"Eu sei que é difícil" ela diz, colocando sua prancheta para baixo.

A janela mostrava a chuva do lado de fora, as pessoas circulando com seus guarda chuvas. Alguns corriam, segurando os pequenos pulsos de crianças inocentes e molhadas. Alguns se divertiam com a chuva, rindo ao correr para um toldo que protegia uma loja de usados. Fácil demais, essa felicidade. Eles riam alto, os pingos de água caindo pelos cabelos grudados na testa. Um casal se beijava na chuva. Uma criança apontava. Eu já fiz isso, beijar na chuva. Não deixo a lembrança chegar, porém. Iria doer.

Mais ainda.

"Ryan," a mulher diz, "não adianta nada ficar parado olhando para a rua. Você tem que desabafar. Conte-me como está se sentindo, para começar"

"Como eu me sinto? Sério? Como você acha que eu me sinto?" eu grito, fixando os olhos na mulher, que tinha uns quarenta anos, um terno vermelho pequeno demais para ela. Seu cabelo estava preso em um coque, aumentando seu tom autoritário.

"Não sei como você se sente, realmente. Esse é o momento de você falar" ela diz sem mudar a expressão.

Eu olho para a janela novamente, contando as gotas no vidro na minha cabeça. "Eu não quero falar sobre meus sentimentos" eu digo, sem tirar os olhos da janela. A poltrona de couro fazia um som irritante toda vez que eu me mexia, e com certeza a mulher, Elisa, também deveria achar. O chá que ela havia servido estava intocado na pequena mesa ao meu lado, o vapor ainda se formando da pequena xícara.

Ela solta um suspiro. "Tudo bem. Vamos falar dos momentos bons. Qual o primeiro que você consegue se recordar?"

"Eu... Não sei"

"A gente precisa dele"

"Mas eu não sei, Spencer..."

"Dá uma chance. Dá pra pelo menos conhecer ele?" Spencer cruza os braços, erguendo uma sobrancelha.

Eu faço uma cara de reprovação. "Eu não vou cuidar do mascotinho da banda"

"Nunca te pediria isso"

Atravessamos a sala, entrando na garagem do pai do Spencer. Lá estava ele, com uma camiseta pequena demais, um jeans feminino, os olhos brilhantes por trás dos óculos e um violão em mãos.

"Ryan, Spencer! Esse é o Brendon!" Brent diz, apontando para o menor.

"Uh... Oi!" ele diz. Ele até é fofo, eu tenho que admitir.

"Você se acha apto para o trabalho?" eu pergunto secamente, e sinto Spencer lançar um olhar para mim.

"Eu posso fazer qualquer coisa. Eu juro que vou me dedicar. Eu vou me comportar. Eu juro. Juuuuro" ele diz com um pequeno sorriso, os olhos brilhando.

Ele era fofo.

"Tudo bem. Podemos começar, então" eu digo, erguendo a mão para o menor.

"Muito obrigada, Ryan" ele diz enquanto aperta a minha mão, um sorriso largo nos lábios.

Eu não pude deixar de sorrir de volta.

"Eu preciso ir" eu digo e me levanto da cadeira barulhenta.

"Nós nem começamos! Você precisa disso, Ryan"

"Foda-se" e a porta estremece.

Minha mão treme no volante, a confusão colorida de carros na chuva só me deixando mais desnorteado. Já faz duas semanas, eu devia estar melhor. Eu pensei que podia ir pra casa, sossegar. Uma psicóloga é uma boa ideia, eles disseram. Você vai se sentir melhor, eles disseram.

Se isso é se sentir melhor, eu não quero mais sentir.

Eu ligo o rádio, aumentando o som da emissora que tocava músicas dos anos sessenta.

Um sinal vermelho.

"Nós sabemos que nossa rádio é um tanto generalizada," o locutor começa, "mas, em memória a um grande músico que faleceu há pouco tempo atrás, aqui está I Have Friends In Holy Spaces, do Panic At The Disco, em memória a Brendon Urie"

Não. Já haviam prestado luto. Duas semanas. Não era justo.

You remind me of a former love that I once knew

Eu olho para o rádio, a voz ecoando pelo carro. A melodia, era a melodia dele. E logo essa música, pelo amor de Deus! Era a música dele.

Eu sinto lágrimas se formarem no canto dos meus olhos, mas me recuso a deixá-las ir. Eu não poderia ser fraco.

Depois de ter passado metade da música somente que eu noto que estava trancando todo o tráfego. Eu acelero e faço o retorno para o consultório, o som no fundo ainda tocando.

Hey Moon

-


"Então, vocês se conheceram por causa da banda?" ela anotava no papel amarelo.

"Sim"

"E vocês ficaram muito tempo juntos. Vocês eram bons amigos?"

"Sim"

A poltrona faz um barulho.

"Quer me falar mais de como era conviver com ele?"

Eu suspiro, olhando para as tatuagens nos meus pulsos. "Ele era feliz, até demais. Ele nunca ficava triste. Ele era o mais elétrico e idiota e honesto da banda"

Ela assente e escreve mais alguma coisa.

"Vocês se separaram, não é? Faz quanto tempo?"

"Três meses, oficialmente"

"Nesse meio tempo, vocês se falaram?"

A poltrona faz outro barulho.

"Não sei no que isso vai ajudar"

"Ah, vai. Tudo que você me contar vai ajudar"

Eu suspiro. "Nós brigamos, antes. Eu não podia falar com ele. Meu orgulho não deixava. Eu... Eu não queria ter discutido com ele. Se eu soubesse que-" eu me cancelo, olhando para baixo.

"Você se sente culpado?"

Eu hesito, e a cadeira faz outro barulho.

"Muito"

***

Era impossível ver TV, ou escutar rádio, ou entrar na internet. Tudo era o Brendon. Mensagens de fãs. Vídeos sobre ele. Especiais sobre a banda. Ligações me pedindo para falar sobre o assunto. Músicas sendo tocadas repetidamente. Mensagens de amigos que sentiam muito. Avisos de turnê cancelados. Fãs chorando, algumas me xingando.

Eu não podia culpá-las.

Era madrugada, e eu lia um livro perto da lareira, um copo de uísque vazio em mãos. Eu pego a garrafa, percebendo só depois que já estava vazia. Eu deveria comprar mais. Eu poderia ir agora naquele bar aqui-

Eu tropeço no tapete, perto da lareira. O fogo se apaga bruscamente, e uma brisa fria passa por minhas costas nuas. Eu me curvo, sentando e esfregando uma mão na outra, quando vejo um vulto preto no corredor, em direção à cozinha.

É a última coisa de que me lembro.

***

A luz finalmente passa por meus olhos sonolentos, trazendo a dor de cabeça que eu já esperava vir. Eu enxergo a lareira fria, uma garrafa e fios de cabelo que estavam por toda a minha face. Depois de um tempo cogitando se eu deveria levantar ou não, eu escuto uma batida na porta.

Um pé atrás do outro, Ryan. Aqui é o seu corredor. O degrau. Você pode começar a enxergar propriamente, tipo, agora.

Keltie estava do outro lado da porta, com Hobo em um braço, um sorriso falso no rosto. Ela usava um casaco cinza, apertado na cintura, e um salto alto que a deixava maior do que eu. Sua expressão muda no momento em que ela me vê.

"Keltie?"

"Eu vim... Uh, trazer a Hobo. Nós conversamos, lembra? Ela vai... Te fazer companhia" ela estende o cachorro para mim.

"Sim, é. Tudo bem" eu sinto a Hobo se revirando em meus braços, seu calor se transportando para meu corpo.

"Ry, se você precisar de ajuda..."

"Obrigado, tá tudo bem"

"Sei" ela diz e abaixa o olhar para seus sapatos. "Vou indo, então"

A porta se fecha, e somos só eu e Hobo na imensa casa rústica. Ela se acomoda em meus braços.

Eu me sento no sofá, a dor martelando a minha cabeça. Eu deveria parar de beber, ou nunca parar.

Eu passo uma das mãos que não estavam segurando a cadela pelo o meu rosto. Eu não deveria me sentir assim, na realidade. Ele fora, sim, uma grande parte da minha vida, porém eu poderia estar exagerando. Eu deveria continuar com a minha vida, com a minha banda nova. Eu poderia.

Eu poderia, se tudo não me lembrasse do passado.

Eu estou preso.

***

A água quente do chuveiro caia sobre meus ombros, massageando-os e me relaxando. Eu fecho a torneira, passando a mão pelo rosto. Aquilo havia me deixado mais calmo, de certo modo. Água quente, quem diria.

A toalha cobre a minha cintura, e eu ainda sentia as gotas escorrerem pelo o meu peito. Por um instante, eu esquecera o motivo da minha tristeza. Talvez o prazo de validade dos meus sentimentos tenha vencido.

A minha pia estava coberta com remédios abertos, papéis de bula e embalagens vazias, além da escova de dente abandonada e um copo vazio. Eu decido tratar da minha higiene, já que esse rompante de sobriedade emocional tinha acontecido.

Eu pego a escova e começo a escovar, o sabor da menta chegando no meu céu da boca. Aquilo era bom. Eu estava fazendo um bem a mim mesmo.

Eu olho para o espelho embaçado, logo notando algo diferente. "Puta que-" eu digo antes de tombar para trás com surpresa, a toalha caindo nos meus pés descalços. Nesse instante, as luzes se apagam, mas eu ainda conseguia lembrar o que li no espelho.

Ainda estava escrito, no meio da escuridão, com letras familiares e um coração em baixo, as palavras 'Northern Downpour'.

***

Logo depois de correr pela casa sem roupas, procurando uma vela e um isqueiro, e voltando ao banheiro para constatar o que havia acontecido, eu me senti um idiota. Não havia nada lá, só traços de pasta dental que eu tinha espirrado acidentalmente. É tudo na minha cabeça.

Agora eu estava sentado na sala, na frente da lareira, tomando uma taça de vinho e olhando para o fogo. Hobo estava do meu lado, olhando para um ponto fixo na parede. Ela parecia feliz, e eu a deixo fazer o que seja lá que fosse. As velas estavam colocadas em vários cantos da casa, já que a previsão do retorno da luz era no dia seguinte, segundo o cara da rádio. Eu odiava ficar sem enxergar direito, mas ao mesmo tempo eu me pergunto se queria enxergar. Se eu queria continuar nessa utopia de que eu estava bem. Pelo menos no escuro eu poderia me esconder.

Uma brisa fria e repentina passa pelas minhas costas, me fazendo encolher e esfregar uma mão na outra, procurando calor. Uma vela se apaga. Ótimo, eu vou ter que ir tropeçando até ela e acender de novo. Ou não. Tanto faz, eu penso definitivamente enquanto me jogo nas almofadas do chão.

A Hobo começa a latir no meio da escuridão para a vela que tinha se apagado com o vento. Cachorra burra.

"Hobo, junto" eu digo com a voz mais autoritária que consigo achar dentro de mim. Ela não obedece, no entanto. Ela permanece latindo para o nada, começando a ficar sem ar. Eu rastejo até perto dela, colocando a mão na sua cabeça.

Ela não para, agora atravessando a sala com os olhos. Outra vela se apaga, e outra. A cadela estava quase explodindo suas cordas vocais, e eu admiti para mim mesmo que não sabia o que estava acontecendo. O vento frio passa por mim novamente, e eu me encontro na escuridão. A única coisa que iluminava o ambiente era a lareira, porém o fogo estava fraco e quase se apagando. Eu chego mais perto dela, procurando calor. Ao me virar pra procurar a cadela, eu vejo uma forma um pouco indefinida, porém familiar um pouco mais a frente.

RYAN

E as luzes voltam a funcionar.