O som me despertou. Abri os olhos com dificuldade, sentindo que meu corpo era uma pedra de gelo. Mas podia ouvir a TARDIS e isso foi como um abraço caloroso no meio daquele inferno frio. Nosso fogo tinha se tornado muito mais fraco que antes, aquecendo tanto quanto o resto de uma vela.

—Klaus. -Limpei a garganta, tentando falar mais alto. -Klaus... Acorda... Ele nos achou... O Doutor... O Doutor nos achou. -Sem resposta. -Klaus?-Tentei me virar para olhá-lo, meus movimentos estavam ainda mais lentos. -Klaus, acorda... Olha pra mim... Klaus?

Não... Não, ele não podia estar morto logo agora... Não quando o Doutor tinha nos achado. Esse era nosso milagre, ele tinha que viver para estar nele comigo.

—Klaus. -Toquei o rosto dele. -Klaus...

Respirei fundo, me obrigando a não entrar em desespero, mas eu só queria abraçá-lo e chorar.

—Tem alguém aí?

Cinco. Era a voz dele. Não estava muito longe. Devia estar com o Doutor.

—Aqui... Estamos... Aqui... -Fechei os olhos.

Você precisa gritar, imaginei Klaus dizendo. Grita, garota. Grita pela sua vida... Pela nossa vida!

—Aqui!-Gritei, encarando a porta como se pudesse fazê-la abrir. -Estamos aqui! Socorro! Aqui!

A porta abriu com tudo, revelando Cinco e o Doutor. A vontade de chorar voltou, mas agora de alívio.

—Ele não está respirando. -Avisei.

Os dois correram pra cima da gente, falando ao mesmo tempo, tirando seus próprios casacos e nos cobrindo.

Depois disso tudo foi um borrão e eu acordei na enfermaria da TARDIS.

Me sentei na maca, afastando os cobertores e a manta térmica. Klaus estava na maca ao lado, coberto e... Vivo.

—Klaus?-Sussurrei, me aproximando.

Ele estava respirando agora, mas ainda estava frio ao toque e parecendo muito cansado. Decidi deixá-lo dormir e fui atrás do Doutor na sala de controle.

Ele estava com Cinco, em mais uma conversa-discussão.

—Você devia estar na enfermaria. -O Doutor disse.

—Eu estou bem. Você nos achou.

—Parabéns, vocês foram os segundos.

—E os outros?-Deu de ombros.

—Ainda nada.

—Precisamos achá-los.

—Precisamos. -Cinco concordou, agitado. -Klaus e você estavam congelando até a morte na Rússia de 2081. Eu... -Parou, olhando para o Doutor, então pra mim de novo. -Não importa. Tudo indica que os outros estavam tão fodidos quanto a gente.

—Você não pode falar desse jeito na minha TARDIS. -O Doutor avisou, apontando pra ele.

—Foda-se. Temos que achar os meus irmãos. Alguma ideia?

—Como nos acharam?-Perguntei.

—A pichação no telhado.

—Então vocês viram.

—Você teve uma boa ideia. -Inclinei a cabeça para o lado.

—Como sabe que foi minha?

—Eu conheço o irmão que tenho, ele deve ter dado trabalho e falado em beber. -Decidi ser leal à Klaus e não confirmar.

—Talvez os outros tenham deixado pistas também... Ou rastros.

—Não sei o que Allison, Luther, Diego e Vanya poderiam fazer dessa vez...

—Vanya é violinista... E se houver algo relacionado?-Olhei para o Doutor. Ele assentiu e digitou alguma coisa no console.

—Vanya Hargreeves... -Começou. -aqui fala de concertos e uma autobiografia. As datas condizem com a linha do tempo normal dela.

—Ela poderia usar um pseudônimo ou...?

—Violino Branco. -Cinco sugeriu. O Doutor digitou de novo.

—Tem uma música. -Contou. -As Sete Crianças, do álbum Violino Branco. Autor: V. Hargreeves.

—Toque.

A música a seguir era tocada num violino. Tão triste e emocionante, me fazia querer chorar. Eu não sabia que Vanya podia compor algo assim.

—É dela?-Perguntei.

—É claro que é. -Cinco respondeu. -É deprimente e... Melancólico. Essa é a Vanya. Ano?

—1717. -O Doutor respondeu.

—Então vamos nessa...

—Talvez não seja tão fácil. Tem uma notícia de um jornal local de Londres de 12 de maio de 1717, e diz que V. Hargreeves está em Bethlem Royal Hospital of London.

—Isso é péssimo.

—Por quê?-Perguntei.

—Por que o Bethlem Royal Hospital of London é um manicômio.

—Vanya está num manicômio?

—Não é a primeira da família. -Coçou a parte de trás da cabeça. -Okay, você nos leva até lá, meu velho homem. E você, -Olhou pra mim. -vem comigo para a missão de resgate. Mas faça tudo o que eu disser e fique perto de mim o tempo todo.

—Eu? Por que eu?

—Talvez precise usar seu poder na Vanya. Ela é a mais poderosa entre todos nós e se não destruiu nada para escapar ou... -Hesitou. -Não quero imaginar o que fizeram com ela. -Estendi a mão, tocando seu ombro. Cinco a encarou como se fosse algo muito estranho, mas não a cortou fora ou me xingou.

—Está tudo bem. Nós vamos resgatá-la.

—É, nós vamos. -Murmurou.

O Doutor nos levou até 1717. Antes de sair, pedi que checasse Klaus e cuidasse dele, então saí com Cinco para as ruas outonais e noturnas de Londres.

O Bethlem Royal Hospital of London era enorme. Uma grande e opressiva construção que não me trazia bons sentimentos. Eu não queria entrar lá, mas Vanya precisava ser salva.

—Você tem um plano?-Perguntei.

—Sim, eu tenho. Vamos tentar entrar numa boa, se nos barrarem, partimos pro plano b.

—Espero que não envolva matar pessoas. -Olhou pra mim. -O plano b.

—Não se preocupe... Eu mato se for necessário.

—Não!-Parei de andar, segurando o braço dele. -Você não pode matar ninguém.

—Sim, eu posso. -Se soltou. -Sou um homem de 58 anos que foi um assassino profissional grande parte da vida. Então sim, eu posso matar.

—O Doutor...

—O Doutor é um pacifista. Adivinhe só: eu não ligo. É a minha família que foi espalhada pela linha do tempo para morrer. Não vou deixar isso acontecer. Farei o que for preciso, matarei quem precisar, para salvar meus irmãos. -Nesse momento, mesmo com o corpo de um menino de 14 anos, era fácil imaginá-lo como um adulto.

—Eu não vou te ajudar a matar ninguém.

—Eu não preciso de ajuda. Agora anda, -Me puxou para continuarmos nosso caminho. -vamos falar do plano.

A recepcionista do Bethlem Royal Hospital of London não parecia ligar para o seu trabalho. Veio nos atender lentamente e muito desinteressada.

—Estamos aqui para ver minha irmã, -Comecei. -a senhorita Hargreeves.

—Sinto muito, o horário de visitas acabou. Voltem amanhã. Eles tiveram um dia cheio hoje.

—Ah, nós sabemos. -Cinco disse, se apoiando no balcão. -Vocês exibem os pacientes como animais, deixam os visitantes cutucarem eles com varas e coisas piores. Se eu souber que fizeram isso com a minha irmã...

—Não gosto do seu tom de voz, rapazinho.

—Vai gostar menos quando eu...

—Qual o problema aqui?-Uma voz masculina perguntou, atrás de nós. Cinco e eu nos viramos, encontrando um homem alto e careca de meia idade. Meu instinto me mandou correr.

—Eles querem ver uma interna, doutor Sandoval. -A recepcionista disse. -Hargreeves.

—Mesmo? É a primeira vez que ela recebe visitas. Vanya sempre diz que tem uma família grande, mas ninguém nunca veio.

—Estamos com alguns problemas familiares. -Inventei. -Eu voltei para o país recentemente e decidi vê-la. Sou Mallory Hargreeves. -O homem estendeu a mão. Era suada demais e segurou a minha mais do que o necessário. -Esse é meu irmão, Franklin Hargreeves. -Cinco, por sorte, manteve as mãos nos bolsos da bermuda.

—A senhorita se importa em me acompanhar para uma conversa à sós?-Eu me importava, mas não podia negar.

Olhei para Cinco, querendo dizer que podia lidar com aquilo e segui o médico até a sala dele no primeiro andar.

—Escute, eu entendo que se importe com sua irmã. -Parou ao lado da minha cadeira. -Mas não vai querer vê-la.

—Por quê?

—Vanya está muito confusa, abatida... Não tem se alimentado bem há semanas. Uma senhorita como você não precisa passar por isso. Quando sua irmã estiver melhor, eu mesmo avisarei.

—Eu realmente preciso ver minha irmã. É importante.

—O que pode ser tão importante?

—Assunto familiar. -Fiquei de pé. -Mas se não pode me ajudar, acharei outro jeito.

—Oh, não. Eu não quero decepcioná-la. -Se aproximou. -Acho que podemos resolver isso.

—Podemos?-Recuei um passo, ele deu outro. Droga... Eu tinha me metido numa enrascada.

—É claro. Vanya tem um temperamento forte, imagino que seja de família.

—E...?

—Bom, sabe o que dizem das mulheres de temperamento forte.

—Não, eu não sei. -Tentei recuar de novo, mas ele segurou meu braço. -É melhor me soltar...

—Você quer ver a sua irmã, não quer?

—Me solta...

—Se você fizer alguma coisa por mim... Eu posso te conseguir um tempo com a sua irmã. Vanya está muito bem trancada e sem receber visitas... Você vai ter que se esforçar...

—Okay, já chega. -Cinco disse, aparecendo atrás do médico. -Você é nojento pra caralho.

—Como foi que... -O garoto chutou o homem na dobra da perna, fazendo-o abaixar o suficiente para acertá-lo na cabeça com um livro pesado que estava na mesa.

—Não é assim que se trata uma mulher,. -Derrubou o livro em cima do médico inconsciente. Olhou pra mim.-Você está bem?

—Você me salvou. -Disse.

—De nada. Eu estava ouvindo atrás da porta. -Começou a andar pela sala, então pegou algumas pastas num armário.

—Ele...

—Eu sei. Pode pisar nele se quiser, eu não vou contar à ninguém. -Admito que fiquei tentada.

—Não quero imaginar o que ele faz com as pacientes. -Murmurei.

—Achei o registro da Vanya. -Me virei. -Quarto 125.

—Aí diz por que ela está internada?

—Diz. -Rasgou algumas folhas. -Agora não diz mais. -Segurou meu pulso. -Vamos.

Nós aparecemos num corredor, em frente à porta 125, e depois dentro do quarto. Não era limpo, bonito ou arrumado.

Vanya estava encolhida no lado oposto da porta, com roupas sujas e parecendo dopada. Cinco apareceu do lado dela, checando seu pulso.

—Estou aqui, Vany. -Sussurrou. -Eu te achei. -Olhou pra mim. -Me ajude aqui.

Sentamos Vanya, que sequer pareceu notar, então Cinco usou seu poder até estarmos do lado de fora do manicômio.

Vanya era magra e mesmo semi inconsciente era leve, não tivemos muito trabalho para levá-la para a TARDIS e logo a violinista da família Hargreeves estava numa maca ao lado do ainda adormecido Klaus.

Missão cumprida. Era hora de achar o próximo irmão desaparecido.

—Encontrei Luther. -O Doutor disse, assim que Cinco e eu voltamos para a sala de controle. Empurrou uma das telas na nossa direção.

—Meu Deus. -Murmurei.

A imagem era em preto e branco, mas eu podia ver uma jaula não muito grande. Dentro dela, Luther tentava se esconder da câmera, envergonhado, machucado e triste. Ele não usava uma camisa, então parte de seu corpo de gorila apareceria. Uma corrente estava presa em seu pescoço.

—Onde ele está?-Perguntei.

Cinco parecia prestes a ter um ataque de nervos. Eu não era irmã dos Hargreeves, mas ver Klaus, Vanya e Luther tão machucados me deixou triste, preocupada e com raiva de quem estava por trás disso.

—Circo dos Irmãos Kershaw. Estados Unidos, Chicago, 1929.

—Um circo dos horrores. -Murmurei.

—Sim. Luther é uma das atrações.

—Okay, vamos salvar meu irmão. -Cinco disse. -Enquanto isso, tente localizar Alisson e Diego. Eles são os mais espertos da família depois de mim, não devem ser difíceis de achar. -Olhou pra mim. -Vamos.

Eu nunca tinha ido num circo, normal ou dos horrores. Meu pai ter medo de palhaços causou isso. Mas não era como se eu quisesse ir num circo, não estava na minha lista de interesses. E, se os circos atuais fossem como o dos Irmãos Kershaw, eu queria passar longe deles.

Era um lugar grande e ao ar livre, com tendas abertas e fechadas para algumas atrações. Havia muitas pessoas transitando, era difícil andar.

—Onde colocariam um homem gorila?-Cinco murmurou, girando para olhar em volta.

—Vamos descobrir. -Me aproximei de uma mulher que estava com uma menininha ao seu lado. -Com licença, é a nossa primeira vez aqui... Eu ouvi dizer que tem um homem gorila como atração, isso é verdade?

—Oh, é sim!-A mulher respondeu, animada. -Ele é a atração principal no fim da tarde, vocês vão adorar. Minha Mary Jane morre de medo dele!-Riu escandalosamente. -É repugnante. Um rosto tão bonito num corpo horroroso!

—Horroroso é esse seu nariz enorme. -Cinco disse. A mulher fez cara feia.

—Devia dar umas palmadas no seu filho, querida. Não pode deixá-lo falar assim. Dê corretivos enquanto ainda pode. Crianças são como cachorros... Adestre-os ou vão te morder.

—Você vai ver quem vai morder...

—Ótimo conselho. -Interrompi, segurando Cinco pelo braço. -Onde fica a atração principal?

—Na tenda maior. -A mulher respondeu.

—Obrigada. -E saí puxando Cinco. -Você...

—Eu não vou ouvir nada do que disser. -Interrompeu, insolente. O soltei.

—Bom, você não disse nenhuma mentira. -Tentei não sorrir.

—Eu sei.

Havia decidido não prestar atenção nas atrações do circo, mas era difícil. Pessoas com muita flexibilidade corporal (Klaus provavelmente faria piadas sobre isso), um homem muito baixinho, crianças grudadas, o “homem mais forte do mundo” (apostava dez libras que Luther era mais forte do que ele), e até uma mulher barbada.

—Isso é estúpido. -Parei de andar. -Por que ficam tão impressionados com isso? Quer dizer, é só uma mulher com pelos.

—É 1929, o que você esperava?

—Mas é muito idiota. Ela deve ter alguma coisa que a faz assim. Eu por exemplo tenho Síndrome do Ovário Policístico, o que me faz ter muitos pelos. Essa mulher não é uma aberração. É uma pena que tenha que passar por isso.

—Sua empatia é muito comovente, mas temos que ir.

—Oh, é. Desculpa, me distraí.

Continuamos andando. A tenda maior era vermelha, fechada e menos suja que as outras. Cinco e eu entramos cuidadosamente pelos fundos.

Luther, como na foto, estava numa jaula. Agora, em cores, era possível ver como ele estava machucado.

—Irmão. -Murmurou. Cinco agarrou as grades que os separavam.

—Você está bem?

—Acho que podia estar pior. -Se mexeu, a corrente em seu pescoço fazendo barulho. Não havia muito espaço pra ele ali dentro. -Mallory.

—Oi. -Saudei, me aproximando e estendendo as mãos entre as grades, tocando Luther e começando a curá-lo. -Nós vamos te tirar daí.

—E os outros? Allison...

—Encontramos quase todo mundo, faltam Allison e Diego. Klaus e Vanya estão na TARDIS com o Doutor.

—Onde está a maldita chave?-Cinco perguntou, irritado.

—Tem alguém vindo. -Luther sussurrou.

Cinco agarrou meu braço e aparecemos atrás de algumas caixas. Me abaixei, tentando não fazer barulho.

—Ei, grandão, falando sozinho?-Passos se aproximaram. -Está quase na hora do show. Eu espero, é claro, que não me envergonhe de novo. Você é a atração principal. Preciso que vá lá e seja... Muito bizarro. É minha mina de ouro. Então, se der chilique de novo, vai sofrer as consequências. Entendeu?-Sem resposta. Um som de chicote soou e Luther gemeu de dor. -Eu perguntei se você entendeu, aberração.

—Eu não vou me apresentar.

—Você vai mesmo me desafiar?-O chicote de novo, e de novo, e de novo...

Agora eu entendia por que Luther estava tão machucado.

—Deixa ele em paz!-Gritei, saindo de trás da caixa. O homem parou, olhando pra mim.

—Você não pode entrar aqui...

Cinco apareceu ao lado dele de repente, tirou o chicote das mãos do homem e apareceu atrás dele, usando o objeto roubado para enforcá-lo.

—Cinco, não!-Gritei. Corri até o garoto, puxando-o pela cintura com as duas mãos. -Solta ele! Solta ele!

—Cinco, para com isso!-Luther pediu, batendo nas grades. -Cinco!

Tentei mandar vibrações calmantes e positivas para Cinco, mas isso não parecia resolver. Ele estava furioso e sua fúria assassina barrava meu poder.

De repente, ele soltou o homem e nós caímos no chão.

—Ele está vivo?-Luther perguntou, apontando. Me sentei, esfregando o cotovelo que tinha batido no chão.

—Importa?-Cinco retrucou, levantando e mexendo nos bolsos o homem, achou algumas chaves.

Achei melhor não contar essa parte para o Doutor, ele ficaria muito irritado.

Soltamos Luther e eu voltei a curá-lo. Mesmo assim, ele parecia fraco. Colocamos uma toalha grande por cima dos ombros dele, para tentar cobrir seu corpo, e saímos da tenda cuidadosamente, ajudando-o a andar.

—Não se soltem. -Cinco mandou, usando em seguida seu poder até estarmos na porta da TARDIS.

Luther foi para a enfermaria com Klaus e Vanya, precisaria de um tempo para se recuperar.

De volta à sala de controle, Cinco e eu recebemos notícias de Allison.

—Eu a encontrei, -O Doutor começou. -uma foto dela aparece numa sessão de procurados.

—Procurados?-Cinco repetiu.

—Brasil, século 49. -Mostrou a foto na tela. –“Mulher não identificada é acusada de assassinato”.

—É a Allison... -Murmurei.

—É.

—Onde ela está agora?-Cinco perguntou.

—Até aqui foi a parte fácil. Ninguém sabe onde a sua irmã está. É por isso que tem uma foto dela na sessão de procurados.

—Diz em algum lugar onde ela foi vista pela última vez ou...?

—Cidade Baixa.

—O que é isso?-Perguntei. Cinco coçou a parte de trás da cabeça e ajeitou o uniforme.

—Já vamos descobrir. -Respondeu.

***

Eu não tinha visto nada como aquilo, era um contraste tão grande que parecia irreal.

Lá longe havia prédios altos, brancos, prateados, espelhados, dignos de um filme de ficção com alto orçamento. Uma cidade que dali parecia pertencer à um mundo futurístico onde havia apenas pessoas ricas.

Perto de nós o cenário era diferente. Casas pequenas, de madeira, barro, ou uma mistura de elementos estavam amontoadas umas nas outras, criando corredores estreitos, ruas apertadas e sujas.

—Essa deve ser a Cidade Baixa. -Cinco disse.

—Como vamos encontrar a Allison?

—Talvez seja uma pista. -Apontou para um telão que flutuava acima de algumas casas. Havia a mesma foto de Allison que tínhamos visto na TARDIS, com algumas informações e o aviso de procurada. -Ela deve estar na Cidade Baixa. Imagino que seja fácil se esconder nesse caos.

Começamos a andar, as ruas estavam vazias, o que me deixou incomodada. Havia barulhos vindos das casas, denunciando seus moradores. Não havia espaço para carros e não vi nenhum.

Eu tinha visto muitos futuros, mas um com uma desigualdade tão grande era perturbador. O que as pessoas que moravam lá na cidade dos prédios estavam fazendo? Como viviam num lugar daqueles e deixavam pessoas morarem em algo como a Cidade Baixa?

—Isso me lembra um pouco o apocalipse. -Cinco comentou. -Que lugar horrível.

—Ei, vocês, o alarme não tocou ainda!-Uma voz gritou nas nossas costas. Uma mulher e um homem de uniforme verde escuro desceram uma escadaria e se aproximaram. -Vocês não deviam estar na rua. O que estão pensando?

—Hã... -Droga, eu não sabia o que dizer e Cinco parecia pensar na melhor forma de matar os dois.

—Identificação, por favor.

—O que?

—Mostrem as mãos. -O homem mandou. Continuei parada, confusa, então ele puxou meu braço direito e pegou um aparelho no bolso, pondo em cima da minha palma aberta. -Não está lendo...

—Deixa eu tentar. -A mulher pediu, pegando um aparelho igual ao do homem e repetindo a ação dele. -Nada. Você arrancou sua identificação?

—Não?-Quis me estapear. Eu não sabia o que dizer.

—Você, mostre a mão. -Virou para Cinco.

—Vou poupar seu tempo. -Ele disse. -Eu não tenho identificação também. -A dupla sacou as armas do cinto.

—Apenas criminosos arrancam suas identificações.

—Não arrancamos. Nós não apenas não temos.

—Vocês terão que ir até o Posto 32 para uma explicação.

—Nem morto. -Avançou, desaparecendo e aparecendo atrás dos guardas, derrubando-os em segundos. Um alarme soou em algum lugar. -Vamos.

Aos poucos pessoas iam enchendo as ruas. Devia haver algum toque de recolher ou algo assim. Estranho, devia ter seus motivos, mas não tínhamos tempo para descobrir.

—Vamos levar dias ou mais para encontrar Allison. -Cinco murmurou.

—Tem um plano?

—Ainda não, e parece que temos mais problemas. -Apontou para um telão flutuante, onde agora fotos nossas eram exibidas.

—Só pode ser brincadeira.

—Temos que sair da rua, agora.

—Mas pra onde... -Alguma coisa bateu no meu braço, uma pedrinha. -Que isso?

—O que foi? Ei. Tem alguém jogando pedras na gente?

—Ali. -Apontei para uma ruazinha escura à esquerda, onde uma garota fazia gestos para que a seguíssemos. -Devíamos arriscar?

—Sim. -Começou a andar.

—E se ela for uma assassina ou...?

—Não tem problema. -Olhou pra mim. -Eu também sou.

Seguimos a garota que andou rápido e silenciosamente pela ruazinha, até abrir uma porta e fazer mais gestos para entrarmos. Cinco foi primeiro, atento e pronto para quebrar o pescoço de quem tentasse nos atacar.

A garota então fechou a porta e se juntou à nós no centro de um galpão sujo e cheio de tralhas que devia ser um depósito.

—Quem é você?-Cinco exigiu. A garota fez alguns sinais. -Você não fala?

—Ela deve ser muda. -A garota assentiu. -Você nos ouve?-Balançou a cabeça negativamente e tocou seus lábios com o indicador. -Acho que ela faz leitura labial.

—Ótimo, vai ser uma conversa muito fácil. -O tom irônico dele era tão perceptível que com certeza até a garota notou.

—Você não sabe língua de sinais?

—Vocêsabe?

—O básico, tipo... Saudações e... Números...

—Muito útil. -Respirei fundo, não querendo começar uma discussão.

—Não se preocupem, -Uma voz veio das sombras. -eu consigo entender muito bem. -Um garoto se aproximou. -Sou Alex. Essa é Joana, minha irmã. Ela está dizendo que achou vocês lá fora e são procurados.

—Irritamos alguns guardas.

—Sei como é. -Parou um momento, nos analisando. -Então... Por que estão aqui? Vocês parecem ser da Cidade Alta.

—Não somos de lá, nem daqui. Estamos procurando minha irmã. Allison Hargreeves.

Os irmãos trocaram um olhar significativo e começaram a conversar em libras. Eu não entendia o suficiente para saber o conteúdo da conversa.

—Do que será que eles estão falando?-Cinco sussurrou.

—Eu não sei. Espero que não seja como nos entregar para as autoridades.

—Eu os mato antes. -Eu tinha certeza disso, então rezei para que os irmãos não estivessem querendo entregar nossa cabeça.

—Okay, nós sabemos onde Allison está. -Alex disse. -Podemos levá-los até ela.

—Conhecem a minha irmã?

—Claro. Ally tá com a gente há uns dias desde que a salvamos de uns guardas. Fica aqui perto, mas vamos ter que dar um jeito em vocês antes.

Alex nos arrumou casacos com capuz e um boné para Cinco. De acordo com ele, era arriscado sairmos e sermos reconhecidos por guardas fazendo ronda.

—Por que tem tantos guardas aqui?-Perguntei.

—Ah, por que somos pobres e representamos perigo pra sociedade. -Sorriu, sarcástico. -Aqueles cuzões da Cidade Alta acham que precisamos ser vigiados o tempo todo, para reprimir nossos instintos criminosos.

—Isso é ridículo.

—É sim. Eles não nos dão oportunidades, chance de mudar de vida, tiram nossos direitos e aí decidem nos tratar como bombas.

—Sinto muito. -Deu de ombros.

—Não sinta. Vamos ferrar com esses otários.

—Hey, Alex!-Uma voz masculina chamou. Um guarda ia se aproximando lá na frente.

—Não entrem em pânico. Eu lido com isso. Léo, já estava me perguntando se você tinha mudado de setor.

—Ah, imagina. Eu gosto daqui. Então, o que temos aqui?-O olhar dele passou por nós quaro.

—Nada, estamos apenas levando minha amiga aqui e o filho pra resolver um assunto. Adivinha só, o Miguel fez de novo.

—Ah, não. Sinto muito, moça. Ele devia assumir os filhos que faz. -Eu não sabia o que dizer. -Deem um jeito naquele filho da mãe.

—Nós vamos, não se preocupe. Te vejo por aí. -Voltamos a andar.

—Quem é Miguel?-Perguntei.

—É um conhecido meu, tem muitos filhos por aí e não assume nenhum. Eu geralmente ajudo as moças azaradas a lidar com ele.

—Aquele cara era um guarda mesmo?-Cinco perguntou, coçando a parte de trás da cabeça. -Ele parece estúpido.

—Léo é um novato, dá um desconto pra ele, tadinho. E eu gosto dos estúpidos, são mais fáceis de enganar.

O resto da caminhada foi feita silenciosamente, até chegarmos numa casinha de madeira que Alex nos disse ser dele e da irmã.

—Hey, Ally, vem ver quem nós achamos!

Allison surgiu de trás de uma cortina plástica que parecia servir de porta e parou, surpresa.

—Cinco! Mallory!-Correu, juntando nós dois num abraço. -É tão bom ver vocês. -Se afastou um pouco. -Onde estão os outros?

—Na TARDIS. -Cinco respondeu. -Achamos quase todo mundo.

—Quase?

—Diego ainda não apareceu. -Fez uma pausa. -Por que estão te acusando de assassinato?

—Eu... Tive problemas quando cheguei. Foi legítima defesa, mas eles não se importaram.

—O filho da puta era filho de um ricaço da Cidade Alta. -Alex contou. -Ninguém ele mandou ele descer e vir até aqui mexer com nossas mulheres. Ele teve o que mereceu. -Joana sinalizou algo em libras. -O que? Eu achei bem feito.

—Virei fugitiva. -Allison continuou. -Esses dois me ajudaram. Estou aqui desde então.

—É hora das despedidas. -Cinco avisou. -Temos que ir e encontrar Diego.

—Certo. -Virou para Alex e Joana. -Nem sei por onde começar...

***

De volta à sala de controle da TARDIS, eu esperei Cinco levar Allison até a enfermaria para ver os irmãos, para interrogar o Doutor.

—Conheço essa cara. O que foi?

—Eu não achei nada sobre o paradeiro de Diego. -Respondeu, apoiado no console.

—Okay, vamos continuar procurando, deve surgir alguma pista.

—Eu tenho uma pista. -Franzi a testa.

—Não estou conseguindo acompanhar...

—Alguém me mandou isso. -Apontou para a tela à sua frente. Me aproximei. Havia uma foto de Diego. A imagem era ruim, e parecia ter sido tirada por uma câmera de segurança.

—É o Diego. Onde é isso?

—Lyon, França, 2041. -Cruzei os braços.

—Você disse que te mandaram essa foto... Quem mandou?

—Não sei ainda, mas vou descobrir. Enquanto vocês vão buscar Diego, vou continuar tentando achar a origem da mensagem. O que foi?

—Isso é muito estranho. Quer dizer... Quem mandaria e por quê? O próprio Diego faria isso?

—Até onde eu sei a habilidade dele é com facas.

—É. É sim. Isso tem cara de...

—Armadilha? Sim. -Assenti. -Tome cuidado. Me junto à vocês assim que possível.

—Okay.

Allison e Luther, recém recuperado, decidiram ir com Cinco e eu. Nos dividimos em duplas e seguimos para dentro do enorme complexo abandonado à nossa frente.

—Por que me escolheu?-Perguntei, caminhando ao lado de Cinco no corredor.

—Eu gosto dos meus irmãos, mas não tenho paciência pro falatório nervoso do Luther ou... -Deu de ombros. -Somos uma dupla boa o suficiente. Já resgatamos três dos meus irmãos juntos.

—Okay. Você não vai contar onde e quando estava antes do Doutor te achar?-Olhou pra mim.

—Não quer estragar a nossa parceria, quer?-Neguei com a cabeça. -Ótimo.

Cinco e o Doutor estavam mantendo em segredo onde e quando estavam. Isso me deixava preocupada e curiosa. Klaus e eu fomos enviados para uma guerra na Rússia onde quase morremos congelados. Vanya tinha sido internada à força num manicômio. Luther virou atração de um circo dos horrores. Allison era uma fugitiva e teve que matar um homem pra se defender. Havia coisas piores que esses cenários? Eu sequer conseguia imaginar o que podia ter acontecido com Cinco e o Doutor para guardarem segredo sobre o que havia acontecido com eles.

Andamos mais um pouco até Cinco parar, estendendo o braço para me barrar.

—O que foi?-Perguntei em voz baixa.

—Tinha alguém aqui. -Apontou. -Sinais de que ficaram aqui um tempo.

—Podem ser moradores de rua.

—Ou o Diego. Vamos nos separar.

—O que? E o lance da dupla “boa o suficiente”?

—Não temos tempo pra isso. Vou procurar pistas aqui. Olha no final do corredor, se Diego ficou aqui um tempo pode ser que ainda esteja na área.

—Tá legal. -Comecei a me afastar, detestando a ideia.

—Grita se precisar.

—Tá!

Eu estava com uma sensação bem ruim. Não gostava de lugares abandonados, era como se eles pudessem esconder surpresas bem desagradáveis. Andar com Cinco no complexo abandonado era fácil, ele tinha poderes e foi um assassino muito bem treinado. Eu, por outro lado, devia ser a decepção de Diego em forma de aluna. Não queria levar uma surra no resgate dele e mostrar que era um caso perdido.

—Mas do que você está falando?-Sussurrei. -Não tem ninguém aqui pra te dar uma surra...

—Quem é você?-Parei de andar. Era a voz de Cinco. -Eu não quero te machucar, então é melhor...
Som de algo quebrando. Tinha alguma coisa errada.

Dei meia volta e comecei a correr para a sala onde tinha o visto pela última vez. Ele estava lá, caído em cima de umas cadeiras velhas e quebradas, tentando levantar.

No meio da sala havia um homem todo de preto e de capuz. Ele girou quando entrei, e logo avançou pra cima de mim.

—Cuidado!-Cinco gritou.

Bom, não foi muito útil.

Desviei de alguns golpes, surpresa por ter conseguido, mas não havia tempo para comemorar, por que tinha alguém tentando, provavelmente, me matar.

Diego ainda não havia me ensinado a atacar. Ele tinha dito que era melhor aprender a me defender primeiro, e saber fazer isso muito bem antes de aprender a atacar. Queria que ele tivesse me ensinado a bater.

Cinco conseguiu levantar e correu, pulando nas costas do homem. Eu não sabia por que ele não tinha usado seus poderes, mas tinha ouvido que se ele cansasse, não conseguia usá-los por um tempo.

Era um péssimo momento para estar cansado. Mesmo tão bom em luta, Cinco não conseguiu progredir muito e logo estava sendo lançado contra a parede, onde bateu com força e não se mexeu mais.

—Cinco!-Gritei. Ele não estava morto não, não é?

O homem se voltou rapidamente na minha direção, eu provavelmente tinha o lembrado da minha presença sem querer. O movimento repentino fez seu capuz cair... E meu corpo gelar.

—Diego?

Era ele! Com certeza era. O mesmo cabelo até o ombro, a barba... Mas tinha alguma coisa errada, além de ele tentar nos matar, é claro.

—Você não nos reconhece?-Sem resposta. -É o seu irmão, Cinco. -Apontei. Ele virou para olhar o garoto. Fui rápida em tocar seu braço, enviando energias curativas, tentando de alguma maneira fazê-lo lembrar da gente. Diego encarou minha mão. -Você lembra? Sou eu, Mallory. Lembra?-Ergueu o olhar, me encarando. -Diego?

De repente o punho dele acertou meu rosto com força e eu fui pro chão. É, não tinha funcionado, ele não lembrava.

Tentei levantar, mas ele usou pé para me empurrar de volta para o chão, a bota pressionando meu estômago. Puxou uma faca do cinto.

—Sou eu!-Gritei. -Você tem que lembrar!

Ele não ia lembrar, mas eu não sabia mais o que fazer.

Ergueu a faca, pronto para lançá-la, então Allison apareceu atrás dele.

Eu ouvi dizer que você não consegue se mexer.

Diego ficou imóvel, a faca na mão e o olhar ainda em mim. Luther entrou na sala e acertou um soco no irmão, derrubando-o inconsciente.

—Você está bem?-Allison perguntou, me ajudando a sentar.

—Sim. -Murmurei, não era exatamente verdade. Meu nariz doía pra caramba e meu coração estava disparado, mas não queria preocupar ninguém.

—Eu não entendi... Por que Diego fez isso?

—Podemos descobrir fora daqui. -Cinco respondeu, ficando de pé com a ajuda de Luther. -Vamos embora antes que tenhamos mais problemas.

***

Apenas meia hora depois, o Doutor, os Hargreeves e eu estávamos na cozinha da TARDIS. Havia algumas pizzas na mesa e todo mundo estava tentando agir como se nada tivesse acontecido.

Cinco estava sentado num balcão perto da minha cadeira, uma xícara de café na mão.

—Você quer que eu te cure?-Perguntei.

—Não, estou bem. Sei lidar com a dor.

Isso foi tão sombrio que eu decidi prestar atenção nas conversas paralelas.

—Não, eu realmente quero dar uma olhada no seu guarda roupa. -Klaus dizia para o Doutor. Era bom ouvir a fala arrastada dele de novo, e saber que não era por frio extremo ou álcool. Ele tinha, como minha prima Alexia dizia, “drunk vibes”. -Um closet infinito é algo que preciso conferir.

Allison estava contando para Vanya e Luther sobre sua terrível aventura na Cidade Baixa.

Enquanto isso, Diego estava sentado em outro balcão, um pouco afastado e com a mente distante. Ele murmurou algo como “Eu já volto” e saiu da cozinha. Ninguém estava prestando atenção em mim, então levantei e fui atrás dele.

O Doutor tinha o trazido de volta ao normal, usando alguma parada psíquica que felizmente funcionou, mas aparentemente lembranças ficaram, e Diego não estava feliz por quase ter matado o irmão e eu.

—Você está bem?-Perguntei, me aproximando. Se encostou na parede de corredor.

—Não sei. -Fez uma pausa. -Eu fiz isso em você?-Apontou pro meu rosto. Meu nariz não estava mais doendo, mas tinha um hematoma horroroso nele.

—Bom, sim, mas tudo bem... Não é nada que já não tenha acontecido no nosso treino.

—Não estava tentando te matar nos treinos.

—Alguma coisa me diz que não queria me matar meia hora atrás. Aquele não era você. Eu posso...?-Apontei para o corte no rosto dele, causado pelo soco de Luther.

—Não acho que eu mereça.

—Você tem uma vibe sombria, e agora eu entendo por que seus irmãos te chamam de Batman pelas costas, mas nada disso exclui o fato de que é um bom homem, Diego Hargreeves. -Ergui o braço. -Posso?-Assentiu. Toquei o rosto dele, fazendo o corte fechar e sumir. Abaixei a mão. -Melhor?

—Obrigado. -Se desencostou da parede. -Espera, meus irmãos me chamam de que?

***

Enquanto entrávamos na mansão Hargreeves, eu tentava pensar na melhor maneira de abordar o Doutor, sobre tudo o que tinha acontecido. Queria respostas e ele ultimamente andava muito evasivo.

—Só cinco minutinhos. -Klaus pediu, ele ainda queria entrar no guarda roupa da TARDIS. -Eu prometo não roubar nada...

—Shh. -Cinco fez. -Tem alguém aqui.

Seguimos o garoto até a grande sala de estar... E paramos, pegos de surpresa.

Havia mesmo alguém na casa. E era a Babá.

—Olá, crianças. -Saudou, tinha uma xícara e um pires nas mãos. Sentada numa poltrona, parecia ser a rainha do inferno. -Estava com saudades.

—O que está fazendo aqui agora, Missy?-O Doutor perguntou.

—Vim ver como meus meninos estão. Saber se sobreviveram aos seus... Testes.

—Então foi você.

—É uma longa, longa história. Um, dois, três... Parece que não tivemos nenhuma perda. Alguém quer compartilhar sua aventura?

—Eu achava que você era esperta. -Cinco disse. -Mas vir até depois de ter sido descoberta? Por que quer tanto morrer?

—Bom saber que não perdeu seu jeito, número 5. E que recuperou seu uniforme. Ouvi falar que aquele pijama horrível coça. -Franzi a testa. -Oh, Mallory Davies, nossa número 9, aí está você. Estava me perguntando como você se sairia. Vem cá pra eu dar uma boa olhada em você.

—Não vai. -Klaus sussurrou, atrás de mim.

—Vem, garota. Eu não mordo. -Me aproximei lentamente, parando na frente dela. -Oh, você já ganhou um codinome? Todos eles têm. Space Boy, Rumor, Espírita, Kraken... Já te deram um?

—O que você quer?-Perguntei.

—Saber como está lidando com sua descoberta. Poder de cura é muito importante... Mas é perigoso.

—Por que seria?

—Oh, você não sabe? Curandeiros são alvos. Há muitos anos, os humanos notaram que não importava se ferisse um inimigo. Se ele tivesse um curandeiro muito bom, logo estava de volta. -Deu um gole no conteúdo da xícara. -Então criaram uma excelente estratégia chamada... Matem o curandeiro.

E no segundo seguinte, eu estava sangrando.

O mundo desacelerou e as coisas ficaram estranhas. O lado direito do meu pescoço doía e sangue escorria dele, ensopando meu suéter. Caí no tapete e minha visão ficou borrada.

—Mallory!-Klaus apareceu acima de mim, as mãos no meu pescoço. Havia sons de luta, mas pareciam tão distantes... -Olha pra mim, olha pra mim! Não quero ter que ver seu fantasma... Por favor... Não posso te perder também...

—Oh, tragam um curandeiro!-A Babá gritou. -Ah, ops... Acho que o curandeiro está morrendo...

—Mallory!-Pisquei, tentando focar meu olhar em Klaus, mas era difícil. Queria fechar os olhos e dormir. -Eu te proíbo de morrer, Mallory Davies! Eu te proíbo!-Pegou minha mão direita, pressionando-a contra o meu pescoço. -Se cura... Se cura!

Não havia formigamento, não havia nada, nada além do meu corpo ficando mais leve, dos sons ficando mais baixos... Eu estava morrendo.

—Se cura!-Klaus gritou. Queria dizer pra ele que não conseguia, mas que tudo bem... Não era culpa de ninguém e ele ia ficar bem. -Por favor, eu preciso de você...

—Aguenta firme, garota. -Allison pediu, se abaixando ao lado de Klaus. -Você vai ficar bem...

—Usa o rumor nela. Diga que ela pode se curar...

—Klaus, eu não sei se...

—Diz!-Allison se inclinou na minha direção.

Eu ouvi dizer que você consegue se curar.
Isso provavelmente teria resolvido tudo. Tentei acreditar que resolveria... Mas nada aconteceu. Klaus soltou minha mão e abaixou a cabeça, chorando contra o meu peito. Eu mal podia ver agora.

—Você consegue... Você consegue se curar. -Soluçou. -Por favor... O que?-Ergueu a cabeça de repente.

—O que foi?-Allison perguntou.

—Ben disse... Mally, olha pra mim. -Segurou meu rosto com as duas mãos. -Me use. Me use como uma fonte de energia. Você pode pegar... É tipo... Sei lá. Você consegue. Seu poder é sobre vida... Você pode usar a energia da minha. Por favor... Você está me ouvindo? Mallory... -Pegou minhas mãos, colocando-as em seu rosto.

Fechei os olhos. Eu estava tão cansada. Não tinha medo, não tinha energia pra isso. Só sentia que não havia mais luta. Eu ia morrer com um milhão de coisas inacabadas... Mas não havia o que fazer.

De repente, senti um pequeno choque nas palmas das mãos. Não conseguia mais ouvir nada, nem Klaus, nem sons de luta, nada, como se o mundo tivesse sido posto no mudo.

Então, todos os sons voltaram com força total e eu estava respirando fundo, o pescoço formigando.

—Você conseguiu. -Klaus sussurrou. -Você conseguiu!-Me ajudou a sentar, me esmagando num abraço.

—Ora, ora. -A Babá disse. -Seus poderes estão evoluindo depressa, número 9. -Os outros se aproximaram, vários inimigos caídos no chão. Klaus e Allison me ajudaram a ficar de pé. O Doutor olhou pra mim, então encarou a mulher de roxo. -Olá de novo. Vocês parecem um pouco irritados...

—Já chega, Missy. -O Doutor interrompeu.

—Por que você está sempre sendo um estraga prazeres? Eu estou dando um propósito para esses jovens. Passaram a infância sendo importantes, amados, idolatrados... Tinham um objetivo. Quem são eles hoje?-Começou a apontar pra gente. -Só venceu na vida por causa dos poderes, estresse pós traumático, complexo de herói, depressiva, viciado, inútil, insegura... É deprimente. Vocês precisam de mim, tanto quanto precisavam do velho Reginald. Não tentem me dizer o contrário.

—Você não pode e não tem o direito de...

—Blá, blá, blá. Você sempre pode tudo, sempre tem o direito de fazer tudo, mexer na minha do tempo, mudar a vida das pessoas, é sempre tudo sobre você!-Largou o pires e xícara numa mesinha ao lado da poltrona. -É minha vez agora, e se tentar me impedir... Bom, pode haver um destino pior do que... -Então uma faca voou e se fincou no peito dela.

Imediatamente todos viraram para Diego, sabendo que ele era o responsável.

—O que?-Perguntou. -Vocês teriam feito o mesmo. -O Doutor parecia discordar, mas pela primeira vez desde que o conheci, ele estava sem palavras.

Nos voltamos para a Babá, que arrancou a faca e a jogou no chão.

—Isso foi muito rude, número 2. -Avisou, a voz trêmula.

Eu não sabia se devia tentar curar a pessoa que quase causou a minha morte e das pessoas próximas à mim, mas não precisei decidir, pois, no segundo seguinte, a Babá sumiu.

—O que você estava pensando?-O Doutor perguntou, virando para Diego.

—Em acabar com a vadia. -Ele respondeu. -Ela quase nos matou, todos nós, e teria feito de novo.

—Bom, ela vai tentar de novo. Acredite em mim: não acabou.

—Ótimo, posso ser mais criativo na morte definitiva dela. -Eu sabia que era sério e isso me causou arrepios. -Mais alguma objeção?-Klaus ergueu a mão -Você?

—Eu não tô bem. -O número 4 disse, antes de desmaiar.

—Ah, ótimo.

***

Klaus desmaiou de exaustão, como o Doutor disse logo depois. Luther o carregou para cima e eu ajudei a deitá-lo na cama. Doar sua energia para que eu pudesse me curar tomou muito dele, que tinha passado por uma quase morte no mesmo dia.

—Um desmaiozinho e todo mundo surta. -Zombou. -Já passei por coisas muito piores.

—Bom, vamos evitar acréscimos nessa lista, okay?-Sentei na beirada da cama.

—Gostei da ideia. Você tá bem?

—Sim. Tive uma perda considerável de sangue, vou ter alguns pesadelos e possíveis traumas novos, mas estou bem. Tomar um banho e me entupir de chá foi uma boa ideia.

—Chá? A gente precisa de algo mais forte... -Tentou levantar.

—Pode parar aí mesmo. Você não vai sair dessa cama até aparentar estar melhor.

—Eu estou melhor.

—Não me convenceu. -Fez uma careta.

—Reginald Hargreeves, é você?

—Muito engraçado. -Suspirou dramaticamente.

—Tá bem, tá bem, você venceu. Mas quero ser subornado.

—Ah, é?

—É. -Afastou a coberta. -Vem pra cá.

—Eu posso ficar no chão dessa vez.

—Nop, vem pra cá.

—Você é tão irritante. -Tirei o tênis e deitei ao lado dele.

—Se eu ganhasse um dólar toda vez que ouvisse isso... Seria o homem mais rico do mundo.

—Aposto que seria.

Fechei os olhos e pela primeira vez em dias... Dormi perfeitamente bem.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.