Cursed

III - Baile


III

Eu não sei em que parte do meu lindo sonho com cogumelos encantados se transformou em uma caverna nebulosa e escura, iluminada por luzes fantasmagóricas avermelhadas vindas de lugar nenhum. Eu sabia conscientemente que estava sonhando, mas isso não impeliu a aflição em estar dentro daquela caverna esquisita e misteriosa. Também não diminuiu o pavor que arrepiou meu eu do sonho dos pés a cabeça quando escamas vermelhas e pontudas, protuberantes e afiadas, surgiram rápido de mais em minha frente.

Um dragão, colossalmente gigante. Muito, muito, maior do que eu. O rosto triangular pedregoso, cheio de dentes afiados, narinas infladas e gigantescos olhos rubros. Encarei o par de olhos que parecia quase brilhar e, para minha surpresa, não senti mais medo. Não senti mais nada. Apenas um vazio oco e aquele vermelho luminoso dos olhos do dragão.

Por algum instinto íntimo, provavelmente guiado por minha curiosidade sem escrúpulos, ergui em um movimento absolutamente lento e cauteloso a mão esquerda na direção da cara enorme – praticamente do meu tamanho – do dragão carmesim. Vi suas pupilas negras horizontais se voltarem para minha mão em movimento e sua enorme boca abriu-se, igualmente lenta e apenas um centímetro. Parei de me mover no mesmo segundo, nem ousava respirar.

De todas as coisas que eu esperaria que pudessem acontecer, como eu ser engolida ou grelhada por exemplo, uma das últimas na lista macabra foi que ele falasse. Ou algo parecido com isso.

“Meu filho.”

A voz parecia estar dentro de minha própria mente. Apesar de o sonho inteiro estar dentro de minha mente, se faz algum sentido. A voz era macia apesar de grave, aveludada. Não combinava em nada com a imagem ferina e pedregosa do gigante dragão a minha frente.

E em um piscar de olhos, o enorme dragão tornou-se um corvo. O mesmo que vira no dia anterior. Exatamente o mesmo. Ele grasnou, de alguma forma graciosamente elegante. Eu não sabia nem o que pensar. Só conseguia pensar que realmente, era um sonho. Toquei meus olhos com as mãos, os fechando com força.

E então eu acordei, abrindo os olhos com dificuldade para o habitual teto branco envelhecido de meu quarto. Como todas as outras manhãs. Suspirei aliviada por ser apenas um sonho e por eu tê-lo tido dormindo desta vez.

Espreguicei-me demoradamente, observando a luz do dia adentrar pelas frestas da cortina e tateei cegamente o móvel de cabeceira, tentando não me mover muito do meu ninho de edredom, procurando meu celular. Quase o deixei cair, como sempre, mas o joguei no colchão a tempo. Ignorei as notificações, a vista ainda embaçada, e foquei na hora. Quase meio dia. Suspirei de alivio por ter conseguido descansar, apesar do sonho doido.

Decidi que já estava em um horário bom o suficiente para eu começar o dia e me levantei calmamente da cama. Fiz minha higiene matinal, percebendo ao me olhar no espelho que as olheiras em baixo dos olhos tinham aparência mais amena. Mas algo na cor de meus olhos me fez esfrega-los um pouco, incerta se estava enxergando bem. O usual castanho escuro parecia um pouco mais claro, como algum tipo de reflexo ou luminosidade no habitual castanho escuro. Lavei-os e esfreguei e a impressão diminuiu. Então presumi que deveria ser apenas um efeito da luz.

Penteei meu cabelo que estava de bom humor hoje, assim como eu, e vesti roupas casuais já que não pretendia sair de casa. Desci as escadas cantarolando, ainda de meias, e encontrei vovó sentada na pequena mesa de madeira da cozinha.

— Bom dia, vó!

— Bom dia, querida! Acordou de bom humor hoje. Bons sonhos? — perguntou me observando preparar o café da manhã de sempre: café preto e granola.

— Não exatamente. — Eu ri lembrando do sonho. — Acho que cogumelos mágicos e dragões transformando-se em corvos não se encaixaria perfeitamente em bom. — Eu disse em um tom brincalhão, sentando-me a mesa com ela.

— Ah, isso é bom sim. — Era a voz de Alastair. Me estiquei na cadeira para olhá-lo estirado no sofá da sala. — Comparado aos outros dirigidos pelo próprio Stephen King que você tem às vezes... — Ele disse sarcasticamente, sorrindo implicante para mim.

Mostrei a língua para ele e comi minha granola feliz, aliviada pelo peso de ontem não estar mais em minhas costas. Ousaria dizer até que pareciam distante, todas as preocupações sobre meu suposto destino em um sanatório.

A semana passou tranquila e regularmente, um dia de cada vez. Como tinha de ser. De vez em quando a ideia de Henry e o baile se misturavam em meus pensamentos e, mesmo evitando, me perguntava se receberia ou não um convite dele. Também refleti mais sobre se realmente deveria aceita-lo ou não, lembrando-me de seu último telefonema esquisito e sobre o concelho – cujo qual eu concordava cem por cento, ainda mais depois da “alucinação” – de Sara.

Talvez apenas estivesse sendo um pouco exagerada com isso. Era apenas um baile. Além do mais, ele nem havia feito um convite ainda e sábado estava cada dia mais próximo. Parte de mim, devo admitir, estava aliviada com isso. A parte – agora pequena – que lembrava com veracidade sobre o devaneio.

Eu já tinha desistido da ideia de que ele ligaria novamente e planejava com Alastair a ida com ele e com Anna. Mas para minha surpresa, na tarde de quinta-feira, Henry me telefonou:

— Sei que está muito em cima — Ele disse. — mas se ainda estiver disponível, gostaria de ser minha parceira de dança?

— Claro, eu adoraria. — Respondi depressa de mais. O que eu poderia fazer? Meus hormônios adolescentes saltitavam eufóricos dentro de mim, ok? Eu apenas os obedeci. Ele riu da minha prontidão.

A pequena parte de mim não ficou tão contente assim, reforçando em minha mente o conselho de Sara e o que eu mesma havia sentido antes até do lapso de memória do pesadelo – que eu agora evitava o máximo que conseguia chamar de alucinação – com sua primeira ligação. Mas é claro que eu a ignorei, eu não queria que ela estivesse certa.

— Te busco as nove então.

— Estarei esperando. — Eu disse por fim

E aqui estava eu, quase pronta, dando os toques finais nos cachos que fizera em meus cabelos escuros. Pintei os lábios com meu tom preferido de vermelho, deixando as bordas levemente esfumadas e finalizei com um pouco de gloss transparente e, é claro, um pouco de blush para dar vida ao meu rosto pálido.

O vestido ficara perfeito em mim. O cetim rico deslizava com fluidez até meus tornozelos, o corte perfeito, com uma abertura deixando a perna esquerda exposta. O corpete contornava perfeitamente a parte superior do meu tronco em um decote tomara que caia que descia colado até minha cintura em um enrugado sutil, delicado. O tecido creme quase branco não se destacava tanto em minha pele clara, mas ainda sim, um contraste bonito de brancos e rosados.

Vesti os saltos de tiras que guardava especialmente para ocasiões assim, preto envernizado. Daquele tipo coringa que combina com absolutamente tudo.

Borrifei o perfume feito por vovó sem economizar e desci as escadas, segurando a bolsinha preta de mão em uma e a máscara na outra, enquanto fazia uma lista mental para me certificar se não estava esquecendo nada.

Celular, identidade, dinheiro, anéis, cordão... deixei o brilho labial desta vez, não cabia na bolsinha. Mas eu sobreviveria uma noite sem hidratar os lábios o tempo inteiro.

Alastair me esperava ao lado de vovó à porta. Ele estava lindo, deslumbrante. Sorri o vendo pendurar o smoking preto sobre o ombro, a blusa social branca sem gravata. Ele odiava gravatas. O cabelo castanho, mais claro que o meu, bem curtinho e liso, penteado e lustroso para trás.

— Uau, Alie! Olhe só para meu neném, já um homem... — brinquei, o fazendo virar-se para mim.

Ele abriu a boca para protestar com minha implicância, mas parou, os olhos arregalados e o queixo caído. Também parei, pensando se dissera algo errado. Ele me olhou de cima a baixou e então contraiu os lábios e franziu a testa, emburrado.

— O que há de errado? — Perguntei olhando para mim mesma.

— Você está linda, Luna. — Disse. Eu o encarei confusa. — Ah, você não sabe como um irmão mais velho sofre, maninha. Preciso te proteger dos maníacos e tudo o mais. E você não vai de jeito nenhum passar despercebida.

— Argh. — Resmunguei revirando os olhos mas deixando escapar um meio sorriso. — Alie bobo. E você não é mais velho, quantas vezes vou ter de dizer, hein? — Aproximei-me dele que agora ria de minha irritação, dando-lhe um soco fraco no braço.

— Parem de brigar vocês dois, vão se sujar. — Vovó disse reprimindo a própria risada e entrando no meio de nós dois. Ela me segurou ternamente pelos ombros, olhando-me com mais cuidado. Os olhos cálidos, tão parecidos com os meus, mas com sinais da idade. — Está divina, querida. — Ela afagou delicadamente minha bochecha, soltando um suspiro. Sorri em agradecimento murmurando um “obrigada” envergonhado.

— Sua carona chegou. — Alastair disse olhando pela pequena abertura de vidro ao lado da porta.

— Ah. — Gemi, sentindo o nervosismo pela primeira vez na noite. O coração acelerado e a boca do estômago se contorcendo.

— Nos vemos na escola, Nana. — Alie disse me conduzindo até a porta e enquanto caminhávamos pela entrada até o carro branco de Henry.

Virei metade do corpo para acenar para vovó uma última vez.

— O-ok. — Gaguejei ainda nervosa, voltando-me para frente para observar o loiro sair do carro.

— Amo você. — Alie disse dando um beijo de leve no topo de minha cabeça e um tapinha afetuoso em minhas costas. — E vê se relaxa, você está ficando igual um tomate. — Seu tom de deboche evidente me fez franzir o cenho.

— Chato. — Murmurei pouco antes de ele adiantar-se alguns passos a minha frente e cumprimentar Henry com aqueles abraços laterais depois de um aperto de mão.

Aproveitei os segundos ali parada para observar melhor Henry. Ele usava um smoking também preto, parecido até com o de meu irmão. Seus cabelos quase brancos também não estavam muito diferentes do habitual. Mas ainda sim estava lindo. Prendi a respiração quando seus lindos olhos azuis cinzentos me fitaram, deslumbrados.

Uou. — Ele disse sorrindo, exibindo a covinha.

Corei, encarando o chão.

— Vê se se comporta. — Alastair disse á Henry, caminhando para nosso pampa estacionado na entrada de carros. E disse sério, apesar de estar sorrindo. Henry não respondeu. Continuou me olhando.

Sorri para ele, enquanto ele abria em um gesto cavalheiresco e clichê, a porta do carona de seu carro para mim. Tão arcaico...

— Você está linda, Luna. — Ele disse quando o carro já estava em movimento.

— Olha quem fala. — Eu respondi sorrindo, apontando com a cabeça em sua direção. Ele riu meio sem jeito.

— Está nervosa? — Perguntou irrompendo o silêncio constrangedor da viagem quando já estávamos no estacionamento da escola, procurando uma vaga em meio aos outros carros.

— É tão evidente assim? — Perguntei entrelaçando os dedos das mãos uns nos outros em cima do colo.

— Não muito. Mas é seu primeiro baile não é... — disse enquanto finalmente estacionava em uma vaga.

— Ah, sim. É, valsa, ponche e roupas de gala juntos. Não é o tipo de festa tradicional para adolescentes brasileiros. — Eu ri, pensando de novo nas festas juninas e em todas as outras festas que eu sentia falta, como por exemplo o carnaval abarrotado e alegre.

Ele também riu, mas não me parecia muito sincero. Abri a porta quando ele desligou o carro, antes que ele pudesse abrir para mim.

— Precisa de ajuda? — Ele disse erguendo um braço para mim enquanto eu chegava quase que ao mesmo tempo que ele na frente do carro.

— Pareço tão desengonçada assim andando de salto? — Soltei mais uma piadinha, sorrindo, mas aceitando sua ajuda e segurando seu braço direito.

— Bem... — Ele começou.

— Não responda. — Droga, não achei que estivesse tão enferrujada nessa coisa de saltos.

Ele riu de verdade desta vez.

Nós compramos nossos ingressos e entramos pelas guirlandas coloridas de papel crepom que enfeitavam a entrada do ginásio. Ele estava iluminado por um enorme globo de espelhos que pendia do teto, refletindo todas as outras luzinhas coloridas de lede que dançavam por todos os lados pelo ginásio. Bexigas enormes e metálicas em vários formatos estavam coladas pelas paredes. Também havia aquelas máquinas de fumaça que enchiam o chão de nuvens espeças e também coloridas pelas luzes, com o cheiro típico que acompanhava fumaças de festa. Inalei nostálgica, lembrando das comemorações de aniversário de quinze anos tradicionais de minhas antigas colegas do Brasil.

Todos estavam com roupas diferentes, as meninas bem mais diversificadas do que os garotos em sua maioria de preto. Alguns mais estilosos que outros. Muitos tecidos pink, vermelhos e pretos enchiam o salão rodopiante. A maioria também usava lindas máscaras. E naquele momento, senti meu rosto queimar um pouco sabendo que a minha não era exatamente genérica.

— Não vai colocar sua máscara? — Henry perguntou em sincronia com meus próprios pensamentos, enquanto soltava seu braço de minha mão e cavoucava os bolsos internos de seu smoking.

Respondi-o colocando minha máscara felina e injuriando a mim mesma mentalmente por não ter me olhado no espelho com o vestido e com a máscara.

Henry também vestiu uma máscara, toda preta e opaca, sem nada de mais.

— Diferente. — Foi seu comentário sobre a máscara, quando ergueu seus olhos em minha direção.

— Pois é... — Murmurei com o total de zero graça. Ao menos ela escondia minhas bochechas enrubescerem de vergonha.

Nós caminhamos por entre as pessoas e chegamos até onde nossos amigos estavam, próximos a mesa de frios abarrotada de “salgadinhos”, que eu chamava de biscoito, e tigelas enormes de ponche. Suspirei o mais discretamente possível com o alivio de me juntar a eles.

Mas fiz questão de suspirar audivelmente quando vi o vestido deslumbrante que Sara usava.

— Sara! — Arfei, desprendendo-me do braço cavalheiresco de Henry e retribuindo os braços estendidos de minha amiga para um abraço.

— Luna, garota! — Nós duas demos pulinhos comedidos em nossos respectivos saltos e gritinhos de excitação.

Nos afastamos um pouco e cada uma olhou a outra com mais cuidado. O vestido de um tecido acetinado em tons chiques de trigo reluzia em sua pele cor de café. Uma tira não muito fina em horizontal com plissados formava a alça de seu vestido. O corpete realçava seu corpo alto de modelo e caia-lhe sobre as pernas em ondas cintilantes.

— Eu quero saber por que você não está na Vogue, sinceramente! — Eu disse, sabendo que ela mesma havia produzido o vestido do zero.

— E eu quero saber como a senhorita caiu do Olimpo sem se machucar. É a deusa da beleza com quem estou falando? — Nós duas rimos e ela virou-se para falar com Henry.

— Caprichou, hein? — Eu disse a Miro o cumprimentando em um abraço.

Ele passou a mão no cabelo baixo onde os desenhos estavam raspados, se gabando. Seu smoking era um tom de cinza quase preto e a gravata borboleta da mesma cor e tecido do vestido de Sara.

— Você também até que não está mal. — Disse rindo.

Anna estava timidamente encostada ao lado de Alie. Usava um vestido rosa bebê com mangas bufantes, simples e ainda sim angelical.

— Você está uma princesinha, Anna. — Sorri abraçando-a também.

Ela me olhava por detrás da máscara inteira de lantejoulas furta-cor. Os olhos turquesa brilhando, mas não disse nada.

— O que foi? — Perguntei, percebendo Alastair também a olhar interrogativo.

— Luna, você está tão deslumbrante — disse por fim, os lábios formando um sorriso. Não pude deixar de soltar um risinho envergonhado. Alastair também riu pela doçura que o tom de voz da menina tinha.

— Oh, obrigada. Mas você está bem mais do que eu. — afirmei.

Ela e meu irmão foram os primeiros a ir para pista de dança, rodopiando e dançando em meio aos outros pares. Eu sabia que teria de ir dançar com Henry em algum momento e isso fazia meu coração acelerar. De fato, era meu primeiro baile. Eu não sabia exatamente o que esperar. Eu não era uma péssima dançarina nem nada do tipo, até que tinha algum senso de ritmo. Mas ainda sim, não sabia o que estava esperando.

E além de meu próprio nervosismo – e talvez até por conta dele –, eu podia sentir algo diferente em Henry. Algo em sua maneira de agir, de se portar, fugia do seu habitual. Vez ou outra quando eu observava-o sem que ele reparasse, sua boca estava sempre tensa, como se estivesse concentrado ou algo do tipo. Certa vez, os cantos entortaram-se um pouco para baixo nos cantos, como que impaciente ou algo do tipo.

Eu não saberia definir com certeza o que passava em sua mente, não o conhecia bem o suficiente para isso. Poderia ser apenas nervosismo, o mesmo que eu estava tendo. Como sempre, eu poderia estar apenas vendo coisas de mais onde não tinha nada.

A essa altura, Sara e Miro já haviam escapulido também para a pista. Uma valsa lenta e orquestral havia começado. As luzes tomaram tons de rosa e vermelho e vi alguém estourando um enorme balão do alto, fazendo milhares de pedacinhos de papel metalizado deslizarem pelo ar. Sorri com a cena que até então só vira em filmes.

Meus olhos encontraram meu irmão, a testa colada na de Anna enquanto eles iam lentamente de um lado para o outro em um pequeno círculo. Senti meu coração aquecer-se com aquilo.

Amor.

Os dois se completavam, dois inteiros que somavam um ao outro em perfeita harmonia. Eu podia quase ver uma áurea cor de rosa os envolvendo. Papai e mamãe amariam ver isso também, ele feliz desse jeito.

Um nó doloroso surgiu em minha garganta com o pensamento. Tentei engoli-lo, desviando o olhar de meu irmão. Mas parecia que eu estava tentando engolir um chumaço de algodão. Por um momento, não via mais nada ao meu redor, só prestava atenção em endireitar meus pensamentos.

— Luna — Henry chamou me tirando do meu afogamento mental momentâneo.

— Hm? — Respondi já me sentindo controlada, virando-me para ele.

Estava com o celular em mãos. O brilho forte da tela refletindo em seus olhos cinzentos.

— Se importa se eu atender uma ligação? — Ele disse, a voz estranhamente sem emoções. Mas também, que tipo de emoção eu esperava em uma frase comum dessas? — Vai levar apenas alguns minutos. — Acrescentou com a minha falta de resposta imediata.

— Claro, sem problemas — sorri. — Leve o tempo que precisar.

Ele saiu sem retribuir o sorriso. Fiquei encarando suas costas enquanto ele atravessava o mar de pares dançantes.

Mudei o peso de um pé para o outro nos saltos, já mostrando alguns sinais de desconforto, e pensando se deveria ir até as cadeiras amontoadas perto da arquibancada. Algumas poucas pessoas, com olhares tristonhos em geral, sentavam nelas. Talvez estivessem sem par.

Pensei melhor e resolvi que chamaria a atenção de Alie ou de Sara se me vissem sentando sozinha lá. Além do mais, Henry não tardaria a voltar. Então caminhei até a parede às minhas costas, próxima a saída de emergência. Estava mais escuro ali, longe das luzes de lede e do globo de espelhos. Parecia que a fumaça artificial havia se acumulado mais lá, sem pessoas e pés para dispersá-la.

Eu quase caí no chão de susto quando notei, observando o movimento lento das nuvens de fumaça, uma silhueta contornada na luz fosca que adentrava pela abertura das portas duplas de emergência.

Caramba! — Arfei com o susto, levando instintivamente as mãos ao coração.

— Desculpe — uma voz perfeita, macia como plumas e fluida como a própria fumaça que nos cercava, respondeu.

Pisquei freneticamente, tentando enxergar o rosto do desconhecido, quando percebi que já ouvira aquela voz. Que ouvira em meu sonho, no meu dragão.

— Não queria assustá-la. — continuou

E então ele se aproximou graciosamente de mim. Não veio rápido, como se realmente estivesse empenhando-se em não me assustar. Mais um paço e pude ver seu rosto mascarado, próximo de mim. E ainda que estivesse mascarado, era o rosto mais lindo que eu já vira em toda minha existência. Humanamente impossível. Um rosto que eu nunca sequer conseguiria imaginar como existia, sinceramente. Pisquei novamente, tentando pensar de forma racional.

Desviei os olhos de seu rosto, olhando-o como um todo. Suas roupas, por mais que pretas como a da maioria, tinha o caimento perfeito. Como as que via em desfiles de grifes de moda. Pude ver também a linda abotoadura das mais reluzentes das pratas brilhar como uma lanterninha na manga do paletó quando ele estendeu suntuosamente a mão branca para mim. Mesmo estando escuro, notei como eram claras, esculpidas como mármore.

— Me concede uma dança? — Eu diria não, juro que diria. Mas como poderia negar isto a uma voz tão afável?

Não respondi de prontidão, erguendo o rosto para olhar novamente o do homem. Apesar da voz carregar um requinte maduro, seu sorriso era tão jovial. Ele não poderia ter mais de vinte anos. Desviando forçadamente o olhar de seus lábios rosados e esculpidos, encarei seus olhos, ignorando a ardência que sentia em meu rosto.

Como se isso adiantasse alguma coisa. O rubor continuou em minhas bochechas enquanto encarava em meus segundos de silêncio os olhos por sob a mascara. Negros como a mais escura das noites. Creio que a face negra da lua devia ter essa cor, essa melancolia.

Eu não o respondi, mas estiquei vacilante a mão na direção da dele. Percebi que estava tremendo um pouco.

Senti um choque percorrer todo meu corpo quando as mãos frias dele seguraram com toda delicadeza do mundo meus dedos. Por um segundo, mais rápido que uma batida de meu coração acelerado, pensei nas mãos gélidas dos vampiros de meu devaneio. Mas estranhamente agora, essas mãos não me geravam medo.

A outra mão do homem deslizou com elegância sem igual até a parte superior de minhas costas, me puxando por consequência mais para perto de si e simultaneamente erguendo meu braço esquerdo; como que guiando seu posicionamento. Meu corpo obedeceu quase que instintivamente, sentindo a macieis do tecido gelado do paletó, pousando minha mão em seu ombro.

Ele conduziu meus paços, mais uma vez, com uma graciosidade inumana. Ele era bem alto, com porte atlético, mas ainda sim esguio. Como os heróis esculpidos em mármore. Eu, em meus um metro e sessenta com a ajuda dos saltos, chegava quase em seus ombros. Encarei a lapela acetinada de seu paletó e a camisa engomada branca, sentindo a sensação de sua mão de macieis vítrea segurando a minha, envolvendo-a quase que por inteiro. Ela parecia quente em contado com o gelo que era a dele.

Tudo isso durou apenas alguns minutos antes que ele debruçasse de leve, em um movimento tão ágil e gracioso como o de um cisne, em minha direção. Não ousei encarar a face gloriosa novamente, mas senti a ponta de seu nariz roçar tão levemente como uma pluma por meus cabelos, próximo de minha orelha.

Eu podia sentir seus lábios se movendo, e prendi a respiração por um segundo.

— Eu sei que seria inútil se eu te dissesse para vir comigo agora — disse ele. A voz quase sussurrada em meu ouvido.

Senti meu corpo tremer mais, inalei instintivamente e senti, pela segunda vez, aquele cheiro. Lembrava o do devaneio, mas de alguma forma diferente. Dez mil vezes melhor. O cheiro que ele exalava não me causava nenhuma repulsa, pelo contrario. Fechei os olhos, sentindo meus músculos relaxarem do tremor.

— Entretanto, peço-lhe que não hesite em me chamar quando precisar — havia algo de arcaico em sua maneira de falar, ou em sua pronuncia. — Não se esqueça. — Senti sua voz mais distanciando de mim.

Continuei de olhos fechados e mal senti quando, em meia batida de coração, eu estava sozinha. Meus braços flutuaram debilmente e eu vacilei um paço, sem equilíbrio. Por sorte, a parede estava próxima o suficiente para eu me apoiar nela.

Eu estava ofegante, mas não me sentia exatamente inebriada. Tinha a sensação de que todas as células de meu corpo tivessem saltitando, borbulhando. Não era ruim, nem as borboletas – ou mariposas, para ser mais exata – que agitavam meu estômago. Ainda sim, parte de minha mente só conseguia pensar uma coisa: outra alucinação.

Eu silenciava com firmeza essa parte justificando o sumiço fantasmagórico do homem com o fato de a)eu estar de olhos fechados e b) uma enorme saída de emergência estar a quase um metro de onde estávamos. Isso me parecia álibi suficiente para garantir minha sanidade mental.

Mas não era o bastante para explicar a fala enigmática dele. Eu não tinha nenhuma pista e ele também não deixara nenhuma. Afinal, como eu poderia “chama-lo” sem saber nem ao menos seu nome? E mais importante, por qual razão eu o chamaria? Ou melhor, por que eu precisaria de um estranho?

Recostei-me na parede, tirando um pouco o peso dos pés. Percebi que a música que tocava não tinha a entonação anterior de valsa e me perguntei o que exatamente estava tocando enquanto eu dançava naqueles breves minutos nos braços fortes de meu mais novo enigma.

Avistei a cabeleira branca de Henry adentrando o ginásio novamente, vindo em minha direção. Conveniente agora que eu não estava mais nos braços de outro par. Quando ele se juntou a mim exibindo sua covinha e me conduzindo para a pista mais animada e frenética com o pop da música, minha mente ainda estava quase que inteiramente voltada para o homem mascarado. Buscando explicações para a enorme coincidência em sua voz ser uma réplica idêntica, se não melhorada, do dragão vermelho de meu sonho.

A outra parte se concentrava em sorrir, responder a conversa entrecortada que surgia em meio aos paços de dança meio desengonçados vindos de Henry e em meus próprios passos; tímidos, balançando os quadris no ritmo da batida. Porque era isso que eu chamava de dança: requebrar os quadris e fingir que eu tinha mais algum controle do que isso em minha coordenação falsa.

Parecia ser o suficiente para enganá-lo e também aos outros olhares que eu captava em minha direção. Eu devia estar mesmo muito linda para chamar essa atenção.

Ou talvez fosse apenas a máscara diferente.

Estava começando a sentir frio no tecido fino do vestido, mesmo que eu estivesse ciente de o ginásio estar bem mais quente do que o lado de fora. Isso me fez lembrar que eu não havia trazido nenhum agasalho, nem um xale para me aquecer.

Estava pensando nisso, bebericando meu copo vermelho de plástico de ponche. O gosto era muito bom e doce, com frutas vermelhas. Mesmo assim, queria muito que tivesse álcool nele. Eu tinha uma leve noção dos assuntos da minha roda de amigos, maior do que as cinco pessoas habituais. Eu ria nas horas certas, respondiam as coisas que eram comigo, até tiramos algumas dezenas de fotos. Mas ainda sim, minha concentração estava toda na curiosidade que crescia feito um balão de gás hélio tentando me levantar com ele.

Além disso, eu estava muito desconfiada agora da ligação de urgência de Henry. Mesmo que tivesse um pouco de sentido alguém que quisesse me chamar para uma dança esperar que eu estivesse longe de meu par para isso. É, talvez fizesse todo sentido. Mas isso não servia de nada para amenizar minha desconfiança.

Ele continuava com sua postura atípica, quase não participando das brincadeiras e piadas, como era de seu costume. E, algo no olhar desconfiado de meu irmão, alimentava minhas certezas sobre isso. Não acho que alguém além de mim percebia isso em Alastair, mas eu sabia o que ele provavelmente estava pensando. Ou pelo menos o rumo provável de seus pensamentos. Não importava que ele e Henry fossem amigos, ele estava de olho em cada ação dele, de forma protetora é claro, com relação a mim. Eu sabia disso pela conversa que tivemos. Não me surpreenderia se ele achasse que eu tinha alguma coisa próxima de uma quedinha em relação ao loiro. O que não era exatamente mentira, mas o ponto é: ele não queria que eu me machucasse de nenhuma forma.

E não havia como negar, Henry estava estranho. Para bom entendedor meia palavra basta, já dizia minha vó. Alastair sempre fora bem mais estratégico e analítico do que eu. Não era atoa que era um excelente jogador de xadrez. Quero dizer, se ele também notara algo diferente em Henry, era quase certo que algo realmente estivesse errado.

Diferente de mim que, assim como papai, era bem mais impulsiva. Herdara além de outras coisas, muito de seu temperamento “selvagem” como costumava dizer. Até minhas formas de reação eram parecidas com as de papai. Quando jogávamos xadrez com Alie, era quase que ver o mesmo jogo duas vezes, segundo o próprio.

Suspirei bebendo uma golada do líquido vermelho notando que eu estava absorta de mais em meus pensamentos. Alastair olhava em minha direção agora. Eu tentei perceber como devia estar, quero dizer, parada olhando o nada enquanto todos riam e... Bem, eram normais.

Sorri para ele, pensando comigo mesma que não era muito raro da minha parte me desligar assim do mundo. Esse já era o meu normal. Distraia-me de mais e muito facilmente. Ele sorriu de volta, provavelmente pensando a mesma coisa.

O restante da noite passou rápido, seguindo esse mesmo padrão: um pouco de conversa, um pouco de dança.

Mas quando a musica lenta voltou a tocar, dessa vez, Henry me pegou nos braços. Seu toque parecia meio bruto em comparação a afabilidade assertiva e divinal do meu parceiro anterior. Um paço para a esquerda e outro para direita. Era nossa valsa ao som da música que eu não conhecia. Henry praticamente não olhava para mim, olhava algo por cima de minha cabeça em nossos lentos rodopios.

— O que está olhando? — Não me contentei em não perguntar, depois que sua atitude começou a me irritar.

Ele abaixou a cabeça para me fitar, não estava mais de máscara.

— Nada. — E sorriu com a covinha.

Pela primeira vez, a covinha não me gerou o que costumava me gerar. Ao invés de sentir as bochechas corarem, senti meu cenho franzir de irritação. Eu também sabia que meus lábios crisparam levemente.

— Henry, honestamente, o que é que há de errado com você? — Perguntei com a voz controladamente sem a aspereza que tinham enquanto estavam apenas em pensamento.

Ele me fitou em silêncio por um instante, a covinha desaparecendo apesar de seus lábios ainda estarem curvados em um sorriso.

— Você é mais observadora do que eu pensava. — Ele disse.

Desvencilhei-me de seus braços e tirei a máscara, não conseguindo evitar minha expressão de indignação. Mas havia mais do que isso, eu estava confusa e farta.

E magoada. Por mais que eu não quisesse admitir.

Nem de longe era o jeito que eu queria ou esperava ser tratada. Será que eu era uma companhia tão desagradável assim? Aposto que ele me convidou por pena. Ou Alastair...

Não. Meu irmão não faria isso comigo. Não pediria para alguém me levar.

— É — eu disse ressabiada, interrompendo o rumo azedo que meus pensamentos tomavam. — Parece que sou.

Encarei por um segundo seu sorriso com um teor leve de deboche e comecei a caminhar para fora do amontoado da pista de dança. A música havia mudado de novo mas não prestei atenção.

— Relaxe, vou te contar o que está acontecendo. — Henry já estava ao meu lado.

Ele segurou meu braço guiando-me para fora do ginásio. Mesmo que seu toque não fosse rude, não deixou de me incomodar.

Puxei-o tentando o máximo não fazer um movimento agressivo ou teatral de mais quando já estávamos do lado de fora. Os arbustos baixos da lateral da construção estavam enfeitados com luzes amarelas e verdes e mais a frente, no gramado, estavam os banquinhos de piquenique que costumavam ficar próximos ao refeitório, na parte exterior.

Fingi não estar com medo de cair e dificuldade de me manter equilibrada no salto enquanto caminhávamos pela relva desigual. Eu tentava acompanhar seus paços mas mesmo assim estava um pouco atrás.

— Posso saber onde estamos indo? — Perguntei impaciente quando meu tornozelo bambeou um passo e eu, por pouco, não recupero o equilíbrio.

— Ah, você não irá precisar saber para onde vai. — Ele respondeu.

Imediatamente eu parei onde estava, fitando suas costas.

— Como assim? — Perguntei sentindo um pouco de adrenalina gelar minhas veias e um estranho instinto de querer sair correndo dali imediatamente. Meu pé direito foi para trás em resposta automática, obedecendo os instintos.

Ele se virou, sem sorrir agora. A passadas largas ficou em minha frente, meio curvado para fitar meu rosto. Tentei dar um passo para trás e suas mãos voaram, prendendo meus braços.

Abri a boca para gritar mas ele puxou com um braço meu corpo, prendendo-o junto ao seu e tampando minha boca com a mão livre. Eu sabia que de longe, pareceria apenas que estávamos abraçados. Senti a umidade começar a embaçar meus olhos arregalados.

— Escute com atenção o que estou dizendo. — Ele começou, a voz baixa, mesmo que não houvesse mais ninguém ali para ouvir.

— Você não vai tentar nenhuma idiotice. Tem essa opção, que estou certo de que será a que escolherá, ou vai para casa com seu amado irmão. Choramingando, contando exatamente tudo o que estou fazendo agora. Entretanto, antes do amanhecer irei te buscar mesmo assim. E desta vez não vou ser bonzinho, então você vai estar envolvendo todo o resto de sua família. É claro, desnecessariamente.

As palavras saiam rápidas de sua boca. Eu não conseguia processa-las. Sentia as lágrimas começando a trepidar. Eu não fazia ideia do que pensar, e continuei em silêncio. Havia uma grande parte de mim que queria muito soca-lo, gritar com ele e ir embora. Mas outra igualmente forte, imaginando meu irmão e minha avó em perigo. Isso inundava todo o ultraje que eu sentia e toda a lógica de tentar escapar de um discurso que eu aprendi a vida toda que deveria ignorar em situações como esta.

Mas eu não tive tempo de fazer nada, nem responder. Eu não pisquei os olhos mas não vi de que direção o homem aparecera.

Ele era bem mais alto que Henry e nem se comparava a mim. Devia ter uns dois metros facilmente. Era branco como a própria lua, o rosto oval e careca. Seus olhos tinham um vermelho vivo medonho. Idênticos aos vermelhos medonhos de minha alucinação vampírica.

— Leve-a. — Henry disse afrouxando seu aperto pela primeira vez.

Eu não vi como, mas eu estava presa novamente em outro aperto. Duro e frio como aço. Gemi quando não consegui enxergar mais nada além do preto que imaginei pertencer às roupas do cara de lua. Não pude senti-las mas sabia que as lágrimas jorravam de meus olhos.

Estava tendo um dejavu das imagens de minha alucinação: as mãos sufocando meu grito; o manto negro impedindo minha visão; o vento estranhamente movimentando meus cabelos e meus pés longe do chão. E o mais forte e que eu mais tentei ignorar: Henry.

Isso durou no máximo alguns minutos e então senti o vento parar. Meus pés, rápido de mais, tocaram o chão e eu caí. Eu não tinha forças para me erguer, quase nem respirava. Sentia fracamente o cheiro de grama em minhas narinas mas não conseguia senti-la na pele, eu estava dormente de mais para sentir qualquer coisa. Ainda sim, consegui ouvir o gralhar – quase familiar – de corvo.

Suguei o ar em um arquejo audível, apoiando meu peso nos braços e me sentando no gramado lamacento. Olhei desesperada a minha volta, percebendo horrorizada que não estava mais nos terrenos da escola. Encolhi minhas pernas, desafivelando os saltos num último recurso minimamente estratégico para caso precisasse correr – ou usa-los como arma.

— Eu a trouxe, mestre. — O cara de lua disse para algo atrás de mim.

Virei-me para trás e senti uma tontura que fez minha visão ficar trêmula quando vi o tamanho do casarão. As portas de madeira escura eram amplas e altas e havia duas aldravas idênticas, uma careta duplicada. Elas se abriram com um ruído terrível e eu fiquei de pé, cambaleante. Tentando manter os olhos no grandalhão e no que saía pela porta ao mesmo tempo.

— Que rapidez. — A voz masculina era tão baixa que por um momento me perguntei se não a estava imaginando.

E então um homem desceu os três curtos degraus de pedra, olhando diretamente para mim.

Ele usava uma roupa estranha, dava a impressão de ter saído direto de algum jogo steampunk. Tinha um coque nos cabelos loiro escuros e olhos igualmente vermelhos. Ele olhou-me de cima a baixo, sem mover um músculo sequer além dos globos rubi dos olhos brilhantes a luz fraca da lua.

Por um momento, lembrei-me dos olhos luminosos de meu dragão. Mas nenhum destes a minha frente parecia com o dele. De alguma forma que eu não saberia explicar, estes aqui dos estranhos pálidos, pareciam menos nobres, de algum jeito. Não pareciam chamas, ou lava. Pareciam pedras, e nada além.

“Meu filho”

A voz do dragão me veio a memória. A voz idêntica do homem no baile.

Arfei, lembrando de seu aviso que não fez sentido na hora.

Meu corpo endireitou-se sem que eu o comandasse. Não vi o loiro steampunk vir em minha direção e, ainda sim, aqui estava ele, a menos de um metro de mim. Bem menos.

Trinquei o maxilar, subitamente sem o pavor latente que me engolia há segundos atrás. O sentimento de ultraje pinicava meus olhos, minhas mãos. Ergui o queixo, insolente, para encarar de frente o loiro. Senti seus dedos gelados segurando a ponta de meu queixo erguido, estudando minha expressão curiosamente.

Eu não sabia exatamente o que eu deveria fazer ou como deveria chama-lo. Mas eu sabia que não me restava outra alternativa.

E então um grito dilacerante cortou o silêncio noturno. Por um segundo achei que fosse meu, mas não era. Vinha de algum lugar de dentro da casa sinistra. Neste milésimo de segundo, os olhos vermelhos do loiro se arregalaram, talvez de susto, e ele paralisou tal qual uma estátua.

Era minha única deixa.

Corri, ignorando metade de meu instinto que quase ordenava para que eu não desse as costas para o inimigo e comecei a gritar:

— Eu estou te chamando — arquejei. Minha voz não saiu alta como eu queria. Eu podia sentir os dois malvados chegando mais perto. — por favor — meu suplicio saiu embargado de choro.

Senti minhas forças sumirem, eu ia cair...

Só que lá estava ele. Surgido de lugar nenhum. Naquele segundo, eu poderia jurar que ele era a minha pessoa preferida no mundo inteiro. Senti seus braços me envolverem muito antes que eu pudesse pensar em me aproximar do chão, aninhando-me em seu peito ao mesmo milissegundo que segurava minhas pernas, por trás dos joelhos. Mas ele não fora embora daquele lugar horripilante ainda.

Virei-me para encarar a imagem de meu sequestrador número dois – o cara de lua – beirar o pavor. E meu sequestrador número três – o steampunk – sibilar um ruído gutural por entre os dentes cintilantes. Foi um som rápido, e então ele controlou seu rosto marmóreo para alguma tentativa sem sucesso de indiferença.

Senti o peito do homem que me erguia vibrar levemente com uma risada baixa de escárnio. Levantei a cabeça para tentar ver sua expressão. Ele não usava mais a máscara negra e assim, a luz fraca do luar, ficava quase impossível de acreditar que eu não estava sonhando.

Ou que realmente tivesse enlouquecido de vez, completamente insana.

Seu sorriso era tão grande que ele quase mostrou os dentes. Parecia felicidade, mas não acho que era assim. Ele sorria vitorioso. Um sorriso que conquistadores dariam após alguma vitória. Um sorriso que eu imaginaria que um rei daria aos seus derrotados.

Seu sorriso foi a última coisa que vi antes das coisas começaram a parecer muito distantes. Tudo parecia um enorme e confuso borrão. Mas eu ainda podia sentir seus braços me sustentando, o cheiro doce que não conseguia deixar de evitar me aproximar agora.

Deixei a cabeça cair no tecido de seu paletó, sentindo mais do cheiro que magicamente me acalmava. Fechei os olhos quando os borrões começaram a embrulhar meu estômago.

Por mais que me sentisse mais segura agora, ainda que nos braços de um estranho, um enorme soluço nasceu de meu peito. Impossível de segurar. E então eu estava chorando, desesperadamente, as mãos tampando meu próprio rosto encharcado.

— Está tudo bem, está tudo bem. — A voz aveludada era gentil. Tão baixa que parecia afagar meus tímpanos. Mas meus soluços continuaram.

Percebi que ele me apoiava em alguma superfície, também dura, mas nada gentil. Abri os olhos e mais um soluço entrecortado por minha respiração irregular saiu em um gemido de alívio desta vez. Eu estava vendo a escola, vendo as luzes indo e vindo. Estava em um meio fio, escorada em uma arvore entre dois carros estacionados, na rua enfrente a escola.

O homem estava protetoramente agachado a minha frente. Minha visão estava completamente embaçada mas eu podia ver a preocupação em seus olhos. Senti suas mãos frias em meu rosto febril, afagando e enxugando as lágrimas que pareciam não ter fim. Meus dentes batiam um no outro, acompanhando o restante do tremor que acompanhava meu corpo inteiro. Ele enfiou a mão em seu paletó, tão rápido que quase perdi o movimento, e continuou a enxugar meu rosto desta vez com um tecido bordô.

— Você precisa se acalmar. — Ele disse colocando a palma de sua mão que não enxugava meu rosto em minha nuca.

O toque gélido nela me fez tremer ainda mais. Fechei os olhos, exaurida, e senti sua mão afastar-se de mim.

Ele colocou algo ao meu redor, cobrindo-me, e só aí que percebi que não estava tremendo apenas de nervoso, eu estava com frio. O tecido não estava quente o suficiente mas senti as mãos do homem esfregarem meus braços gentilmente.

Abri os olhos para encará-lo.

— O- obrigada. — Eu disse tentando regular a respiração.

Percebi que ele havia deixado o lenço que usara para enxugar meu rosto em minhas mãos. Agarrei-o mais forte, sem tirar os olhos de seu rosto.

— Você se sente melhor para voltar agora? — perguntou o homem.

Reprimi o pavor que me gerou pensar em Henry lá dentro, há poucos quilômetros de mim.

— Eles vão me achar. Não me deixe, por favor... — minha voz não era nada clara, algo mais que um murmúrio.

— Shh, shh — O homem afagou novamente meus braços, sob o que eu agora podia ver tratar-se de seu paletó. — Eles não vão. E eu também não vou a lugar nenhum. — Apesar de seu tom gentil, havia algo de divertimento em sua voz de veludo.

— Você precisa voltar para seu irmão. — Continuou. — Ele está te procurando neste momento.

Ergui o corpo no mesmo momento, me colocando de pé e cambaleando um pouco no processo.

— Esqueceu os sapatos. — Parei onde estava, ia me virar para procura-los, mas ele já estava na minha frente antes disso, abaixado e erguendo meu tornozelo, afivelando meu sapato.

Tive que me apoiar em seus ombros quando ele ergueu meu outro tornozelo. E antes que eu pudesse colocar a sola do salto totalmente no asfalto, ele estava de pé.

Observei o peso que seu rosto tomou. Seu maxilar perfeito parecia um pouco tenso, como se ele estivesse pensando em algo muito trabalhoso.

— O que eu devo fazer? — Sussurrei. Ele olhou meus olhos e franziu levemente a sobrancelha, como se não tivesse entendido totalmente minha pergunta.

— Henry... Ele disse que machucaria minha fa... — não consegui terminar de explicar, minha voz embargando. Então engoli o soluço e o choro. Não queria começar tudo de novo.

Ele esperou um segundo, o rosto um pouco aflito. Provavelmente também com medo de ter que me acalmar novamente.

— Ninguém vai tocar em um fio de cabelo deles. — Ele curvou os lábios em um leve sorriso, altivo, colocando as mãos nos bolsos da calça.

Senti minha testa enrugada, ainda com medo.

— Eu não vou deixar. — Seu sorriso cresceu um pouco mais.

O fitei por um segundo, guardando em minha mente seu rosto. Os olhos grandes e expressivos, desenhados pelos cílios negros e as pálpebras relaxadas. O nariz reto, combinando perfeitamente com o restante do rosto forte e marmóreo.

Neste momento, ele entreabriu os lábios, chamando minha atenção para eles. Perfeitamente desenhados, cheios e um tom mais rosado que sua pele branca feito neve. Voltei a encarar seus olhos negros quando sua boca, ainda levemente entreaberta, curvou uma das beiras em um sorriso. Consegui ver a ponta de seus dentes marfim antes de ele trincar o maxilar novamente.

— Seu irmão. — Lembrou-me ele.

Senti o sengue esquentar minhas bochechas. O que eu estava pensando?

— Ainda não me disse seu nome. — Disse.

Não só por eu precisar saber, mas também porque não queria que ele pensasse que eu era louca e abobada. Eu ainda duvidava de que ele era real, todas as provas que eu pudesse guardar eram essenciais.

— Você não precisa saber agora. — Sua expressão ficou séria, quase dura. — Não se preocupe, vou estar por perto.

E então ele desapareceu. O vento frio soprou em minha pele desprotegida, agora sem o paletó.

Lá se foi a prova concreta de que ele não era fruto de minha mente.

Respirei fundo, lentamente, concentrada em deixar o coração calmo enquanto atravessava a rua e entrava pelos portões da escola. Havia menos da metade dos carros no estacionamento agora então pressupus que essa minha desventura havia durado mais do que alguns minutinhos.

Parei na entrada do ginásio, dando uma olhada geral nas pessoas que ainda estavam lá. Parecia vazio de mais agora, em comparação a aglomeração que era, mas ainda havia um número razoável. Não precisei procurar muito para achar um Henry incrédulo, quase apavorado na arquibancada. Não evitei um sorriso, estiva tentando imitar o da moça linda de cabelos negros de minha alucinação/pesadelo.

Já que eu estava louca mesmo, que pelo menos eu seja louca e maneira.

Caminhei confiante até onde eles estavam, podia ver com mais clareza Alastair – que segurava nervoso o celular na orelha –, Miro, Sara e Anna. Amontoados próximos de meu sequestrador número um: Henry. Pensei seriamente se seria ou não uma boa ideia chegar esbofeteando dramaticamente o rosto dele.

— Onde você estava? — Sara perguntou, a voz acompanhando a preocupação do rosto.

Encarei Henry em resposta. Não sei o que deixei escapar em minha expressão que fez meu irmão imediatamente enrugar as sobrancelhas e também encarar o platinado.

— Por que não tenta explicar melhor o que aconteceu — disse Alastair e claramente não em uma entonação de pergunta.

Todos – menos Sara – olharam de Alie para Henry. Minha amiga continuou vidrada em mim, vindo em minha direção e me tocando protetoramente no rosto, que devia estar todo borrado, inchado e vermelho.

— Você está bem? — ela sussurrou — Ele a machucou? — Seu rosto jovial estava tão sério agora que parecia ter o dobro de sua idade.

Balancei negativamente a cabeça e ela assentiu, depois de um segundo sem desviar os olhos dos meus, decidindo se eu estava ou não mentindo.

— Anda, Henry. Repete a história. — Miro disse cruzando os braços.

O clima estava tangivelmente tenso. Eu não fazia ideia do que Henry havia dito para eles e estava tão curiosa para que ele abrisse logo a matraca. Mas só o que eu queria poder fazer era sair correndo para casa da vovó com Alastair.

Eu tentava captar o máximo que eu conseguia pela visão periférica, com medo de que meus outros dois sequestradores surgissem ali. Reprimi um tremor que o pensamento me gerou, focando no interrogatório do loirinho.

Seu rosto não estava mais espantado. Agora estava sombrio, quase desgostoso.

— Eu tentei te beijar — ele finalmente começou a falar. A voz controlada como se tivesse decorado a fala. — e então você fugiu. — Apesar de a expressão em seu rosto não ter mudado, algo em seus olhos azulados me trouxe a memória de sua ameaça. Congelei, desejando muito pela primeira vez que eu apenas estivesse maluca, delirando mais uma vez, para que o perigo à minha família não existisse de fato.

Senti os olhos de meus amigos em mim. Mas eu não sabia o que dizer.

— Por hoje, vamos esquecer isso. — Sara disse após o silêncio que se instaurou, captando com perspicácia o pânico em meu olhar. — Por hoje. — Repetiu incisivamente fuzilando Henry e passando um braço sobre meus ombros maternamente.

Alastair deu a volta, segurando minha mão e a afagando com o polegar.

— Você está bem? — Ele perguntou sem olhar para mim, guiando-me junto a Sara para a saída.

— Sim. — Murmurei.

Eu estava bem?

Era uma excelente pergunta. Levando em consideração todos os acontecimentos impossíveis em menos de vinte quatro horas, o fato de eu não ter criado asas ou chifres terem brotado de minha cabeça era bem bom. O que viria agora? Talvez seja a vez dos cogumelos mágicos iluminarem a estrada de volta para casa.

Entrei no nosso pampa inalando o cheiro mentolado do aromatizador em forma de árvore de natal pendurado no para-brisa.

— Alastair, ligue quando chegarem em casa. — Sara instruiu pela janela do motorista.

— Eu estou bem, amiga, não se preocupe. — Segurei a mão que ela apoiava na janela, tentando tranquiliza-la.

— Quando se sentir confortável, eu estarei aqui para ouvir sobre. — Ela soprou um beijo pra mim e sorri em troca. — Te amo, garota. — E então o carro estava em movimento.

Anna protestou, queria muito nos acompanhar até em casa e então partir de lá com um uber, não queria nos atrasar. Mas eu a garanti que realmente não tinha problema nenhum em leva-la em casa primeiro. O que não era totalmente verdade. Eu estava na verdade morrendo de medo de topar com os esquisitões de olhos vermelhos a qualquer momento. Rezei para que ninguém percebesse isso, mas era meio difícil esconder as coisas de Alastair.

A despedida deles foi rápida quando o carro estacionou na calçada de sua casa. As luzes ainda estavam acesas e imaginei que não devia ser tão tarde. Pensei em olhar a hora e...

— Ah não! — suspirei.

— O que foi? Luna, você está bem? — Alastair quase pulou do banco da frente.

— Esqueci minha bolsa no carro do Henry. — Expliquei, mas me arrependi assim que o fiz.

Eu sabia o que ele iria dizer

— Vou te deixar em casa e volto para pegá-la para você. — A satisfação da oportunidade em ficar a sós com Henry estava explicita.

— Não, Alastair — Disse rastejando desengonçada para o banco da frente enquanto ele colocava o carro em movimento. — Me ouça desta vez, por favor. — Ele me olhou com desconfiança e preocupação.

— O que aconteceu Luna? — Seus lábios se crisparam, ele estava ficando com raiva. E eu sabia que era cem por cento direcionada a Henry.

— Prometo te contar tudo em casa, com a vovó. — Garanti. — Mas, por favor, deixe essa coisa da bolsa para depois.

Ele não me olhou, mas sabia que tínhamos um acordo.

— E se puder ir um pouquinho mais rápido... — sugeri e ele me olhou confuso, obedecendo em seguida.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.