Darkpath

♠10 –Alice no país das maravilhas♠


⌘Camilla Tosetti da Costa⌘

Eu achei que, após ser insultada por um desconhecido via bilhetinho mágico e uma entidade sinistra me jogar da escada, eu teria, no mínimo, dois dias de folga.

Mas eu me iludi completamente.

Quer dizer, os últimos dias tinham sido estranhos, com pesquisa intensa sobre casos sobrenaturais na internet e releituras do livro vermelho que não chegaram a mais nenhum lugar; ontem, eu e Matt não fomos à biblioteca, porque eu tinha um trabalho para fazer para o dia seguinte, e ele queria muito descansar. Por isso, pesquisamos do nosso cafofo mesmo. O mais estranho, todavia, foi que Nathalie não aparecera; nem na faculdade, nem no nosso apartamento, nem em local algum. E isso por si só já era meio esquisito, porque ela sempre dava um jeito de aparecer. Na sala, no refeitório, até mesmo na biblioteca... ela estava em todos os lugares o tempo inteiro!

Na verdade, eu meio que suspeitava que não era esse o problema; ao invés dessa possibilidade, que era totalmente improvável e fisicamente questionável, meu chute era que ela estava em todo lugar que nós estávamos. Na sala, nos almoços, na biblioteca... E isso sim era assustador.

E enquanto eu me perguntava, durante a aula do Sr. Quotec, se minha hipótese de a Nathalie ser uma stalker era ou não aceitável, mal percebi os cochichos e as reclamações ao meu redor:

—Esse barulho ‘ta esquisito –Alguém falou baixinho atrás de mim.

—‘Ta incomodando, será que era para ser assim?

—Será que ‘ta quebrado?

—A gente devia falar ‘pro Sr. Quotec?

De repente, percebi um ruído peculiar. Vinha do vídeo que o professor estava passando para nós na tela, lá na frente, sobre as primeiras animações feitas.

—Não acha que ele poderia ficar ofendido?

E não era um ruído qualquer; era um barulhinho fraco mas insistente e quebradiço, como algo duro quebrando em milhões de pedacinhos; era tão baixinho, mas, ainda assim, mais irritante do que o som de unha no quadro negro. Comecei a sentir uma tontura...

—Será que não é a câmera do cara? É um negócio velh-

Iiiiiiihhhhrrrrrgiiirrrrghirrrrrghh

O barulho aumentou exponencialmente. Ficou tão alto que mal dava para ouvir as pessoas reclamando. Tapei os ouvidos, incomodada, esperando que aquilo fosse só algum tipo de mal contato. Porém aguardamos, aguardamos, e nada daquilo parar.

—Sr. Quotec, era ‘pra ser desse jeito mesmo? –Daniel perguntou ao meu lado.

—Não, não era –Estava óbvio na cara do professor que não era para ter aquele barulho perturbante no vídeo. Ele levantou da cadeira, claramente contrariado, e pausou o desenho do Mickey. O ratinho animado parou, alegremente congelado no ar. O barulho diminuiu gradualmente, todavia ainda era audível e completamente desconfortável. A classe murmurava lamentos. –Alguém pode me ajudar aqui?

Um menino chamado Douglas levantou e acendeu a luz. Ele e o professor mexeram em uns botões, depois no equipamento de som, depois nos botões de novo, e Louise foi ajuda-los. E enquanto metade da sala se levantava para formar uma rodinha ao redor do professor a outra metade reclamava.

Eu decidi virar o rosto e olhar para fora da sala. Nem sei porque fiz isso, talvez fosse melhor eu ter me juntado a um dos grupos. O fato é que, estando perto da janela, eu esperava ter uma boa vista do jardim da faculdade, ou de algo que tirasse minha mente de perto daquele barulho infernal.

A vista, de fato, era boa; era possível visualizar o céu plúmbio acima de mim, as nuvens meio acinzentadas que brilhavam com o sol fraco da manhã e as folhas das árvores balangando suavemente. O dia estava meio frio, chovera um pouco e esfriara, mas não estava feio. No entanto, tinha um pouco de névoa espalhada –e era o clima perfeito para eu ver o que vi a seguir.

Parecia um homem, só que totalmente rijo, parado no meio da rua. Usava uma roupa preta, e era muito pálido; braços caídos duros ao longo do corpo me fizeram questionar o que aquele cara estava fazendo ali. Estreitei os olhos... era impressão minha por causa da névoa ou ele estava me encarando fixamente??

Colei a cara na janela, espantada -E percebi porque era impossível dizer se ele estava ou não me encarando: o sujeito nem olho tinha! Nem feições!

Eita, mas o quê??!

Pisquei, atônita, mas quando fixei novamente o olhar... cadê ele?

E enquanto eu indagava a mim mesma se o que eu vira era real ou não, percebi algo; na realidade, a falta de algo. O som incômodo passara.

—Olha, parou! –Alguém comentou.

O professor pareceu satisfeito e até meio espantado. Eu, todavia, só conseguia encarar pávida a lousa à minha frente.

—Pois bem, parece que conseguim-

Ele nem conseguiu terminar a frase, porque no momento seguinte, o computador deu um estalo. Dava para ver os choques elétricos percorrendo o aparelho e queimando os circuitos da máquina de som e vídeo. E o pen-drive.

Puta merda—Comentei, já lamentando a perda da escola.

—Meu pen-drive!—O professor deve ter xingado mentalmente aquela descarga elétrica, mas sendo um canadense de respeito (diferentemente de mim), não soltou nenhum tipo de palavrão.

E percorrendo os olhos na sala, eu o vi. Parecia loucura, porque era totalmente clichê-filme-de-terror, mas o cara de óculos estava espreitando na porta com um sorriso.

Depois que eu o avistei, ele rapidamente se esgueirou para fora do meu campo de visão; mas fez isso tão rápido que, por alguns segundos, pensei ser só ilusão minha. Mas não era, claro que não era. O homem na névoa, o livro vermelho e o ruído não eram só coincidência.

—Droga, queimou tudo! –Douglas afirmou, infeliz.

—Parece que a aula acabou –Uma menina cochichou com pesar atrás de mim.

—Mas nem tudo está perdido, turma –Declarou o professor. Virei meu braço e acabei por batê-lo no meu lápis, que caiu e rolou. Praguejei minha habilidade de derrubar as coisas para longe de mim e automaticamente ergui-me para pegá-lo –Eu tenho outro pen-drive com as minhas coisas. Só preciso que alguém vá buscar para mim! Camilla!

Olhei para ele.

—Eu.

—Pode ir buscar meu pen-drive?

—Er... claro –Imaginei que, erguendo-me, eu acidentalmente chamara a atenção dele. Não é como se eu não quisesse trazer o pen-drive dele por preguiça, mas, naquela situação, sabendo que o maluco que tentou um homicídio contra mim me -empurrando da escada- estava no mesmo prédio que eu, não era como se eu estivesse ávida por sair por aí sozinha.

De qualquer maneira, eu não tinha muita justificativa, então aceitei à contragosto.

—Está na minha sala, vire a primeira direita, suba as escadas, é a primeira sala à esquerda. –Ele explicou-me e eu fiz um aceno com a cabeça. –Obrigado!

Com cuidado, saí da sala. Examinei os dois lados do corredor de forma discreta, buscando pelo meu algoz de óculos e sorriso macabro; como ele não deu o ar de sua (des)graça, segui as instruções do professor até esbarrar em alguém no andar de cima.

—Ai! –Alguém exclamou e eu só senti uma batida de cabeças. No instante seguinte, eu estava no chão com um monte de livros ao meu redor.

—Ai, desculpe –Exclamei, meio assustada.

—Desculpa eu, eu que vim correndo e nem te vi –A pessoa sorriu para mim. Devia ser o sorriso mais gentil que eu já vira na vida: era uma menina, mais ou menos da minha idade, ou talvez uns dois anos mais jovem, pele morena, bronzeada, gigantes olhos redondos e castanhos, óculos grandes de grau, agora tortos por causa do tombo.

Ela começou a pegar os livros do chão, então ajudei-a. Eram muitos livros mesmo.

—Ahhn, não precisa –Ela falou, constrangida –Eu que quase te matei.

—Não quer dizer que eu não posso te ajudar, né? –Dei de ombros e continuei recolhendo os livros.

—É... okay, touché—Ela sorriu de novo, divertida com minhas palavras. Seu cabelo curtinho e ondulado caiu-lhe no rosto enquanto abaixava. As madeixas brilhantes e volumosas davam a ela um ar selvagem, mesmo que ela aparentasse pura bondade com aqueles olhos de chocolate.

Devolvi-lhe os livros, eram cerca de sete no total, capa-duras e cem folhas em cada, pelo menos. Perguntei-me ela pretendia lê-los todos ou se estava buscando para alguém. Não pude deixar de notar, no entanto, em como pareciam velhos, pela cor das páginas e pelo cheiro que exalavam. Bufei.

—Desculpa o empurrão –Ela falou de novo, virando para trancar a porta da sala do professor.

—Okay, mas pera, não tranca não. –Eu segurei gentilmente a porta –Eu ia entrar ai.

—Na sala do Sr. Quotec? Por quê? –Ela franziu a testa, desconfiada.

—Porque ele me pediu para pegar um pen-drive dele. Acabou de queimar o que ele estava usando. Você tem a chave dele?

—Tenho... –Ela titubeou um pouco –Eu sou filha dele –Justificou-se, dando de ombros.

—Ahh, explicado então.

—O pen-drive dele ‘ta ali, em cima da mesa –Ela indicou –Pega lá.

Peguei o pen-drive e ela rapidamente trancou a porta.

—Como o professor queria que eu entrasse na sala dele se você ia deixar ela trancada?

—Bom... meu pai às vezes esquece que a porta da sala dele fica trancada e que nem todo mundo tem a chave. –A morena falou, simplesmente –Eu acho que ele se esquece de trancar, na verdade.

Rimos juntas e ela ajeitou os livros nos braços.

—Quer ajuda ou...? –Ofereci.

—Nah, eu dou conta, muito obrigada! –Ela sorriu gentil e docemente para mim. Aquilo me aqueceu de uma forma inexplicável, e de repente, eu me senti muito bem. –Tenho que ir, já ‘to atrasada! –Ela falou subitamente e virou as coisas –Tchau!!

E enquanto eu a via correr, desaparecendo em uma das salas do primeiro andar, lembrei que nem tinha perguntado o seu nome.

O professor devia estar me esperando, então rapidamente rumei para as escadas. Desci o primeiro lance de escadas, o segundo, e girei em direção ao corredor. Quando abri a porta da sala de aula, surpresa: Não tinha nada lá!

QUÊ?!—Berrei com um grito esganiçado.

Realmente não havia nada lá, literalmente nada. A sala de aula tinha se transformado em um espaço branco, vazio, totalmente inerte. Meu queixo caiu e eu dei um passo exasperado para trás; arregalei os olhos de surpresa e pavor. Nem precisei virar para trás para saber que tinha alguém às minhas costas, o riso maníaco da entidade de óculos a delatou.

Fui empurrada violentamente em direção ao vazio branco à minha frente. Tropecei no meu próprio pé e quase me esborrachei no chão que, até então, sequer existia.

—Camilla? –Ouvi uma voz perguntar. Percebi de repente que realmente havia um chão embaixo de mim. Olhei para frente e vi o Sr. Quotec. Ele me encarava com surpresa no olhar, quase como se eu tivesse surgido do nada; e talvez eu tivesse mesmo –Tudo bem? Nossa, não precisava correr tanto assim, cuidado ‘pra não cair!

—Er... Eu...–Eu não sabia bem o que responder. A sala de aula havia voltado ao normal! As cadeiras, mesas, alunos, as paredes, o chão, tudo estava de volta. E o branco sinistro havia sumido. –Desculpa, tropecei... Aqui está o pen-drive.

—Eu agradeço, imagina –Ele sorriu para mim de maneira tranquilizadora. Eu ainda estava atordoada, então sentei-me no meu lugar lentamente, com cuidado, como se tudo aquilo pudesse se desmanchar num simples toque. –Onde estávamos mesmo?

—Vinte e dois minutos, professor –Douglas constatou.

—Muito bem –Observei-o inserir o dispositivo diminuto na máquina nova, que provavelmente o pessoal da assistência técnica devia ter trazido. –Vamos continuar então.

A aula prosseguiu. Eu, todavia, estava ocupada demais em meus próprios pensamentos para conseguir sequer olhar para qualquer lugar que não fosse a janela ao meu lado.

Assim que o período da manhã chegou ao fim, arrumei minhas coisas com pressa e corri diretamente para o refeitório, onde eu combinara de encontrar Matt. A ansiedade tomava conta de mim; mal podia esperar para relatar o que se passara comigo naquela aula. Depositei minhas coisas no balcão e esperei. Um minuto, dois, cinco, dez, quinze. Matt nunca se atrasaria quinze minutos, aquele Inglês era pontual demais para isso.

Peguei a mochila e corri para uma das salas em que meu amigo mais ficava. Nada dele lá, só algumas pessoas cochichando, rindo baixinho. Quando eu apareci, alguns olharam espantados, outros comentaram alguma coisa entre si. Meio confusa, fiquei parada ali mesmo, assistindo aos outros alunos saírem.

—Você viu o que ele fez?

—Ele foi ‘pra diretoria! Teve que falar com o psicólogo, aposto.

—Tudo por causa dessa menina ai!

Corri. Algo de errado havia acontecido, e eu ia descobrir o quê. Voltei para o apartamento rapidamente, mas nem sinal do loiro. Bufei de indignação, mandei uma, duas mensagens, e ele sequer visualizou. Lembrei, hoje era dia de estar no fliperama! Talvez lá eu o encontrasse!

Peguei meu uniforme de garçonete e vesti. Fui em direção à porta, pronta para sair, mas algo me impediu. Gelei totalmente e prendi a respiração de forma súbita: um par de mãos agarrara-me os braços com força, puxando-me para trás. Tentei desvencilhar-me, mas fui sacudida violentamente. Eram mãos grandes, de um homem. Não pareciam, entretanto, as mãos da entidade de óculos –Eu só não sabia se isso era bom ou ruim.

Milla! –A voz exclamou, rouca, me arrepiando como se fosse um garfo raspando num prato –Você parece meio perdida, então vou te dar um presentinho –Ele enfiou algo diminuto na minha mãe esquerda—E eu sugiro que fique com ele, porque é essa gracinha que vai salvar seu traseiro~ –Era uma voz estranha; parecia humana, mas era distorcida, meio grossa meio falha. Parecia... errada, como uma espécie de áudio maligno e deturpado. –Não se afaste disso de maneira alguma... a menos que queira dar um passeio com o Sentinela de novo!

—E-e-er... eu –Eu realmente não conseguia falar nada; as mãos geladas me apertavam rudemente os braços, e tudo que eu era capaz de fazer naquele momento era desejar que aquele ser fosse embora para sempre.

Hmm? Está tentando falar alguma coisa? –Caçoou, rindo levemente. Até o riso daquele sujeito parecia deturpada, corrompida. Meus pelos se eriçaram. –O quê? Não estou entendendo, querida. Tente falar com palavras, que tal?—Dava para ver que ele estava ficando impaciente com minha hesitação, porque chegou mais perto e encostou em mim, cravando suas unhas nos meus pobres braços.

—E-e-e o que exatamente i-isso faz de tão essencial?

Primeiro, ele não respondeu nada, só riu baixinho. Então senti o bafo quente na minha nuca e estremeci, enquanto tentava discretamente me soltar de seu aperto. O ser aproximou-se ainda mais, e eu senti que já estávamos colados um no outro. Os instantes a seguir foram de um silêncio constrangedor. E apesar de posteriormente eu achar que esse momento durou não mais que um segundo, sinceramente, na hora pareceu perdurar por longos minutos.

É o seu coelho branco, Alice. Se estiver perdida, siga-o. Mas claro, de qualquer jeito, você não vai mais sair dessa toca~

E as mãos me soltaram subitamente. Pulei instintivamente para frente e virei para trás. Não tinha ninguém ali; os únicos vestígios de que alguém estivera ali eram as marcas de suas mãos nos meus membros agora doloridos e o pequeno coelhinho branco que agora estava em minha mão.

Abri a porta do fliperama com ímpeto suficiente para quebrar as dobradiças. Algumas pessoas me olharam, surpresas, mas eu não parei para justificar ou disfarçar. Fui direto para a área de funcionários, onde havia, além de mim, seis garçonetes, o gerente mal-humorado e uns cozinheiros.

—Onde está o Matthew? –Indaguei, relativamente alto, e todos me olharam. Uma garçonete miúda de olhos verdes e cabelos pretos, longos e lisos respondeu:

—Ele entrou agora pouco com uma menina de tapa-olho, e depois uns policiais apareceram. Acho que estão no andar de cima resolvendo alguma coisa.

Corri para lá.

—Obrigada!!

—Ei, não é seu turno agora?! –A menina indagou enquanto eu subia, mas eu estava ansiosa demais para sequer virar para trás.

Parei em frente à porta, contemplando a quietude do ambiente em contraste com a muvuca do andar de baixo. Quando eu ia bater na porta, ela simplesmente se abriu.

—Isso é tudo por ora, Sr. Coleman. Entraremos em contato com o senhor em breve, tenha certeza. E não saia da cidade, por favor, porque você é um dos envolvidos no caso. Até breve.

Os dois homens de uniforme saíram rapidamente, inspecionando-me depressa antes de descerem firmemente as escadas. Observei-os desaparecerem de vista e então fixei o olhar nas órbes acinzentadas de Matthew Coleman. Falamos, então, quase em uníssono, e eu soube, imediatamente, que algo muito peculiar estava ocorrendo:

—Precisamos conversar.