A sensação era flutuante como caminhar sobre o espaço sem as amarras gravitacionais; Shiro adorava. Era como ser criança novamente, nas épocas em que acompanhava o próprio pai para o trabalho e ele lhe permitia vestir o traje de astronauta, fazendo-o acreditar que um dia alcançaria as estrelas como ele próprio havia alcançado.

A princípio, sentia o frio enregelado mergulhar em suas entranhas – a típica sensação de uma montanha-russa que pega velocidade em uma grande descida –, mas agora era apenas um leve torpor que subia pela ponta dos dedos da única mão que ainda lhe restava.

Era como viver em um mundo paralelo, distante de tudo e de todos, ou simplesmente existir.

Estava morto?

Não tinha muita certeza.

Sua última lembrança era a batalha contra Zarkon, e então... branco brilhante como os dias de neve que nunca havia aprendido a gostar.

Flutuava, e flutuando os pensamentos pareciam tão longínquos... Talvez não mais existisse.

(Será que isso era possível? Shiro achava que não)

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Algumas luzes brilhavam em sua mente, tomando formas que lhe pareciam familiares, embora não se lembrasse de onde. O nome Allura piscava em sua mente

(Seria uma constelação? Parecia algo com a realeza, mas talvez fosse apenas tristeza...)

junto com tantos outros: Adam, Pidge, Hunk, Lance, Coran, Lotor e o mais constante e doloroso de todos começava com a letra K, mas Shiro não conseguia se lembrar, e, sempre que tentava, a sensação flutuante desaparecia e era substituída pela dor, queimando em seu peito e tragando o fio de sanidade que ainda lhe permitia estar presente, que ainda lhe permitia existir.

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Com o tempo, passou a compreender o que as luzes e as cores significavam: verde era a esperança trazida por uma criança, a alegria espontânea de sempre seguir em frente sem nunca desistir.

(Como Pidge era)

Amarelo, a firmeza de uma rocha, a cola que unia a todos, uma amizade concreta e que transmitia serenidade através das palavras e atos, um coração tão bondoso que enternecia todos ao seu redor.

(Assim como Hunk)

Azul, a força e a vivacidade que carregava consigo os pensamentos de um sonhador que, apesar das adversidades, sempre continuava acreditando que o melhor estava por vir.

(Tal como Allura)

Vermelho, intenso e vivaz, pulsante, impulsivo e mordaz.

(Do mesmo jeito de Lance)

Branco, como a luz dele, capaz de refletir todas as cores e de trazer a segurança e a base sólida de que tanto precisava.

(Como Adam sempre havia sido)

Preto, como um buraco negro, os olhos de um morcego que o tragavam na direção da escuridão. Mas não era também ela que caminhava ao lado da luz?

(Como aquele nome com K... Como era mesmo? Shiro não se lembrava...)

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Tempo era irrelevante, Shiro logo percebeu. Não importava, pois apenas existia – e sequer tinha certeza a respeito dessa afirmação. Vivia de tentar lembrar-se, embora, como na maioria das coisas, falhasse.

Seu tempo era medido através da perda da sensibilidade, dos vislumbres que tinha e de um sentimento gritante em seu peito sobre a familiaridade daquele lugar.

Demorou um pouco até que associasse aquilo como casa, e então finalmente compreendeu que o local que habitava era a consciência do Leão Negro, o companheiro mais leal que já havia tido.

Ainda tinha dificuldade em computar coisas, e sentia que, a cada segundo que passava, a cada minuto transcorrido, mais uma parte de si mesmo se perdia, flutuando na direção do espaço onde se tornaria um grande branco vazio.

(Como o significado do seu nome)

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Às vezes, o desespero batia-lhe à porta, trazendo consigo um sorriso ladino e a presença esmagadora do medo.

O medo de sumir por completo, o medo de ser esquecido por

(Quem? Adam era segurança, mas ele não estava ali. Hunk, quem era Hunk? E Pidge? Era uma ave? Allura era realeza... ou tristeza? Lance, como um cavaleiro real? O que era Coran? E Lotor? E ainda havia aquela outra existência que queimava em seu peito, que doía em sua alma como se o calor do sol irradiasse por todo seu corpo de uma só vez)

tudo e todos, como se nada pelo qual ele tivesse batalhado fizesse sentido. E talvez não fizesse mesmo.

Nesses momentos, Shiro gritava, e tudo o que ouvia era o som da própria voz que lhe dizia que ele era fraco, e que se tivesse escutado Adam daquela vez,

(Mas qual vez? Foram tantas... tantas brigas sem sentido só porque queria provar ao mundo que era o melhor. E ele era! Mas de que adiantava agora que estava no vazio? Preso na consciência do próprio leão e fadado a desaparecer?)

nada disso teria acontecido...

X

Um dia, algo diferente aconteceu.

Shiro sentiu um formigar leve, como se algo tentasse tocar sua alma fazendo carinho. As palavras ‘não vou desistir de você’ se acenderam como um cometa em sua mente, queimando através das pálpebras, expressas com o desespero e dor que ele sentia sempre que tentava pensar naquela cor inominada. Ou seria a ausência dela?

Não vou desistir. Não vou, não vou, não vou. Está me escutando, Shiro? Shiro? SHIROOO!

De novo, e de novo, e de novo, repetidas vezes até que seus ouvidos zunissem e quase sangrassem pela intensidade do calor que havia naquelas palavras, como se não importasse nenhuma verdade além da crença intensa que ele

(Mas quem, era ele? QUEM? QUEM? QUEM?)

possuía, sem nunca desistir, seguindo sempre em frente, mantendo-os unidos, sonhando, acreditando, sendo impetuoso, tempestuoso, impulsivo.

(Sendo Keith)

Mas preto não era a ausência de cor?

X

Lembrou-se vagamente da sensação do sorriso dele, do balançar das pernas enquanto encarava o espaço.

(Por que acreditou em mim?)

Imaginando que algum dia o alcançaria, que seria um piloto incrível como Shiro era, que iria para fora daquele planeta ao seu lado.

(Porque, às vezes, tudo o que precisamos é de uma mãozinha, e de alguém que acredite em nós. E eu não vou desistir de você, Keith)

Da teimosia, da necessidade de mostrar sua rebeldia, e que sabia o que estava fazendo apesar de ser apenas um cadete.

(Paciência é a chave para tudo)

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Keith.

O nome dele era Keith.

X

A partir daí, passou a compreender melhor as coisas. As cores, e as pessoas, e toda a conexão através delas. Não desistiu, porque acreditou nas palavras de Keith – agora sabia o nome dele –, de que o traria de volta, e tentou até mesmo comunicar-se com seus companheiros embora não tivesse conseguido obter sucesso nisso.

Pois havia um impostor entre eles, passando-se por Shiro, roubando dele cada momento com

(Keith, e o calor do sol que irradiava de seu corpo)

seus companheiros.

Ainda assim, acreditou que ele conseguiria. Keith o traria de volta, disso tinha plena certeza.

X

E Keith cumpriu sua promessa, retornando à consciência do Leão Negro, sendo capaz de comunicar-se consigo, fazendo-o sentir como era estar vivo novamente e ter um coração habitando em seu peito.

X

(Quando Shiro abriu os olhos, sentiu como se tivesse renascido novamente. Cercado pela energia de Olkarion e pelo calor dos braços de Keith que se fecharam ao redor de seu corpo)

X

A princípio, não compreendeu nada, nem viu qualquer coisa que não fosse o corpo de Keith contra o seu.

“Achei que tivesse te perdido.”, murmurou contra seu ouvido, a respiração pesada e ruidosa.

“O que estamos fazendo aqui?”

Lembrava-se vagamente de despertar no espaço, da luta ferrenha contra Lotor (onde ele estava?) e de despertar um tanto confuso, agarrando-se aos braços de Keith como

(se nada mais importasse)

se tivesse medo de retornar ao vazio.

“Allura te trouxe de volta, mas você não despertava. Era como se a sua alma estivesse se desprendendo do corpo, rejeitando-o. Lembrei que esse foi o local onde Pidge se conectou profundamente com o leão dela e achei que valia a pena tentar.”

Estavam cercados pela vegetação rasteira e verdejante, e pelas árvores, e por toda aquela energia antiga que fluía através de seus corpos. Ao longe, podia sentir a consciência do Leão Negro lhe tocando e – consequentemente à Keith – a felicidade que transbordava do animal cibernético.

“Você não desistiu de mim.” Foi uma afirmação. Shiro ergueu o rosto, olhando através da escuridão que eram os olhos de Keith, e enxergou neles a luz. O outro piloto negou com a cabeça, sorrindo-lhe.

“Como você não desistiu de mim.”

Seus dedos passearam pelo rosto dele, tracejando as maçãs do rosto. Os cabelos de Shiro haviam perdido a cor, brancos como a neve, mas não a beleza etérea que brilhava no rosto que carregava a sabedoria de toda uma vida.

“Nunca.”, murmurou, o rosto tão próximo do de Keith que podia sentir a respiração morna do outro piloto.

“Nunca.” Repetiu ele, selando os lábios dos dois em um beijo que iniciou-se tímido, mas que logo foi aprofundado. Estática percorria os corpos de ambos, arrepiando os cabelos, eriçando os pelos. Sentiam-se observados por toda a natureza ao redor, cercados pela biotecnologia daquele povo que nunca havia se esquecido da conexão primordial que possuíam com todo o universo.

As bocas se encaixaram aos poucos, encontrando uma posição confortável, e as línguas se tocaram, passando a se reconhecer aos poucos com o desejo que perdurava em ambos há tanto tempo.

Shiro não sabia dizer exatamente quando passou a notar que Keith o olhava de maneira diferente, e não apenas com a admiração que sempre havia visto no olhar que ele escondia por trás da birra e da rebeldia logo que se conheceram. Mas de repente, o outro paladino não era apenas um menino ou aspirante a piloto, mas um homem feito que havia carregado nas costas mais responsabilidades do que ele próprio e, pouco a pouco, viu-se entregando a ele, os corpos tão conectados quanto a alma de ambos através do Leão Negro.

Ao redor deles, a natureza regozijava e esbanjava energia que explodia em pequenas estrelas faiscantes como se uma galáxia se formasse ali. Quando se afastaram, Keith tinha uma expressão determinada, e passeou os dedos sobre a boca de Shiro com um sorriso nos lábios.

“Achei que nunca fosse me notar.” Brincou.

“Eu é quem deveria dizer isso.”

Riram, e Keith tocou a extensão onde antes havia a prótese mecânica do braço de Shiro.

“Ouvi dizer que se você pedir algo a Olkarion e entregar de bom grado sua energia, o planeta lhe retribuirá. Foi uma lenda que a minha mãe me contou.”

Keith pareceu um pouco sem jeito de citar a mãe que havia conhecido há pouco, como se a palavra família ainda soasse estranha em seus ouvidos, mesmo que tivesse também os paladinos do Voltron como uma.

“E o que eu poderia pedir se já tenho o que me é mais precioso?”

Keith fingiu não corar com as palavras de Shiro.

“Estava falando do seu braço.” Keith fez um muxoxo baixinho. “Posso ajudar se quiser.”

Shiro acenou com a cabeça, embora não compreendesse de todo o que Keith queria dizer.

“Concentre-se no seu pedido. Vou ajudar.”

Ele tocou o cotoco do braço de Shiro, a própria energia convergindo naquela direção. Shiro fechou os olhos, colocando a mão sobre a de Keith e sentindo o calor que emanava dela.

De repente, compreendeu o que Keith queria dizer: passou a ouvir o som da natureza ao redor. Desde o mover das gramas, até o ruído mais distante ocasionado pelo vento; sentiu o cheiro de chuva que vinha das nuvens, e até mesmo o aroma adocicado das flores silvestres. Sentiu-se um com toda a natureza, mas, mais do que isso, sentiu como se o coração de Keith batesse em seu peito, em consonância com o próprio. Aquela sensação, que jamais conseguiria colocar em palavras, foi a melhor de todas, pois mesmo quando não se lembrava do outro paladino, sentia queimar em sua alma o calor que ele sempre emanara naturalmente.

Como o sol.

Então, a magia aconteceu: a magia de Olkarion, em conjunto com a tecnologia passou a se moldar; fibras que se tornaram tendões e músculos, enervações, epitélio, até formar um braço mecanicamente perfeito com um aspecto muito mais humano que o anterior, mas que emanava um calor singular – o mesmo que sentia quando estava próximo de Keith.

Abriu os olhos, apenas para ver que ele lhe encarava, estupefato por ver que a lenda que havia ouvido era mesmo real.

“Eu não—”

“Achou que fosse funcionar? Bem, eu acreditei em você.”

O riso de Shiro preencheu o ar, e Keith tinha certeza que aquele era o melhor som de todo o mundo. Ainda que um pouco distantes, ambos podiam escutar todo o coração da natureza que vibrava ao redor deles.

Lembrou-se do período sombrio que havia sido habitar dentro da consciência do Leão Negro, onde sentiu-se completamente perdido, como se a própria alma não se conectasse ao corpo, como se nada ao redor dele fizesse sentido. Achou que jamais se recuperaria outra vez, incapaz até mesmo de recordar-se daquilo que lhe era mais importante, embora no fundo soubesse – e sentisse – que tudo daria certo, pois, de alguma forma, conseguia enxergar a luz quando olhava através da escuridão que eram como os olhos de Keith, e, agora, olhando para eles novamente, Shiro teve certeza de que a luz caminhava ao lado da escuridão, e de que ele sempre caminharia ao lado de Keith para onde quer que eles fossem, completamente entregue a ele; de corpo e alma.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.