“Um pouco de você, me basta para sair da realidade…

porque nada se aproxima do que você me dá…”

Despertou sentindo-se febril. Mas não quis incomodar o outro que dormia tranquilo ao seu lado. Levantou-se, vagarosamente, tomaria algum remédio e iria para ajudar Kawamoto-san, o trabalho não era pesado, e a febre não iria atrapalhar depois da medicação. Seguiu para o banheiro, ainda ouvindo o som da chuva mais cada vez mais abafado, sinal de que estava parando.

— Bom, na chuva não vou ter que sair novamente. - sorriu encarando o espelho, notando as bochechas coradas pela febre, pegou o remédio, tomou sem pensar duas vezes, lavou o rosto e seguiu para o quarto de hóspedes, pegando suas roupas mais apresentáveis. Vestiu-se sem cerimônias, ajeitou o cabelo, e seguiu para sua atividade.

Tentou sair o mais silenciosamente possível, para não despertar o mais velho. O corredor dos apartamentos estava vazio, achava curioso não ouvir os vizinhos, embora soubesse que todos os apartamentos estavam ocupados.

Desceu as escadarias, e logo alcançou a rua, agora mais movimentada, com alguns estudantes seguindo, abrigados em guarda-chuvas passando rapidamente para alcançar a escola que havia pelas redondezas.

A vizinhança era acolhedora, sentia-se melhor só de ver o redor. Toshiya havia escolhido um bom lugar para estar.

— Sabe, eu realmente quero ficar aqui…. - olhou para o céu nublado, e sorriu levemente, mas por alguns segundos, a feição ficou tão triste, e voltou o olhar para baixo, para as próprias mãos, como se houvesse algo ali. Afastou os pensamentos ruins e continuou a caminhada.

Seguiu por todo o quarteirão rapidamente, chegando à esquina onde era a pequena mercearia, vendo a Kawamoto-san já com a loja aberta, organizando os salgadinhos expostos na frente;

Lhe acenou se aproximando rapidamente, fugindo da garoa fria.

— Oh, que bom que voltou! - ela sorriu. - E seu amigo, está melhor? - fez sinal que ele entrasse rapidamente para loja, o que ele fez rapidamente. Ajeitando-se e sacudindo o cabelo levemente umedecido com a garoa fina.

— Ah, sim, ele ficou bem. - sorriu, parando ao ver que a mulher se aproximou preocupada, tocando seu rosto brevemente.

— Está queimando de febre, devia ter ficado descansando - soou como se estivesse falando com uma criança pequena, o que fez com que ele sorrisse brevemente.

— Não se preocupe, já me mediquei. - afastou-se - Fomos dar uma volta ontem, para arejar as ideias, e acabamos na chuva por um tempo. - riu.

— Tem certeza que irá ficar bem? Pode ir para casa se estiver muito cansado. - disse suavemente. - Sabe que não tem muito trabalho aqui.

— Vou ficar bem, Kawamoto-san. - se ajeitou, e iniciou a organização, começando a varrer a em frente ao balcão.

Fez a tarefa rapidamente, e a febre começava a incomodar, mas decidiu que ficaria até o fim do expediente, já que não queria deixá-la sozinha por mais um dia. Kawamoto-san havia sido tão gentil de aceitá-lo como um ‘funcionário’ e sem perguntas deixar que ele já não cumprisse um dia, e não queria fazer isso pela segunda vez.

Sentou-se ao lado do balcão, a vendo preenchendo palavras cruzadas, enquanto seu rádio tocava alguma música pop.

— Ishihara-kun, tem algum apelido? - ela disse depois de alguns minutos em silêncio.

— Ah, sim, Miyavi. - riu, levemente. - Ou Taka-chan.

— Miyavi soa bem, nome de artista. - a mulher divagou, fazendo o rapaz rir.

[...]

Estava tentando fingir que não sentia uma exaustão pela febre que não passava, mas continuava atento a história que a Kawamoto-san lhe contava, sobre como decidiu comprar a loja e cuidar dali já no auge de seus cinquenta anos.

Sorriu ao notar que Toshiya entrava na loja, trazendo consigo um bentô, a senhora se ajeitou, curiosa com a presença desconhecida.

— Demorei para ter certeza de onde vir. Acho que está na hora do almoço. - se aproximou, notando o olhar da mulher sobre si. - Prazer em conhecê-la, sou Toshimasa. - fez uma reverência.

— Toshi? Hum… desculpa, não falei onde era a mercearia… - murmurou o mais novo - Essa é a Kawamoto-san. - apontou para a mulher.

— Oh, muito prazer em conhecê-lo, o Ishihara-kun disse que ontem você não se sentia bem, está melhor? - sorriu

— Ah, estou bem melhor sim, obrigado por perguntar. - disse observando melhor Miyavi que parecia bem disperso, se preocupou e se aproximou mais do mais novo.

- Acho que temos um teimoso aqui, está com febre e claramente não está bem, insistiu para ficar aqui e me ajudar. - a mulher disse, fazendo com que Miyavi notasse que estavam novamente no assunto de sua febre.

— Eu vou ficar bem, não se preocupe. - sussurrou.

— Não… você precisa ir para casa, não se preocupe, consigo levar o restante do dia sozinha.- a mulher saiu do balcão, sutilmente segurando as mãos do rapaz, e o fazendo se levantar. - Seu amigo irá levá-lo para casa e cuidará de você. Quando estiver melhor, volte para me fazer companhia. - Kawamoto-san sorriu .

Toshiya segurou o outro pela mão, sentindo a temperatura alta do mais novo.

— Irei cuidar dele sim, Kawamoto-san, obrigado pela preocupação - disse o sentindo encostar o rosto em seu ombro, finalmente se dando por vencido, e demonstrando todo o cansaço. - Espero que isso não a atrapalhe.

— Não se preocupe… hum, aqui o número do meu telefone, caso precisem avisar algo. - a mulher entregou um pequeno cartãozinho.

— Obrigado, Vou deixar meu numero aqui para a senhora, caso queira conversar com ele. - Toshiya se aproximou do balcão anotando o número num papel que estava ali.

— Fiquem bem rapazes! Obrigada pela companhia! - a mulher sorriu, Toshiya acenou, e com cuidado guiou o outro para fora do estabelecimento.

Depois de caminharem alguns minutos, já avistando o velho prédio, o mais velho retomou a conversa.

— Não devia ter saído com febre. - disse em tom preocupado.

— Tomei um remédio, achei que ia passar. - murmurou - Quero dormir agora.

— Primeiro você vai tomar um banho para baixar a febre, e depois você dorme. - disse levemente ‘autoritário’, o fazendo rir.

— Tá bom… - murmurou.

Seguiram em silêncio, e Toshiya parou no corredor ao avistar alguém parado em frente ao apartamento, a figura vestida como um salaryman, de cabelos curtos e escuros, penteados para trás, e parecendo estar ali impaciente.

- Miyavi… fique aqui… - o fez encostar na parede, e se aproximou da pessoa. Reconheceria aquele ar debochado de qualquer distância, podia sentir a raiva aumentando em si, mas iria se controlar, o máximo possível, para não causar problemas com vizinhos, e não colocar o Miyavi numa situação que não entenderia. - O que está fazendo aqui, e quem te deu o meu endereço? - falou alto, fazendo com que o homem se virasse e o encarasse com desdém.

— Irmãozinho. - sorriu cínico. - Consegui, afortunadamente, o seu endereço com o estúdio que trabalha, foi um pouco difícil encontrá-los e convencer que era seguro.

— Não vou conversar com você. Não temos nada para dizer e você não é bem-vindo aqui! - Toshiya aumentou o tom de voz novamente.

— Não pode simplesmente causar o caos na sua família, e ir embora como se nada tivesse acontecido. - apontou, acusador.

Toshiya apenas o encarou em silêncio, estava furioso, e poderia dar um soco nele sem pensar, mas tinha que se controlar.

— Tem dez segundos para sair da minha frente. - apontou para o corredor.

— Só saio depois de conversarmos. - insistiu, parecia querer contar algo, mas Toshiya não tinha a mínima vontade de saber o assunto.

— Não quero conversar com você. Estou ocupado. - se afastou voltando até Miyavi que observava tudo em silêncio, o trazendo para perto do apartamento, afastando o irmão com o braço e abrindo a porta , e entrando com o mais novo sem cerimônias, fechando a porta, impedindo que o irmão o seguisse.

— Toshimasa, abra essa porta, eu sou seu irmão mais velho, você deve me respeitar! - bateu na porta ao ouví-la ser trancada. Toshiya ignorou, levando o outro para o quarto.

— Myv, tá ok? Está bem? - soou preocupado com o silêncio do outro.

— Estou bem… não se preocupe… só … Seu irmão foi o motivo de ter ficado daquele jeito no outro dia?

— Uma história complicada…. - resumiu - Vá tomar um banho, já volto para cuidar de você. - beijou a testa do mais novo, saindo rapidamente do quarto.

Miyavi permaneceu em silêncio. Ouvindo a porta principal ser aberta novamente.

[...]

Toshiya encarou o irmão novamente, odiava ter que sempre lidar com as voltas repentinas que sua família fazia. Como o caçassem em qualquer lugar que estivesse. Não importa o quão longe fosse.

Sempre tinha que reviver as mesmas acusações, as mentiras inventadas, e sofrer por não acreditarem em seus traumas. Já eram anos naquela ladainha.

Aquilo voltava e voltava, e o jogava sempre na mais profunda escuridão e desespero.

Encarou o irmão, fazia meses que não o via, e queria que mais meses se passassem, não queria ter que mudar novamente de cidade para se livrar da sua família.

— Já o mandei embora. Não tenho tempo nem paciência para lidar com suas acusações.

— Você não tem o direito de viver como se não tivesse causado um estrago na família! - o irmão mais velho lhe apontou o dedo mais uma vez.

— Eu estraguei? Eu estraguei a família? - riu amargo. - Não me venha com piada, eu tenho muito mais o que fazer, vocês que se resolvam e façam como sempre fizeram, finjam que eu não existo, que eu não passei por nada, estou apenas sendo um lunático… - parou, as lágrimas enchiam seus olhos, mas não as deixaria cair. . - Por causa daquele lá. Lidem com ele e com a proteção que deram para ele.

— Nosso pai está doente, e tendo que lidar com o falatório que ficou na vizinhança. - disse. - Estamos isolados e sem recursos o suficiente para manter…

— Não me importo! - riu debochadamente, tentando disfarçar a crescente dor em seu peito. - Não me importo! Foi o que ele me disse quando precisei dele…. Ele que lide com os problemas dele. Saia da frente do meu apartamento, e pare de me perseguir, eu não quero contato com mais nenhum de vocês; ME ESQUECE! - gritou batendo a porta, e a trancando novamente.

Respirou fundo, encostando o rosto na porta. Teria que dar explicações pelo barulho para os vizinhos, mas pensaria em uma desculpa depois, precisava se acalmar, e voltar para cuidar do outro.

Não percebeu o tempo que ficou parado ali, até que sentiu as mãos do Miyavi em seus ombros.

— Totchi… Quer conversar? - sussurrou.

— Não… não é momento para isso, e eu preciso cuidar de você. - se virou encarando o outro, ainda com a face corada pela febre. Se aproximou selando seus lábios brevemente. - Vamos, vou preparar um chá para você… - o segurou pelas mãos e o levou até a cozinha.

Miyavi o observou, sabia que o mais velho estava lutando para aguentar sem decair na tristeza, podia sentir a sua frustração e raiva.

Toshiya fez tudo em silêncio, servindo rapidamente o chá para o outro, que ainda o observava ternamente. O mais velho sentou-se à sua frente, ainda em silêncio.

Miyavi tomou o chá, e se levantou, deixando a xícara na pia, e sendo seguido por Toshiya que o levou para o quarto.

— Agora precisa dormir um pouco, vou buscar um antitérmico para você; - se afastou assim que o mais novo deitou na cama, exausto.

— Você vai ficar aqui comigo? - resmungou, se ajeitando.

— Sim, vou ficar do seu lado. - respondeu rapidamente, saindo do quarto sem alongar a conversa.

Voltou tão rápido quanto saiu, oferecendo o remédio e água para o mais novo, que aceitou sem dizer nada, tomando e fazendo uma careta. Toshiya se sentou ao lado do mais novo, que se ajeitou apoiando-se no colo dele, não demorando a adormecer.

O mais velho apenas deslizou os dedos pelo cabelo do outro, numa carícia inocente.

Era a única paz que tinha.

(...)

Miyavi despertou, sentindo-se melhor. Notando que o mais velho estava ali, ainda em silêncio, encarando a parede, perdido nos próprios pensamentos.

— Totchi… - chamou, vendo voltar o olhar para ele, e sorrir levemente.

— Já está melhor? Precisa de algo? - prontamente respondeu, vendo Miyavi se sentar na cama.

— Sim, obrigado. E você? - disse o mais novo, já se ajeitando, recebendo um beijo no rosto.

— Vou sobreviver… um pouco mais quebrado, mas nada mais que um remendo novo. - disse em tom baixo.

Miyavi parou por alguns segundos, pensando se dava continuidade a conversa naquele assunto. Não queria que o outro se sentisse ainda pior, mas também não queria deixar que pensasse que não se importava.

— Seu irmão foi embora? - disse ainda em tom baixo.

— Da frente do apartamento sim, mas da cidade, eu não sei... Não quero me mudar mais uma vez. - Toshiya bagunçou os próprios cabelos, como se quisesse afastar o pensamento sobre ter que sair da cidade.

— Sinto muito que seja assim. - Miyavi o abraçou. - Sabe que estou aqui…

Toshiya apenas se encolheu no abraço, ficando longos minutos em silêncio. Sentindo o toque do outro em torno de si;

— Eu devia ter meus 14 anos….Eu era só uma criança… - sussurrou depois de longos minutos. em silêncio - Só tive coragem, algum tempo depois… e busquei ajuda… a minha família me considerou um mentiroso, e eu tinha que continuar ali, morrendo todos os dias, lembrando daquilo e com medo de que se repetisse, quando pude sair dali, foi a primeira coisa que fiz, não sem antes expor a todos ali o que tinha acontecido... e desde então isso me atormenta, parece que eu morro toda vez… Toda vez volta. Por que toda vez eles me encontram e me acusam de mentir - deixou as lágrimas caírem, sentindo Miyavi o abraçar mais forte.

— Nada mais irá acontecer… está seguro aqui… - Miyavi não tinha palavras certas para o mais velho.

Era a pior situação que poderia imaginar, e saber que sua família simplesmente ignorou sua dor.

Apenas continuou quieto ali, o abraçando fortemente. Ouvindo os murmúrios do outro, tentando conter seu próprio choro.

[...]