Eu não queria abrir os olhos. Mas chega num ponto em que não dá mais para fugir. Sem surpresa, eu estava deitada numa cama de hospital. Ressler sentado ao meu lado. Os cortes pareciam melhores, e as marcas tinham mudado de cor. Eu devia ter apagado por um bom tempo.
—Me atualize. –Pedi.
—Keen não está morta. –Respirei aliviada. –Está bem, passou por uma cirurgia, e está descansando. Cooper está internado, mas também está bem. Miguel fugiu. –Ah, claro que fugiu. Homem escorregadio. –Fomos dispensados até estarmos melhor. E Cooper quer falar com você.
—Certo. –Me ajeitei melhor na cama. –Sabe, agora me veio uma... Lembrança meio embaçada. Cooper e Reddington.
—O que têm eles?
—Acho que Red me entregou a Harold. Para o Projeto Dangerous.
—Cooper nunca disse nada sobre isso.
—Aposto que não. Eu sei que ele me levou ao esconderijo onde fui treinada. Lembro dele. Cooper estava por dentro do projeto todo e às vezes ia até lá. Mas como exatamente fui parar com ele... É um mistério. Acho que vou falar com ele sobre isso.
—E isso pode esperar. A mulher dele está aí, e pediram pra ninguém ir até lá. Uma visita de cada vez.
—Tudo bem. Vou deixá-lo descansar. Só quero ver Lizzy.
—Jen.
—Qual é? Eu estou bem.
—Você levou um tiro.
—Que coisa, não é? Como se eu nunca tivesse levado um tiro antes.
Depois de me examinar mais uma vez, o médico me liberou, então lá fui eu visitar Elizabeth. O quarto dela era no fim do corredor. Quase esbarrei em Tom quando fui entrar. Ele apenas acenou com a cabeça e saiu. Eu tinha certeza de que o conhecia. Mas não podia fazer ideia de onde.
—Hey, Lizzy, está bem?-Perguntei, me aproximando.
—Sim. E você? Soube que levou um tiro. De novo.
—Acontece. É um risco ocupacional.
—Você se jogou na frente de Ressler.
—Isso é verdade. –Sorri. –E suas pernas?
—Não doem mais, estão... Boas.
—E você vai... Poder... Hã...
—Andar? Sim. Foi só um susto.
—Que bom.
—Ah, olha só, encontrei as duas juntas. –Reddington entrou, sentando ao lado da cama de Keen. –Jenna, se importaria em nos deixar sozinhos?
—Também adoro você. –Sorriu.
—Vamos almoçar amanhã. Te encontro pontualmente ao meio dia. Dembe te passa o endereço.
—Me pergunto o que seria de você sem Dembe Zuma.
—Nada. Dembe é meu braço direito.
—E o esquerdo também, não se esqueça disso.
***
—Espera, espera. Então não vai almoçar comigo porque vai sair com Reddington?-Ressler perguntou.
—Sim. E vou tentar arrancar dele alguma coisa. –Me olhei no espelho. Red não conseguiria mais do que uma Jenna de camisa e jeans. Eu não era muito exigente com roupas. Conforto em primeiro lugar, beleza em segundo. –Tenho que desligar, ou vou chegar atrasada. E você sabe como Red é dramático quando o assunto é atraso.
—Tudo bem, só tente não se meter em encrenca. –Sorri, pegando a chave do carro.
—Eu já nasci me metendo em encrenca, Ress. –Suspirou.
—Estou sabendo.
—Tchau.
Minutos depois eu estava sentando em frente à Red, que verificava o relógio de pulso. Dembe estava sentado perto de nós.
—Está atrasada. –Mostrou o relógio. –Um minuto.
—Vá se danar, Raymond. –Dois pratos foram colocados na nossa frente, e taças com vinho. Me lembrei do ótimo cozinheiro que Demetri era, então balancei a cabeça, tentando expulsar o pensamento. –Por que me chamou aqui?
—Eu não faço a mínima ideia. Como você está?
—Sei lá. –Espetei o frango com o garfo, branco demais, mas com um cheiro bom. –Acho que bem. E tenho umas perguntas, caso me deixe fazê-las...
—Vá em frente.
—Como foi minha transição para a Dangerous? Eu não me lembro disso.
—Tantos assuntos... E você só fala no seu passado. –Estalou a língua. –Tem que parar com isso.
—Raymond Reddington, não mude de assunto. Como aconteceu?
—Deixei você na frente da base. Eles te acharam e te levaram para dentro. Satisfeita?-Não.
—Sim. –Menti, achando melhor comparar a história com a de Cooper antes de acusá-lo de mentir. Ele negaria até o fim. –Por que teve essa ideia?
—Para deixá-la o mais longe possível do seu pai. Ser uma Dangerous colocaria uma barreira enorme entre vocês dois.
—E entre nós. –Ele assentiu.
—Isso é verdade.
—Eu cacei você. Me colocou naquele projeto sabendo que isso poderia acontecer.
—Sim. Mas o importante era ficar longe de Miguel.
—Mesmo que isso colocasse você como meu alvo?
—Sim. Fiz esse sacrifício, por que sabia que daria certo.
—Você é maluco. Eu podia ter te matado.
—Eu sei. –Deu um gole no vinho. –Mas não matou.
—Eu o faria, sabe, se tivesse a chance. Você era o alvo mais importante que já tivemos. Não sabe quantos planos fizemos para pegar você.
—Imagino.
—Red, você não vê a gravidade da situação, vê?
—Se nada aconteceu, para que ficar imaginando o que teria acontecido?
—Você tem razão. Só me faça um favor.
—Sim?
—Não me manipule de novo. Ou posso ressuscitar aqueles planos. –Sorriu.
—Pode deixar.
***
—Olá, Harold. –Entrei no quarto. –Como está?
—Bem. E então, vai me contar que confusão andou se metendo?
—Assim que responder uma pergunta.
—Claro. Pode perguntar. –Eu tinha acabado de vir do almoço com Red, e ele estava no quarto de Keen agora. Não teve tempo de ligar para Cooper e dizer que eu estava vasculhando o passado.
—Como fui parar no Projeto Dangerous?-Ele se arrumou na cama, parecendo pensativo.
—A encontraram num orfanato. Foi aleatório.
—Certo. Aleatório. Só um minutinho. –Coloquei a cabeça pra fora do quarto e localizei Dembe no corredor. –Ei, Dembe, chame Red pra mim. Preciso falar com ele. –Assentiu e chamou pelo chefe. Reddington apareceu e entrou. –Ótimo. Agora tenho os dois aqui. E quero a droga da verdade.
—Jenna...
—Vocês estão mentindo. Um diz que fui deixada na frente da base da Dangerous, outro que eu fui escolhida num orfanato. Quero a verdade. Quem quer começar?
—Eu a levei para um lugar afastado, - Red começou, ficando sério como sempre ficava quando o assunto era sobre mim, e delicado. –fiz Harold ir até lá, sozinho. Disse que entregaria você para o projeto. Mas que ele deveria ir sem ninguém, ou a mataria. Ele acreditou, e foi.
—Não me lembro muito bem sobre isso...
—Estava inconsciente. Um pouco acordada, eu acho. Eu droguei você para que não visse nada.
—Você fez o que?
—Eu tinha acabado de apagar quatro anos da sua cabeça, me apagando junto. Não podia deixar que se lembrasse de mim.
—Isso tá cada vez pior. –Me sentei na ponta da cama de Cooper, respirando fundo.
—O que importa é que Harold a levou para o projeto. Fim.
—Precisava desse mistério todo?
—Sim. Sua enxerida. Pare de vasculhar seu passado. Ele não é bom.
—Eu digo o que fazer sobre mim mesma, obrigada. –Levantei. –Harold, espero que volte ao trabalho, ou serei demitida por socar a cara de Martin.
—Ele está me substituindo de novo?-Perguntou, então tentou se sentar. –Tenho que voltar agora mesmo. –Ri.
—Tenho que ir. A gente se vê. E você, Raymond Reddington, pare com as mentiras.
—Prometo tentar. –Murmurou, sem olhar pra mim.
***
Fui afastada por uns dias, após levar um tiro na coxa, numa perseguição. Por mim eu continuaria trabalhando, mancando e tudo, mas Cooper voltou ao trabalho (e com estilo) e me fez sair. Falando nisso, a cara de Martin ao ser retirado do cargo foi hilária. Aram e eu ficamos chateados por não termos batido uma foto do momento.
—Acho que devia ficar de repouso alguns dias, Harold. –Martin tentou. –Eu posso ficar no cargo, até que possa voltar.
—Não será necessário. Estou ótimo. Aliás, alguém competente precisa administrar esse caos, não é mesmo?-Rá! Então Cooper ficou sabendo que Martin chamou nosso esconderijo de caos.
—Certamente que sim. –Segurei o riso, mesmo assim ganhei um olhar feio de Martin.
Horas depois eu me machuquei em missão, e então Cooper me mandou pra casa. Aproveitei o tempo para (tentar) aprender a cozinhar.
—O que está fazendo, Mhoritz?-Red perguntou, se apoiando no balcão e tirando o chapéu.
—Tentando cozinhar.
—E o que é pra ser isso aí?
—Sopa. Experimenta.
—Eu?
—É, você mesmo. Vem logo. –Entreguei uma colher pra ele e me afastei, verificando a receita no meu celular. Parecia que tinha feito tudo certo.
—Isso deveria me matar?-Jogou a colher na pia. –Precisa de prática.
—É só seu jeito de dizer que tá horrível, né?
—Sim, mas eu não posso dizer isso, ou vai ficar chateada. –Revirei os olhos. –Tenho uma coisa pra você. –Pegou uma pasta com Dembe, que estava parado perto da porta.
—O que é?-Desliguei o fogão e peguei a pasta.
—Miguel está sequestrando mulheres parecidas com Maria, sua mãe. Achei que gostaria de pará-lo.
—Por que não entregou o caso ao FBI?
—Por que ele diz respeito ao seu pai. Você decide se vai entregá-lo à sua equipe, ou não.
—Vou pensar no assunto. –Abri a pasta. Havia fotos das mulheres que Miguel sequestrou. Eram mesmo parecidas com a minha mãe. E tinham a mesma idade dela. –Acho que... Vou ficar com o caso. –Fechei a pasta. –Bom, parece que vou parar com minhas tentativas de cozinhar por um tempo. –Me virei, Dembe estava com uma colher na mão, tomando a sopa. –Ei.
—Não está ruim. –Comentou. Ri.
—Obrigada, Dembe.
—Mentiroso. –Red acusou. –Vamos. Jenna tem muito que fazer agora.
***
Entrei no carro, no lado do carona, a arma apontada para o homem no lado do motorista.
—Olá. Acho que sabe quem eu sou. –Ele engoliu seco, assentindo. –E eu sei quem é você. Trabalha para o meu pai. E vai me levar até ele.
—Eu não posso fazer isso.
—Ah, pode sim, Steffano. Vai fazer isso se quiser ver seu filho novamente. –Puxei o celular do bolso com a mão livre, exibindo uma foto de um garotinho. –Esse é seu filho, não é?
—O que fez com ele?
—Não o machuquei, se quer saber. Ele está bem, por enquanto. Se quiser vê-lo de novo, vai fazer exatamente o que eu mandar. E nem tente me meter numa armadilha. Se eu não ligar em uma hora para as pessoas que estão com seu filho... Creio que ele irá para bem longe, para onde nunca irá achá-lo. –Guardei o celular. –Temos um acordo, senhor Steffano?
—Por favor, não o machuque.
—Não sou como meu pai. Não quero ferir o menino. Faça o que eu mandar e o devolverei.
—Tudo bem.
—Ótimo. Comece a dirigir.
***
A construção era enorme. A maior mansão que já vi. Steffano digitou uma senha no portão, e então entramos. Saí do carro, a arma apontada para ele. Entramos na casa. Meu pai conversava com dois homens, dando ordens. Parou, surpreso, assim que me viu.
—Jenna. Posso saber por que da visita?
—Senti saudade, papai.
—Disso eu duvido muito. –Sorri.
—Que bom.
—O que quer?
—Soube que está sequestrando mulheres. Vim interferir.
—E Steffano fez o favor de trazê-la aqui. –Olhou para o homem ao meu lado.
—Senhor, ela me obrigou. –Ele disse. –Está com meu filho. Tive que fazer isso.
—Entendo. –Assentiu. Então fez um gesto rápido, e o homem atrás dele atirou duas vezes contra Steffano. Me afastei enquanto ele caía. –Ótimo.
—Por que fez isso?-Perguntei.
—Por ele ser idiota o suficiente para se deixar levar por suas ameaças. Ele devia total lealdade a mim. E me colocou em perigo. Todos que cometem esse erro, são punidos com a morte.
—Você também será.
—E vai fazer o que? Atirar em mim?
—Quero apenas levar as mulheres que sequestrou. Então vou embora. –Suspirou.
—Tudo bem. Se prometer que não vai me prender assim que as soltar...
—Estou sozinha, não poderia prendê-lo nem se quisesse.
—Bom. Vamos. –O segui para uma escadaria, que levava a uma série de corredores subterrâneos. Passamos por uma porta, então, surpreendentemente, havia diversas celas, como em uma prisão.
—O que... Como... Você construiu celas na sua casa?
—Essa não é minha casa, é apenas uma das minhas bases. –Pegou um molho de chaves com um dos capangas ao lado dele e abriu uma das portas. Tentei espiar pela pequena janela, mas não consegui. –Aqui, a mulher aí dentro está ferida, vai ter que ajudá-la.
—Você a machucou? Como você...
Eu não vi que um dos capangas se aproximou por trás de mim. Quando vi era tarde. Ele me desarmou e me empurrou para dentro da cela. A porta foi trancada rapidamente.
—Miguel!-Gritei, socando a porta de metal. –Abre essa droga! Agora!
—Desculpe, querida, mas você ainda vai acabar atrapalhando meus negócios.
—Abre isso agora! Eu vou fazer você se arrepender disso! Sou uma agente federal, você já era!
—Certo, certo. Agora fique quietinha. –Saiu da minha linha de visão.
—Miguel!
***
Dois dias haviam se passado. Meu cérebro trabalhava sem parar, armando um plano. Foi só no terceiro dia que isso aconteceu.
Os guardas sempre vinham verificar se eu estava comendo, se não tinha me matado, ou coisas assim. Naquele dia eu nem toquei na comida, e quando um dos capangas do meu pai veio me ver, eu fiquei caída no chão, sem me mover.
—Ei, senhorita Cortez. –Chamou. Era sempre “senhorita Cortez”, por mais que eu tenha dito a Miguel que nunca assumiria o sobrenome dele. –Senhorita?-A porta abriu. O homem se abaixou ao meu lado, os dedos tocando meu pescoço para verificar a pulsação.
Abri os olhos e me lancei contra ele, acertando-o um soco. Ele caiu imóvel. Peguei dele o molho de chaves e a arma. Era hora de uma fuga em massa.
Destranquei a primeira cela ao lado da minha, então a segunda, dei a chave para uma das mulheres e pedi que continuasse fazendo isso. Esperei, a arma em mãos, pronta para atirar caso algum guarda aparecesse.
—Sabem se há outra saída?-Perguntei, assim que as dez celas estavam abertas.
—Há uma no fim do corredor. –Uma das mulheres disse. –Dá direto para fora daqui.
—Então vamos! Rápido! Vá na frente. –Elas começaram a correr, me virei, mas então algo me chamou atenção e eu parei.
—Jenna, o que é isso tudo?-Miguel parou, olhando para mim, e para as mulheres, que haviam parado, assustadas. –Sabia que ia fugir em algum momento. Pena que não sairá daqui.
—Quer apostar, papai?
Ele avançou na minha direção. Era um homem grande, e acabou me derrubando. Acertei um soco no rosto dele e consegui rolar, pegando a arma e deixando-o embaixo de mim.
—Não vai atirar.
—Não. –Concordei. –Mas isso ainda não acabou. –O acertei com a arma e levantei. –O que estão esperando? Corram!
Abri a porta com a chave e saí na frente, atenta. Um homem se aproximou. Atirei. Ele se esquivou, então veio para um ponto onde a luz o iluminou, e eu o reconheci.
—Caramba, Dembe, eu podia ter atirado em você!-Gritei. Tiros, não muito longe, foram disparados. –O que está acontecendo?
—Uma invasão. Você e elas precisam sair agora.
—Certo. Vamos.
***
—O cheiro parece ótimo, Mhoritz. –Dei um pulo, quase derrubando a colher. Suspirei.
—Red, não pode entrar aqui sem avisar!
—E então?
—O que?
—O caso, Jenna, o caso. –Abaixei o fogo e me apoiei no balcão.
—Você sabe como terminou, Dembe estava lá, na invasão. As mulheres foram devolvidas para suas vidas.
—Mas você foi ao esconderijo, depois.
—Sim. Entreguei os dados que me passou para Cooper. Ele vai investigar, e seguir de onde parei.
—Por que fez isso?-Dei de ombros.
—Sou uma só, e já percebi que não conseguiria atirar em Cortez. Deixe os outros fazerem isso por mim. –Parei, pensando. Miguel tinha razão. Isso era um problema. Ele era um criminoso, eu devia tratá-lo como tal. Mas o fato de ele ser meu pai me incomodava.
—Me deixe provar isso. –Pegou a colher na pia e provou a gororoba que eu estava fazendo. –O que devia ser?
—Um estrogonofe, receita de Demetri.
—Ah, Demetri era um ótimo cozinheiro.
—É, eu sou horrível. –Suspirei.
—Não. Até que está bom. Está quase lá. –Sorri.
—Obrigada. –Desliguei o fogão. –E então, eu andei pensando...
—Isso é perigoso. –Olhei feio na direção dele. Red se sentou do outro lado da mesa, enquanto eu colocava três pratos. Sabia que Dembe estava na porta. –Continue.
—Podia falar algumas coisinhas sobre o passado.
—Achei que já se lembrasse.
—E me lembro. –Terminei de pôr a mesa. –Mas não de tudo. Algumas coisas ainda são muito confusas.
—Não achei que se lembraria de uma vez só.
—Dembe!-Chamei, me sentando. –Pode vir, eu sei que está aí. –Ele entrou na cozinha e se sentou ao lado de Red. –Ok, Raymond, pode começar.