais difícil acreditar nisso, estando ali no apartamento repleto de geringonças modernas.
Tomei um banho para me livrar do terrível cheiro de hospital, sem me importar com o chuveiro ou a privada. Não senti o alívio que imaginei que sentiria ao entrar num banheiro outra vez. Nada mais importava. Embrulhei-me com a toalha e fui pro quarto, incapaz de me conter por mais tempo. Deixei-me cair num canto e não impedi as lágrimas nem a dor dilacerante que rasgou meu peito me tirando o fôlego, nem fui capaz de conter o tremor que se espalhou por meu corpo.
Fechei meus olhos e abracei meus joelhos. Repassei mentalmente cada instante que vivi com ele, como um filme. Ao menos, eu tinha isso. Ao menos, eu tive isso. Um amor tão profundo e sincero, mesmo que por poucos dias, que muitas pessoas jamais experimentam durante uma vida inteira.
Eu tinha o German pra sempre, guardado em minhas lembranças. Cada traço de seu rosto, cada expressão de seus olhos negros, cada sorriso divertido, cada linha de seu corpo perfeito. Até seu cheiro estava presente em minha memória e fazia meu corpo se arrepiar toda vez que pensava nele.
Quando dei por mim, o sol já batia na janela e eu ainda estava ali, sentada no chão, tremendo. A luz clareou o quarto e também minha cabeça.
Eu tinha que fazer alguma coisa. Não podia ficar ali parada e chorando. Não podia viver apenas de lembranças. Eu queria mais!
Eu iria lutar!