Na manhã seguinte quando acordo, estou sozinha no pequeno e aconchegante quarto de Kyle. É um bom quarto, mas não se parece muito com o quarto de Kyle em Nova York. Particularmente prefiro o quarto do seu apartamento, cheio de pôsteres, com seu abajur de lâmpada incandescente que tem uma luminosidade baixa e sua cama sempre desarrumada. Mas, ali também é bom.
Meus ouvidos se apuram e percebo que lá fora a chuva cai. Não ouço trovões e nenhum clarão se projeta no céu pelas frestas das persianas. Me espreguiço estralando as vértebras da minha coluna e quase sinto vontade de deitar novamente. Eu tinha um prazer físico quase secreto em estralar as costas. Amava o barulhinho dos ossos se estralando e o alívio após isso acontecer.
Levanto-me da cama e vou até a porta. Abro-a e vou para o pequeno banheiro bem á frente do quarto de Kyle. Olho meu reflexo no pequeno espelho alguns centímetros acima do gabinete da pia e vejo que pareço melhor. Minhas olheiras não estão com uma coloração tão forte mas meu olhar permanece cansado.
Escovo meus dentes com urgência enquanto encaro meus olhos castanhos no espelho e meu cabelo preso num rabo de cavalo alto. Após fazer bochecho e lavar o rosto com a água gelada que sai da torneira, saio do banheiro e fecho a porta com cuidado e sem fazer barulho para o caso de alguém ainda estar dormindo. Não faço a mínima ideia de que horas sejam.
Paro no meio do corredor forrado com um carpete cinza bem cuidado quando ouço a voz de Kyle no andar debaixo.
—... totalmente o oposto dos pais dela. O irmão dela não é tão ruim, mas os pais... principalmente a mãe dela. Acho que nunca fui tão humilhado.
Sinto meu coração disparar e meus joelhos fraquejarem quando ouço aquelas palavras. Me sento perto do degrau da escada, escondida na parede e continuo a ouvir.
—Não é culpa dela, sabe? Não quis dizer que sua mãe disse que eu não passava de um verme. Tenho certeza de que ela ia enlouquecer ainda mais se soubesse disso.
Verme? No mesmo instante sinto as lágrimas transbordarem meus olhos de maneira brutal.
—Sinto muito filho. Você não merece passar por isso. Sei que só aguentou isso por ela.
—Ela não é assim, sabe? Ela me defende com unhas e dentes.
—Sua mãe era assim. - ouço Danny dizer. Acho que posso imaginá-lo sorrindo para o filho. - Sempre me defendeu muito. Seu avô queria morrer de desgosto.
Após um minuto de silêncio, ouço a voz de Danny novamente.
—Sabe que não pode terminar com ela, não sabe filho?
Meus olhos se arregalam. Parecem saltar das órbitas ao ouvir tais palavras.
—Eu deveria, mas o senhor tem razão. Não posso. Eu sou egoísta demais para fazer isso.
—E ela te ama. - é uma voz diferente, bem masculina e grave. É Tom, o enfermeiro de Danny. - Isso é evidente.
Ouço um murmúrio de Kyle mas não entendo. Levanto-me sorrateiramente e volto para o quarto, abrindo a porta de fininho e fechando-a de mesmo modo.
Estou me sentindo péssima. Odiei ter ouvido essas palavras. Minha mãe o tinha chamado de verme e ele queria terminar comigo. Nunca fora tão humilhado na vida.
Deito-me na cama de bruços. Fecho os olhos para evitar que as lágrimas saiam, mas ela saem mesmo assim, silenciosas.
Após uns minutos, ouço a porta do quarto ser aberta. Permaneço de olhos fechados.
—Bom dia, boneca. - sua voz soa alta e animada. O oposto de quando ele falava da humilhação com o pai.
Demoro alguns segundos para responder.
—Bom dia. - permaneço de olhos fechados e o tom na minha voz foi de total desanimo.
Ouço Kyle se aproximando da cama e sinto ele parado ao lado dela me olhando. Mesmo de olhos fechados, sei que ele está agachado olhando para mim.
—Por que está chorando? - sua pergunta é direta.
Sinto meu lábio inferior tremer um pouco e eu respiro fundo. Não quero falar, minha voz sairá embargada e com certeza terei um ataque de choro.
—Você ouviu.
Não é uma pergunta. É uma afirmação que ele faz em voz baixa, porém firme.
—Sabe que não vou terminar com você. Já falei que nã...
—O que me machuca é você cogitar isso. Estou tão cansada. - afundo a cabeça no travesseiro. - Tão cansada!
Abro meus olhos marejados e encaro os olhos verdes lindos de Kyle. Ele me olha atentamente.
—Cansada do que?
—De tudo isso. De você ser humilhado, de eu estar entre sua amizade com Matt, de meu irmão ter agido como um babaca com você assim como meu pai e minha mãe. Estou cansada de tudo. Estou cansada de me sentir como se estivesse fazendo algo errado estando com você, Kyle.
Ele parece surpreso com minha resposta. Suas sobrancelhas estão arqueadas e ele pigarreia discretamente.
—O que Matt tem a ver com isso?
Reviro os olhos e me sento na cama. Sabia que ele daria mais ênfase nessa parte do assunto.
—Ah Kyle,por favor. - sinto-me exasperada de repente. - Acha que gosto de estar entre a amizade de vocês? Acha que gosto de fazer ele sofrer, mesmo que involuntariamente?
As sobrancelhas de Kyle se unem. Ele está em pé de frente para mim, me olhando. Eu estou com as pernas cruzadas em indiozinho olhando para ele.
—Estou cansada. - dou de ombros. - Nunca quis que você fosse humilhado por ninguém e você foi. Isso me machuca porque seu pai me trata muito bem. Acha que eu queria passar o feriado assim? Queria você comigo para passarmos o feriado juntos e felizes. Não dessa maneira.
Paro de falar quando ouço um barulho de carro. Franzo o cenho.
—Meu pai e Tom vão ao mercado comprar as coisas para fazer a ceia.
Me dou conta de que o Dia de Ação de Graças é no próximo dia.
Suspiro e balanço a cabeça.
—Vou ir comer alguma coisa.
Levanto-me da cama e saio do quarto visivelmente desanimada. Gostaria de poder conversar com alguém, desabafar tudo. Mas meu único amigo, Sean, estava em casa com sua namorada e Chloé e Lucas estavam em algum lugar provavelmente curtindo. Meus amigos do Dangerous Woman, Debbie e Sam provavelmente estariam bem felizes. Sam com seu namorado e Debbie viajando para algum lugar.
Descendo as escadas, me deparo com a mesa de café da manhã na cozinha cheia de coisas que eu gosto. Há maçãs verdes numa pequena fruteira, café e panquecas. Acho que me sinto ainda pior por isso. O que Danny iria pensar de mim? Uma garota que os pais humilham seu filho. Com certeza eu odiaria que um filho meu fosse humilhado por qualquer pessoa que fosse.
Sento-me na cadeira e me sirvo de três panquecas e as molho com a calda de Maple.
Kyle chega na cozinha e se senta do meu lado. Sinto os olhos dele em mim enquanto eu como fitando o prato.
—O que foi?
—Por que está tão chateada?
—Por que? - pergunto franzindo o cenho para ele. - Como assim por que? Acho que fui clara lá em cima, não fui Kyle?
—Eu já disse que não vou terminar com você.
—Não é só isso. Acha que gosto de saber que minha mãe disse aquelas coisas para você? Seu pai tinha que me odiar por...
—Ele não odeia. - Kyle me interrompe. - Muito pelo contrário.
—Mas devia. - encaro a panqueca perdendo totalmente a fome. - Já fiquei entre sua amizade com...
—Alice, por favor! - Kyle levanta da cadeira de repente e leva as mãos ao cabelo. Fecha seus olhos por um minuto e fica assim.
Espero calada ele falar alguma coisa.
—Acha que perdi grande coisa parando de falar com...
—Perdeu! - levanto-me da cadeira também. O garfo cai no chão com um som agudo mas eu ignoro. - Perdeu sim, Kyle. Acha que eu não sei que vocês eram melhores amigos? Pelo amor de Deus! Ele vivia na sua casa Kyle! Vocês compartilhavam todos os momentos juntos. Todos! E agora pararam de se falar por causa de uma...
Me refreio no que ia falar e paro.
—Por causa de uma o quê?
Suspiro.
—Por minha causa. Não quero isso Kyle. Não quero.
Kyle que está com os braços cruzados em frente ao corpo me encara. Abre a boca para falar alguma coisa mas nada sai. Ele deixa a cozinha.
Quando ouço seus passos subindo a escada com firmeza, me largo na cadeira novamente e sinto as lágrimas retornarem.