Cursed

I - Pesadelo


I

De todas as reflexões que tivera em minha vida sobre o sentido e significado que a palavra “destino” poderia ter, nunca pensei que teria de enfrenta-lo assim. Nunca imaginei que ele seria algo pesado. Nem que toda a criatividade divina dos antigos poetas e escritores caísse sobre mim, nem que eu fosse abençoada com um aviso antes disso tudo acontecer; nada disso me ajudaria diante das proporções que minha vida pacata e melancólica haveria de tomar. O que eu haveria de descobrir ser.

§§§

Era uma manhã cinzenta e gelada de sexta-feira. Levantei-me assustada de um sonho ao qual não conseguia me lembrar. Caminhei ainda sonolenta até a janela de meu quarto e abri as cortinas de linho alaranjadas.

As nuvens estavam tão baixas que formavam uma névoa fluida por entre os telhados das casas da calçada à frente.

Ah! — Arquejei de susto quando um pássaro grande voou até o batente de minha janela, chocando as asas no vidro meio embaçado.

— Quase me matou de susto, grandão. — Sorri para a ave, abaixando-me para olhá-la mais de perto.

Queria verificar se não havia se machucado ao pousar tão abruptamente. Suas penas negras como nanquim reluziam prateadas na luz pálida da manhã e ele bicava ruidosamente o vidro, como se estivesse curioso comigo tanto quanto eu estava com ele.

Será que é um corvo? Pensava enquanto ele içava voo para longe de minha janela. Ele era bem grande mas o vidro estava embaçado de mais para eu dizer com certeza. Talvez fosse uma graúna. Mas o que eu sei sobre pássaros, afinal.

Vasculhei uma toalha no armário e fui ao banheiro fazer o toalete. Hoje seria um dia cheio. Era o último dia de provas do nosso último ano letivo e também meu aniversário e do meu irmão.

Voltei ao quarto depois do banho rápido e vesti meu suéter grená favorito, optando por uma calça jeans preta simples, que particularmente achava que realçava minha silhueta. Encarei meu reflexo no espelho estreito e sem moldura de meu quarto e comecei a ajeitar meus cabelos, os soltando do coque e alinhando com as mãos mesmo.

Eu tinha uma sombra escura abaixo dos olhos que me tirou um suspiro. Aquele pesadelo de qual eu não lembrava não me deixou dormir bem, apesar de não ter conseguido acabar com a atmosfera de bom humor que eu tinha por hoje ser meu aniversário.

Apliquei um pouco de batom de leve nos lábios cheios e também nas bochechas, assim as olheiras e minha palidez não chamariam tanta atenção para meu cansaço. Amarrei os cadarços do meu AllStars usual e borrifei o perfume de rosas e canela que vovó havia feito para mim.

Não pude deixar de sorrir ao sentir o aroma. Vovó sempre dizia que esse era meu cheiro e por isso fez o perfume de presente de aniversário ontem a noite. Ela teria dado hoje se não fosse pelo enterro de um velho amigo de Londres que tivera de ir. Estaria de volta amanhã ao raiar do dia. De trem, era uma viagem de no máximo duas horas, mas ela disse que precisava passar um tempo com o restante de seus amigos e “beber o defunto”.

Queria que ao menos tivesse deixado eu e Alastair acompanha-la.

— Bom dia, Nana. — Ouvi a voz alegre de meu irmão da cozinha enquanto eu descia saltitando as escadas.

Senti um sorriso brotando em meu rosto quando experimentei o cheiro de panquecas e café.

— Bom dia, Alie! Feliz aniversário! — Disse alegremente correndo até ele e saltando de leve em suas costas. Apesar de termos a mesma idade, ele era muito mais alto que eu.

Alastair me empurrou de leve com o cotovelo soltando uma gargalhada.

— Feliz aniversário, pirralha. — Disse implicante, enquanto empilhava as panquecas em dois pratos.

— Alastair, quantas vezes vou ter de te lembrar que somos gêmeos? Gê-me-os! — Respondi fingindo estar irritada.

— É, mas isso meio que não importa — Ele se virou segurando os dois pratos empilhados de panquecas para coloca-los à mesa. — Levando em conta o fato de eu ser mais alto e ter nascido três minutos antes de você.

Bufei, segurando uma risada. Sempre o mesmo argumento.

— Está lindo, Alie. — Disse olhando para mesa farta que ele preparara. Ele sorriu em resposta, já devorando as panquecas e os ovos estrelados.

Além das panquecas – que aliás estavam uma delicia – havia uma pequena cesta com pãezinhos caseiros, uma garrafa de leite e uma de suco de laranja próximas da cafeteira italiana que perfumava o ambiente com a fumaça do café recém passado. O pote de manteiga e o de xarope de bordô já abertos. O enorme vaso de vidro onde costumávamos guardar a granola também estava lá. Tudo sobre uma toalha de mesa azul clarinha, enfeitada com pequenas folhas verdinhas e algumas florezinhas coloridas de horto.

Mas o que mais chamara minha atenção fora os botões de rosas vermelhas de jardim colocadas em um copo de vidro com água. Igual nossos pais costumavam fazer para nós. Sorri com as lembranças, trazendo o copo mais para perto para cheirar as flores.

— Meu presente de aniversário para você. — Alastair disse observando-me alisar as pétalas delicadas. — Espero que a vizinha não se importe. Achei que era cedo de mais para perguntar.

— Obrigada, irmãozinho. — disse por entre uma pequena risada pelo comentário. — Tenho certeza de que a sra. Liwees não vai se importar.

Era nosso primeiro aniversário sem nossos pais. O primeiro depois do acidente de carro que os levou. Ainda sim, doía como no primeiro dia, quando acordei no hospital sem eles. Mesmo sendo um dia feliz, e eu queria muito que fosse, não deixava de ser um pouco melancólico.

— Sinto falta deles... — Murmurei sem tirar os olhos das lindas e delicadas rosas carminadas.

— Eles estariam orgulhosos de você. — disse meu irmão, a voz um pouco mais alta que meu murmúrio.

Levantei os olhos das flores para olhá-lo. Ele estava sorrindo apesar da dor ainda ser forte de mais em seus olhos reluzentes.

— De nós. — Corrigi o retribuindo o sorriso.

Alastair e eu somos muito parecidos. O mesmo tom alvo de pele, os mesmos cabelos escuros e lábios protuberantes. Quando éramos bebê, era difícil nos distinguir. Mas conforme fomos crescendo algumas diferenças foram tornando-se mais notórias.

Os cabelos de Alie são lisos como seda cor de chocolate, e ele sempre os usa bem curtos, rente a cabeça. Bem diferente de mim, com minhas espessas ondulações cor de ébano até a cintura. Temos ambos olhos escuros mas Alastair herdara o formato arredondado de mamãe. Já os meus eram iguais os de vovó, amendoados finos, um pouco arqueados até. Felinos, como ela costuma dizer.

Além disso, Alastair tinha um porte muito mais atlético que o meu em meus um e quase sessenta. Não é atoa que o time esportivo da escola vivesse implorando para ele se juntar, coisa que ele não parece ser muito animado a fazer.

Ainda com essas pequenas diferença, viviam nos dizendo que olhar para nós era como olhar a versão feminina e masculina de uma mesma pessoa.

Nós já tínhamos terminado o café e eu guardava minha escova de dentes no armário do banheiro quando vi meu irmão descer correndo as escadas, já com a mochila nas costas.

— Eu dirijo. — Alastair gritou do andar de baixo.

Saí também correndo escada abaixo atrás dele, o vendo pegar as chaves do carro no pequeno gancho próximo à porta.

— Mas hoje é minha vez! — Protestei pegando meu casaco do cabideiro de madeira e o vestindo rápido, jogando a mochila no ombro.

— Nada disso! Eu fiz o café. — Meu irmão sorriu triunfante abrindo a porta do motorista.

Eu sabia que já tinha perdido essa luta, mas ainda podia vencer a batalha. Tentaria dirigir na volta. Tranquei a porta de casa e corri para o pampa.

A escola não ficava muito distante de carro, mas era bastante incômodo pedalar quase trinta minutos congelando de frio ou na chuva para irmos de bicicleta. Por sorte, um amigo da vovó nos vendera um Ford Pampa com cabine dupla de segunda mão. Acho que não teríamos conseguido tão barato se ele não fosse amigo da vovó, levando em conta o bom estado em que se encontrava. Tinha alguns arranhões aqui e ali e a pintura vinho descascava em alguns lugares. O que deixava-o mais charmoso, na minha opinião.

Não que eu entendesse muita coisa de carros, eu só gostava de coisas grandes e rústicas. Sem contar que em uma pesquisa rápida depois de conseguirmos compra-lo, descobri que fora fabricado no Brasil e isso me fazia sentir um pouco em casa. Pequenos detalhes que serviam de band-aid para enorme ferida do luto.

— Da para acreditar que já faz quase mais que ano que estamos aqui? — Alastair disse quando entramos no pequeno estacionamento da escola.

Encarei minhas mãos descansando nas cochas.

— Quase um ano desde que mamãe e papai... — Não consegui terminar a frase, minha voz não soou mais que um sussurro embargado.

Com o canto do olho pude ver o rosto de Alastair se virar para mim, mas não desviei meus olhos de minhas próprias mãos. Encarando especificamente o anel que usava no indicador, com uma pedra escura e redonda de rubi. Era o anel de noivado que meu pai havia dado a mamãe, pertencendo antes disso à vovó.

— Às vezes sinto falta dos dias ensolarados do Brasil. — Ele disse em um tom descontraído mas ainda com uma ponta de cautela na voz.

Mesmo sabendo que para ele era um assunto tão delicado quanto para mim, ele era protetor de mais para deixar transparecer e me preocupar. Mas eu obviamente conheço meu irmão bem o suficiente para saber disso.

— Eu gosto do frio. — Eu disse levantando a cabeça para olhar pelo para-brisa as pessoas acumuladas entre os carros e na entrada da escola. Minha voz também mais leve — Mas é tudo tão diferente aqui. — Suspirei pensando no quão pior era entender química em inglês.

Por mais que eu entendesse e falasse bem – graças a papai e vovó, viva dupla nacionalidade – não era minha primeira língua e a que passei estudando por quase dezessete anos.

— Vamos, chega de reclamar ou vamos nos atrasar. — Alie disse saindo do carro em um pulo. O imitei.

Uma das milhares de coisas que eram diferentes na Inglaterra eram as aulas acabarem em Julho e não em Dezembro. Pensava nisso encostada no corredor largo enquanto relia as funções químicas e tentava memoriza-las o máximo possível. Eu sabia que não faltava muito para eu passar por conta de um trabalho em dupla que fiz com Henry, um colega muito prestativo e agradável. E, por sinal, ótimo em química.

Devia isso a Alastair, por ser bem mais extrovertido do que eu. Graças a ele que já na primeira semana fez amizades e tínhamos com quem sentar no almoço e até algumas coisas pra fazer nos fins de semana.

— Feliz aniversário, Luna! — Era Henry a minha frente.

Lembro-me como fiquei estranhada na primeira vez que o vi, com seus cabelos loiros claros quase brancos e os cílios combinando por cima dos olhos cinzentos.

Sorri para ele que retribuiu.

— Obrigada, Henry. — agradeci fechando o livro rabiscado de anotações e post its.

— Ei, por que você está toda agasalhada assim? É verão. — Sua voz era divertida.

Ele beliscou meu casaco de poliéster acolchoado exibindo uma covinha na bochecha direita. Acabei reparando em suas roupas por conta do comentário. Ele vestia uma blusa de meia manga de algodão risca de giz cinza.

Senti as bochechas esquentarem um pouco. Não sei se por conta de realmente ser a única dentro do colégio usando um casacão e cachecol, ou se por ter notado pelo tecido fino que Henry não era tão magro quanto eu achava que fosse. Desviei os olhos da curvatura leve em seu peitoral.

— Ham, seu nariz está vermelho. — Ele disse quebrando o silêncio constrangedor e tocando meu nariz de leve com a ponta do indicador.

— Ah... haha — Eu poderia ter soado mais natural, mas acho que fui o suficiente para convencê-lo. — Acho que ainda vou demorar um pouco para considerar quinze graus calor. — Disse rindo, mesmo não fazendo a mínima ideia de quantos graus estavam fazendo realmente. Mesmo assim, tirei o cachecol do pescoço e enfiei na mochila.

Nós dois caminhamos para sala de aula e continuamos conversando um pouco, revisando sobre as fórmulas e macetes que ele havia me ensinado. Eu não tinha esse horário com Alastair, ele agora devia estar se preparando para o teste de Inglês.

Me surpreendi quando finalmente pude ver as questões. Henry realmente era um bom professor.

— Caramba, Henry! Você mandou muito bem, cara. Tudo que você explicou estava na prova. — Vi Miro praticamente abraçando Henry.

— Eu estava pensando a mesma coisa. — Eu disse me aproximando deles.

Estavam sentados na parte exterior do refeitório. O sol batia exatamente na mesa de piquenique onde estavam apoiados. Havia esquentado mais um pouco e meu casaco pesado estava pendurado em meus braços. Fiquei contente de meu suéter ser fresco o suficiente para eu não querer tirá-lo e ao mesmo tempo me manter aquecida contra a brisa fria.

— Viu só! Até a Luna conseguiu. — Miro brincou, abrindo seu lindo sorriso para mim.

Ele tinha a pele cor de chocolate retinta, o que tornava seu sorriso branco ainda mais bonito. Tinha os olhos tão negros quanto as penas do pássaro que vira pela manhã. Seu cabelo geralmente era alto e crespo, mas hoje estava com um corte diferente, formando desenhos raspados nas laterais.

— Brincadeira, brincadeira. — Ele disse rindo quando dei um soquinho de leve em seu braço forte.

— Feliz aniversário, Luna! — Senti os braços de alguém por trás de mim, mas já sabia que era Sara pela voz.

— Adeus, doces dezesseis. — brinquei dando uma risadinha enquanto retribuía o abraço.

Notei que a lateral esquerda de seus cabelos encaracolados estava raspada e também tinha o mesmo desenho que de Miro. Sorri já entendendo perfeitamente quando ela chegou mais perto do rapaz e o beijou nos lábios.

— Finalmente assumiram. — Alastair disse se juntando a nós.

— Cala boca, cara. — Miro abriu um sorriso envergonhado desvencilhando-se do beijo e passando um braço pelos ombros de Sara.

— Feliz aniversário, chatinho. — Sara disse a Alastair, que se sentara sobre a mesa, e depois lhe mostrando língua.

Era bom estar com eles. Desde o primeiro dia foram pessoas aconchegantes de se estar perto. Espero que mantenhamos contato mesmo com o fim da escola. Eu ouvi a conversa enquanto comia minha maçã verde. Estavam falando sobre as becas de formatura que teríamos que usar depois do último baile que teríamos.

— Eu preciso comprar uns tecidos para fazer meu vestido. Você já sabe com o que vai, Luna? — Sara perguntou.

— Na verdade estava pensando em passar no brechó que achei aqui no centro. Sinto que vou achar algo lá. E é beneficente. — Comentei acrescentando. — Quer ir comigo?

— Obvio! Hoje às oito, que tal? Posso te buscar em casa.

— Fechado.

— Será que posso ir de carona? Também preciso ver o que vou vestir nesse baile. Quem foi que escolheu baile de máscaras? Não faço ideia do que usar. — Miro disse parecendo meio frustrado.

Pelo sorriso de Sara eu tive a leve impressão de que ela já sabia exatamente o que ele iria vestir. Ela era uma costureira de mão cheia, tinha um senso de moda incrível.

— Você já tem par, Henry? — Alastair perguntou ao louro que estava sentado ao meu lado, de frente para ele.

Eu também fiquei curiosa para saber a resposta, mas antes que ele pudesse responder Anna e um rapaz de quem não me recordava o nome se juntaram a nós.

Eu sabia que Alastair havia convidado Anna e que já estavam combinados de irem juntos. Mesmo negando, eles meio que namoram. Acho que só falta a coragem e iniciativa para um dos dois pedir o outro formalmente. Eles trocaram um breve selinho e Anna virou-se para mim.

— Luna, você conhece meu amigo Calle? — Perguntou sorridente, os olhos verdes brilhando de empolgação.

Eu olhei para o rapaz não muito mais alto que ela. Seu rosto me era familiar, com certeza o vira pelos corredores ou algo do tipo, mas nada em particular que me fizesse lembrar quem era ele.

Ele tinha os cabelos loiros escuros penteados para trás com gel e usava uma jaqueta de couro reluzente.

— Nós temos aula de educação física juntos. — Calle sorriu timidamente.

Arregalei de leve os olhos e senti meu nariz e bochechas queimarem. Henry não escondeu uma risada – ele também tinha educação física comigo. Alastair gargalhou alto.

— Bem... — Ele continuou, interrompendo as duas hienas, parecendo um pouco impaciente. — Será que eu poderia falar com você por um instante? — perguntou sorrindo de lado e passando a mão pelo cabelo, mesmo que nenhum fio parecesse fora do lugar.

— Ham... é claro. — Minha entonação era quase uma pergunta.

Me levantei da mesa para acompanhar Calle e vi com o canto dos olhos Henry se debruçar sobre ela para cochichar algo com Alastair e Anna, que balançou a cabeça positivamente fazendo a cabeleira cor de trigo balançar.

Virei o tronco para trocar um olhar com Alastair, ainda seguindo Calle, tentando entender o que eles pareciam já ter entendido, mas ele apenas sorriu divertido, me lançando uma piscadela.

— Bem, primeiramente: feliz aniversário. — O rapaz disse finalmente, depois de parar atrás de uma árvore perto do estacionamento. Quase do outro lado do refeitório.

Não me importei muito porque estava movimentado e, de qualquer forma, ele parecia estar muito nervoso.

— Obrigada, Calle. — agradeci sorrindo simpaticamente.

Ele ficou visivelmente afetado com a menção de seu nome e não pude deixar de achar um pouco adorável.

— Bem, eu meio que fiquei pensando se... — Ele mudou o peso de uma perna para outra, passando os dedos pelos cabelos flavos. — Se alguém já te convidou para o baile. Quero dizer, provavelmente já. Um monte de garotos já disserem que iriam te convidar e...

— O que? — o interrompi surpresa, sentindo as bochechas esquentarem.

— O que? — Ele repetiu confuso.

— Ahm, nada. Pode continuar, desculpe interromper. — sorri nervosamente para ele, juntando as mãos atrás do corpo.

Guardei na memória o fato de aparentemente um monte de garotos quererem me convidar para o baile.

— É, bem, onde estava... — Calle disse repetindo o tique de passar a mão no cabelo.

— O baile... — Desviei o olhar, já estava ficando um pouco encabulada pelo receio de já saber o caminho da conversa.

— Ah, claro, sim. Bem, você não veio a muitos bailes, claro, porque só entrou nesse último ano. Mas eu gostaria de saber, bem... — E novamente alisou os cabelos. — Você, é, gostaria de ir comigo? — Calle disse rápido de mais, a voz meio falhada. Pisquei um pouco e demorei uns segundos para ter certeza de que tinha entendido direito.

Nossa, isso era tão incômodo. O que eu responderia? Realmente não gostaria de passar uma noite inteira com um desconhecido.

Meus olhos focalizaram cegamente a árvore atrás de Calle e minha mente só pensava os prós e contras de aceitar ou não. Mas o movimento de algo em um galho fez as folhas farfalharem e me distraí por um segundo.

Era um pássaro, igual o que vi de manhã. Senti minha cabeça pender curiosa para a esquerda. Será que era o mesmo?

A ave grunhiu e alçou vôo no mesmo instante que Calle acenou com a mão na frente do meu rosto.

— Para onde está olhando? — Ele perguntou com uma sobrancelha grossa enrugada e olhando na direção em que o pássaro estava há pouco.

— Tinha um passarinho... — Eu disse e ele me encarou como se eu fosse completamente biruta. — Desculpe. — murmurei encarando meus tênis. — Acho que não vai dar. — Respondi sem jeito, por fim, e esperava que fosse o suficiente.

Ele parecia incrédulo e ofendido, fiquei me sentindo um monstro. Esperava não estar magoando seus sentimentos.

— Eu prefiro ir sozinha. — acrescentei dando meu melhor sorriso gentil, achando mais polido completar assim.

Calle crispou os lábios e suas sobrancelhas espessas se juntaram na testa, não sei dizer se por frustração ou irritação. Talvez os dois.

— Você poderia simplesmente dizer que não quer ir comigo. — Ele disse e senti meu sorriso murchar no mesmo instante.

Prendi a respiração nervosamente. Deus, por que isso estava acontecendo? Eu não sabia o que responder, mas ele não esperou. Virou as costas para mim e seguiu em direção aos carros.

— Ótimo... — Murmurei suspirando de cabeça baixa, virando-me para voltar para meus amigos.

— E aí? — Anna perguntou animada, mas murchou no instante em que me viu tampar o rosto com as mãos. — Ruim assim?

— Eu sou um monstro. — Eu disse dramaticamente e voltando a me sentar ao lado de Henry.

Alastair gargalhou fazendo Anna ter de se afastar um pouco para dar espaço ao espalhafatoso. Fiz uma careta para ele, mas fui ignorada por mais uma risada de divertimento. Por que tão chato?

— Ah, querida, dar um fora em alguém não te torna um monstro. Vai se acostumando. — Sara disse.

— Pois é, melhor se acostumar logo. Ainda temos mais duas provas e tempo o suficiente para seus admiradores corajosos tentarem a sorte. — Meu irmão disse ainda sorrindo de orelha a orelha.

— Quando foi que isso aconteceu? — Perguntei acompanhando todos no caminho de volta para dentro, depois de mais um rapaz me parar e entregar um bilhetinho timidamente.

O nome dele era Kavin alguma coisa e no bilhete tinha o pedido para me acompanhar no baile, junto de seu número de celular. Eu nem pude reparar muito nele de tão rápido que aconteceu.

— O que? Os garotos babando por você? — Alastair perguntou retoricamente. — Ah, desde que chegamos. Nada melhor do que uma garota bonita e com passado trágico para consolar. — Disse sarcasticamente, com um tom amargo. — Você que é lerdinha e não notou. — Brincou ele, bagunçando meus cabelos.

Bufei enquanto os endireitava rapidamente. Ele estava certo, isso era muito clichê. Mas ainda sim me parecia meio surreal...

Eu tinha chegado a minha sala. Pensei em perguntar a Henry com quem ele iria ao baile mas mudei de ideia no mesmo instante. Conseguiria guardar minha curiosidade para mim.

— Você é tão ruim assim em educação física, Luna? — Anna perguntou inocentemente com seus olhos turquesa de boneca.

A risada de Alastair e de Henry praticamente a responderam.

— Ah, não exagerem, ok! — Protestei. — Em minha defesa, eu tenho um ótimo reflexo. — eu disse a ela. — Só não gosto muito de correr ou qualquer outra coisa que envolva muito esforço físico. Não é culpa minha se insistem em me fazer jogar futebol.

— Ah, entendi. — Ela disse soltando uma risadinha tímida.

Anna era um ano mais jovem que nós e se formaria no ano seguinte. Ela e meu irmão tiveram aquela coisa de amor à primeira vista. Em muitos aspectos, ela me lembrava uma princesa de contos de fadas.

As últimas duas provas não foram nada difíceis, mas depois de química, nada mais me preocupava. Talvez fosse fruto, além do tempo vago, do meu sucesso em manter a mente ocupada. E também da evidente ajuda de Henry comigo e com Alie, é claro. Ele fora o primeiro a nos ajudar com as matérias e a adequação no geral.

O sol ainda brilhava forte no céu quando finalmente saí da classe. Mas as nuvens pareciam um pouco mais escuras em algumas partes distantes. Um vento frio fez meus cabelos voarem em volta de mim. Notei que devia ter demorado um pouco mais que os outros para sair quando não achei nem Sara e Miro ou Henry por perto. Já deviam ter ido embora.

Meu irmão estava encostado na porta de nosso Pampa com Anna nos braços. Retive-me um pouco observando os dois na bolha particular que estavam. Sorrindo e conversando entre beijos e abraços. Me deixa tão feliz saber que meu irmão esta bem. Às vezes sentia que ele era mais forte do que precisava ser. E eu sabia que era por mim.

Toquei a garganta com o aperto no coração. Hoje era mais fácil de controlar, mas as memórias dos pesadelos com o acidente e de despertar desesperada e aos berros nos braços de Alastair e de vovó ainda eram muito frescas. Não era justo da minha parte, fazê-lo passar pelos surtos da irmã fraca e ter que ignorar suas próprias dores, angústias. Deixei de lado esses pensamentos e fui logo até eles.

Alastair parou na frente da casa de Anna, que estava no banco do carona. Aumentei o volume da música nos fones do celular para dar um pouco de privacidade para os pombinhos se despedirem, aproveitando para observar as nuvens brancas e fofas formarem desenhos no céu.

— Vai chover. — Eu disse a Alie quando Anna já havia saído e entrado em segurança em casa, o carro em movimento novamente.

Esgueirei-me para o banco da frente como fazia todos os outros dias – pelo menos os dias de Alastair dirigir – e afivelei o cinto de segurança.

— Você nunca erra nessas. — Alie disse sorridente. — Vovó ligou enquanto estava te esperando terminar a prova. Disse que chega hoje à noite.

— Como ela está? — Perguntei preocupada com a mudança de planos, guardando o celular e os fones na mochila. — Achei que ela só voltaria amanhã.

— Ela parece estar bem. — Ele disse simplesmente. Apesar de sua expressão estar neutra, eu sentia que não estava falando algo.

Seus olhos desviaram em minha direção, me fitando por um momento e um sorriso sapeca curvou seus lábios em resposta a minha expressão de suspeita. E eu sabia que se ele estava sorrindo o sorriso sapeca, não era nada de ruim.

— O que não está me falando? — Indaguei sorrindo também, a curiosidade começando a fervilhar.

— Quantos convites recebeu para o baile depois daquele garoto do bilhete? — Ele perguntou mudando de assunto e abrindo mais o sorriso, deixando os dentes expostos.

— Além das mensagens no celular, mais um de um rapaz da minha sala na última prova. — Respondi ainda sentindo o alívio por não ser nada com vovó.

— E o que você respondeu? — ele desviou por um instante os olhos da estrada para me olhar, entretido.

— Eu não precisei. — Ri de alívio. — O professor chamou atenção na hora. Deve ter achado que estávamos tentando colar.

— Sortuda. — Ele riu também, estendendo um punho fechado para eu dar um soquinho e recolocando as mãos no volante depois de eu o retribuir.

— E se o Henry te convidasse, Luna? — Seu tom era o mesmo e seu sorriso continuava sapeca.

— Por que ele me convidaria? — Perguntei enquanto ele estacionava na pequena garagem de casa.

Nós saímos do carro juntos enquanto eu o fitava curiosa e ele pensava.

— Por que não? —disse por fim, batendo a porta do carro.

— Então você está dizendo que ele vai me convidar? — Senti o nervosismo pinicar minha nuca. O que eu deveria responder?

— Não. Mas estou dizendo que não seria uma má ideia. Vocês são amigos. Você parece se divertir com ele. — Explicou ele, abrindo a porta e jogando a mochila no sofá da sala de estar.

Não respondi. Perdi o olhar encarando o nada, parada no estreito rol de entrada.

Quanto tempo tinha desde que eu realmente me diverti pela última vez? Sem ser algo condicionado, não espontâneo. Porquê parecia que um véu invisível cobria meus sentidos, como algodões nos ouvidos e olhos. Eu estava vivendo e me esforçando ao máximo para fazê-lo como antes. Mas aquela dor continuava sempre ali, pulsante, a ferida aberta.

E aquela intuição, aquela maldita intuição, de que eu não sabia de tudo sobre a morte dos meus pais. Eu sabia que era fruto da minha própria mente. Provavelmente uma tentativa de auto conforto pós-traumática. Mas a sensação sempre voltava.

— Desculpe, acho que estou invadindo um pouco seu espaço. — Alie coçou a cabeça sem jeito, após meus segundos em silêncio.

Voltei a mim mesma, ainda pensativa, e me encaminhei para cozinha.

— Não sou boa nisso, Alastair. Você sabe. — Murmurei enquanto avançava para a pia para começar a lavar a louça do café da manhã.

— Não é como se você tivesse tantas experiências assim mas, sim. Você não é muito boa lidando com sentimentos. — Ele suspirou.

Provavelmente se lembrando de todos os amigos que perdeu depois de eles tentarem se envolver comigo. Eu não tinha muito tato uns anos atrás. Não mudei tanto assim mas pelo menos hoje eu sabia que algumas coisas magoavam as pessoas e as faziam sentir rejeitadas.

— Desculpe. — Eu disse fazendo uma careta de culpa e o olhando.

— Não é culpa sua. Sabe, essas coisas acontecem. Você não é responsável pelo que os outros sentem e depositam em você. E também, não é como se você os tivesse iludido ou algo assim. — disse ele me confortando, apoiado no balcão da pia ao meu lado.

— Hm. — Murmurei desanimada expulsando os flashbacks.

Parecia até outra vida, um capítulo aparte de um livro completamente diferente.

— Não se preocupe com isso. — disse afagando meu ombro. — Somos quase adultos agora. — Eu entendi o que ele quis dizer com isso, apesar de aparentar ser um pouco desconexo do assunto.

Tudo isso, esses pequenos problemas soam tão mínimos e banais agora. Como se não fizessem mais diferença – se é que faziam.

— Eu gostaria de não magoá-lo gerando algum tipo de expectativa que não fosse capaz de cumprir. — Eu disse um pouco mais alto que um sussurro. — Mas acho que não há mal em aceitar ir com ele ao baile, caso ele me chamasse... — desviei os olhos da louça para encara-lo

Um sorriso iluminou seu rosto.

— Como amigos, é claro. — Acrescentei com medo por tanta expectativa. — Mas mudando de assunto — completei, deixando o restante da louça de lado e enxugando as mãos no pano de prato. — É hora do seu presente.

Corri escada acima o puxando pela mão.

Caminhei até minha cama e me abaixei para pegar a caixinha um pouco maior que a palma de minha mão, embrulhada com papel de presente verde cintilante e com um laçarote cor de rosa. O entreguei nas mãos curiosas de meu irmão.

— Eu achei que não me daria nada esse ano. — Ele comentou rasgando o papel e abrindo a caixa de papelão. — Outra caixa. — murmurou, quase que pensando em voz alta, ao ver a caixinha de madeira com delicados entalhes.

Ele se sentou em minha cama e eu fiquei observando nervosa sua reação. Parecia curioso. Analisou a caixinha com os olhos atentos de um lado e de outro e então abriu. Seu rosto se iluminando ao entender do que se tratava.

— Uma caixinha de música. — Ele sorriu mostrando todos os dentes.

— Sim. — Sorri de volta. — Gire a manivela. — Disse apontando para pequena e dourada manivela na lateral direita.

Ele abriu o tampo e a girou, fazendo com que o cilindro cor de cobre cheio de minúsculas bolinhas protuberantes girasse, gerando atrito com o pente metálico e produzindo uma calma e doce melodia. Aguardei nervosa a reação pela qual esperei o dia inteiro.

Os olhos de Alie ficaram úmidos mas ele nada disse até a música acabar. Nós trocamos um olhar rápido e ele me puxou para sentar ao lado dele apoiando a bochecha no topo da minha cabeça em um abraço lateral, sem que precisasse tirar os olhos de seu presente.

— Obrigada, irmãzinha. — sua voz em um sussurro soou após um momento de silêncio.

Era a cantiga de ninar que nossa mãe costumava cantar para nós. Achei as partituras e encomendei especialmente para ele.

— Imaginei que fosse gostar. Sempre gosta quando toco no pino. — Comentei dando batidinhas em seu braço.

— Você me conhece muito bem. Agora chega de chororô e vamos comer alguma coisa. — Ele disse enxugando o rosto e já saindo do quarto. — Daqui a pouco Sara vai chegar para vocês saírem.

Fiquei estatelada na cama alguns segundos, subitamente com uma sensação de algo na mente. Como uma palavra que fica na ponta da língua. Conseguia ouvir o som do manusear de panelas na cozinha com Alastair aprontando algo para comermos. A sensação era tão forte e parecia tão efêmera que não ousei nem piscar. Estava tão concentrada que não via um palmo a minha frente, mesmo com os olhos abertos.

E o que aconteceu não foi algo claro, algo que eu pudesse explicar. Era mais como uma sensação. Fria, escura e de alguma forma tangível.

Senti o ar fugir de meus pulmões em um suspiro curto e tudo voltou ao normal.

Desci correndo, cambaleante as escadas, mesmo não sabendo com certeza o porquê. Mas concomitantemente no segundo em que pisei na cozinha, Alie atendeu o celular.

— Vó? — Ele disse fechando a bica na pia que enchia uma panela.

Esperei, encarando suas costas, ansiosa.

— O que? — Ele disse após uns segundos. Eu não conseguia ouvir o que ela dizia do outro lado, apenas um murmúrio abafado.

Cheguei mais perto, tentando ouvir o que ela dizia.

— Ahm... Tudo bem então. Sim, memorizei. — continuou. — Até mais. — Ele disse desligando o celular.

A esta altura eu já estava ao seu lado quase grudada, os olhos atentos e curiosos.

— O que foi? — Perguntei curiosa.

— Está tudo bem com ela. — Ele disse afastando gentilmente minha cabeça para longe de seu celular, onde eu tentava ler o que ele escrevia. — Vovó aparentemente mudou de planos. Pediu para irmos encontra-la em uma confeitaria que gosta, para comemorarmos nosso aniversário. — Ele me encarou e trocamos o mesmo olhar de desconfiança. Mas seus lábios estavam curvados em um sorriso animado

Suspirei o observando esvaziar a panela de água. Talvez a sensação estranha tenha sido apenas um alarme falso. Talvez eu possa estar ficando realmente biruta, também. Nunca se sabe.

— Luna, acho que devia avisar a Sara que teremos que sair. — Alastair sugeriu, com aquele tom levemente autoritário, paternal, enquanto subia as escadas.

Apenas assenti, indo procurar meu celular na mochila da escola.

Ignorei todas s notificações de mensagens e algumas ligações perdidas, sentindo o coração acelerar um pouco de nervosismo. Eu realmente nunca havia notado que tantas pessoas assim me achavam interessante. Mas, afinal, o que eu havia reparado com certeza por todo aquele ano?

Balancei a cabeça, tirando os pensamentos do caminho e focando no contato de Sara. Deslizei a lista de contatos e apertei seu número.

— Alô? — Ela atendeu de prontidão, a voz parecia distraída.

— Oi, Sara. É a Luna.

— E aí, garota? — Podia sentir o sorriso em sua voz.

— Sara, desculpe. Minha vó acaba de ligar, pediu para eu e Alie irmos comemorar nosso aniversário em Londres.

— Em Londres? — Ela repetiu. — Ela não tinha ido ao enterro do amigo lá?

— Sim. Nós também não entendemos muito bem, mas é bem a cara da vovó esse tipo de coisa. Disse que há uma confeitaria lá que iremos gostar ou algo do tipo. — Expliquei brincando distraída com o zíper da mochila.

— Sem problemas, gatinha. — Ela riu do outro lado. — Podemos ir amanhã naquele brechó.

— Combinado então. Desculpe de novo.

— Ih, relaxe. Vai ser bom, eu precisava mesmo preparar as roupas de Miro. Estava tirando as medidas dele quando você ligou. — Consegui ouvir uma risada abafada de Miro ao fundo.

— Ah, fico feliz então. — deixei escapar uma risadinha de felicidade pelos dois. — Divirtam-se. Até amanhã.

— Até. — Ela disse com uma voz cantada, já desligando o celular.

Subi as escadas para me olhar no espelho. Não sabia se deveria vestir algo mais formal ou ir assim mesmo. Decidi por fim colocar alguns brincos prateados, nada muito extravagante, e uma gargantilha com pingentes delicados de estrelinhas. Suspirei encarando novamente as olheiras nos olhos, lembrando que tivera um pesadelo cujo qual o contexto não me lembrava de jeito nenhum.

E então as coisas se encaixaram, como uma engrenagem.

A sensação que tive há pouco, foi a sensação que tive no pesadelo e praticamente a noite inteira. Vi meu reflexo tremer no espelho, os olhos arregalados com o súbito esclarecimento. Vi o pouco de cor em meu rosto esvair-se, o queixo caído.

— Está pronta? — Alastair apareceu na porta aberta de meu quarto, distraído. Não pareceu perceber meu pavor repentino.

— Quase. — Disse limpando a garganta discretamente.

Não iria estragar a noite com essas minhas maluquices. Eu conseguiria guardar isso para depois, quando estivesse sozinha. Além do que, não era nada de mais realmente. Por hora, focaria em minha família e em me divertir.

Passei um gloss labial nos lábios, e aproveitei para passar um pouco de blush no rosto pálido. Observando os últimos raios da tarde se esvaindo havia a mesma névoa espeça da manhã e eu sabia que faria mais frio à noite.

Desci as escadas correndo, pegando a carteira e o celular da mochila e enfiando nos bolsos internos do casacão impermeável de todo dia. Também voltei a enrolar o cachecol no pescoço e corri para fora, trancando a porta para encontrar Alastair. Mas ele não estava dentro do carro como eu pensara.

— Vamos de trem? — indagou indeciso. — É mais rápido, não é. — Ele parecia mais estar pensando em voz alta do que falando comigo.

— Acho que é. — Respondi mesmo assim.

— E de qualquer forma iríamos ter que gastar muita gasolina. É, vamos de trem. — Ele disse decidido.

Tinha tanto tempo que eu não ia à estação que era como se estivesse indo pela primeira vez. Mas estávamos atrasados, em cima do horário do trem para Londres e quase não pude reparar na estação. Como havia imaginado, a temperatura havia abaixado bastante. Enfiei as mão nos bolsos do casaco ao me sentar perto da janela.

Seria uma mentira se eu dissesse que estava prestando atenção na bela paisagem. Minha mente não parava de fervilhar sobre a sensação, sobre os pesadelos... Eu sempre fui o tipo de pessoa que não consegue descansar até resolver as coisas.

Certamente se meu cérebro fosse tão rico e inteligente como o de Sherlock, eu até que poderia vir a ser uma boa detetive. Mas meus mistérios eram tão fúnebres, etéreos. Por onde começar para desvendar um sonho do qual a única coisa que posso me lembrar é uma sensação? Que por mais que tangível, efêmera na mesma medida. E, afinal, isso me levaria a algum lugar além de matar a curiosidade crônica inerente a minha pessoa?

Alisei um pouco as têmporas fechando os olhos. Eu disse a mim mesma que não ocuparia minha mente até que estivesse sozinha.

Levantei a cabeça para olhar Alastair, mas ele parecia absorto, trocando mensagens com alguém no celular. Anna, provavelmente.

Ah, o fervor do amor juvenil...

Sorri comigo mesma, encarando a vista da janela. Pelas construções, imaginei que já devíamos estar próximos.

Não demorou mais que uma hora e chegamos à estação londrina. Acompanhei grudada em Alastair o mar de pessoas, o seguindo para fora, para as ruas noturnas e movimentadas. Alastair parecia saber exatamente para onde iria, eu desnorteada em meio a tanta gente, apenas o segui.

— Vai chover, Alie. — Gemi olhando o céu e lembrando que não havíamos trazido o guarda-chuva.

Eu sempre esquecia o guarda-chuva.

— Não se preocupe, estamos chegando. — Ele disse divertido. — Olha ali. — levantou uma das mãos e apontou para um estabelecimento bem aconchegante do outro lado da rua. A entrada de madeira esverdeada coberta por luzinhas amarelas e ramos falsos de trepadeira.

— Confeito Élfico. — Eu li em voz alta a placa na entrada, escrita em uma fonte rebuscada mas ainda sim simplória.

Alastair gargalhou.

— Isso é a cara da vovó. — ele disse.

Um sininho tilintou quando entramos no local.

Sorri de alívio vendo as gotas de chuva começarem a cair no vidro daentrada. Pendurei o casaco no cabideiro de madeira da entrada depois de colocar o celular no bolso da calça. Apesar do nome, o lugar estava mais para cafeteria do que confeitaria.

Havia algumas pessoas espalhadas pelo recinto, sentadas nas mesas de madeira e nos pufs de aparência aconchegante. Mais para dentro no canto direito, três fileiras de estantes de livros até que grandes harmonizavam o local. Tudo era decorado com luzinhas e plantas artificiais. A não ser pelos vasinhos de sempre-viva espalhados pelas mesas e pelo enorme balcão.

Vovó estava em uma pequena mesa perto das estantes, acenando animada para nós. Os cabelos longos e grisalhos presos em uma trança intricada e brilhosa.

— Nossa, vocês quase não demoraram, queridos. — Ela disse se levantando e abraçando Alie, que estava na minha frente.

— Que lugar incrível, vó. — Eu disse quando estava em seu abraço alegre.

— Oh, que bom que vocês gostaram. Eu tinha certeza que iriam.

Nós nos sentamos, olhando o cardápio criativo e escolhemos cada um o seu. Não havia garçons, tínhamos de ir até o balcão para fazer os pedidos. Alastair ofereceu-se cortesmente, após eu esquecer três vezes o que os dois iriam querer antes de chegar ao balcão.

— Queridos... — Vovó começou quando Alie retornou, a voz mais baixa e séria que o normal.

Tilintei o olhar rapidamente para Alastair que o retribuiu.

Eu desconfiei que houvesse mais alguma coisa em todo o convite surpresa.

— Peço que levem minhas palavras em vossos corações. — Gelei de imediato com as palavras escolhidas e requintadas, completamente inusitadas para ela. —Há muitas coisas das quais vocês não sabem sobre a história de vocês. — Havia um sorriso melancólico em seu rosto antigo mas seus olhos estavam muito sérios. — E eu não teria como explica-los agora de qualquer forma. — Ela fez uma pausa para olhar Alastair nos olhos firmemente, quando este abriu a boca como se fosse dizer algo.

— Sei que estou fazendo muito mistério — Ela continuou. — mas eu não tenho mais escolha. Não tenho mais forças para escondê-los sozinha. Sei que disse a vocês que iria ao enterro de um amigo... — vovó suspirou. — Mas a verdade é que fui procura-lo, para ajuda. Não tinha verdadeiras esperanças de encontra-lo vivo. Mas ele está. Quando a hora chegar, ele saberá como ajudar.

— Vó... — Alastair pegou as mãos enrugadas de vovó, a voz carregada de preocupação.

Eu sentia meus dentes tremendo um pouco por baixo dos lábios, sem entender absolutamente nada do que estava acontecendo.

— Vocês não precisam acreditar em minhas palavras agora, ou entende-las. Só peço que as guardem, por favor. — Ela sorriu calorosamente, mas sem esconder a ponta de preocupação – ou dor – em seus olhos enrugados. — Acham que podem fazer isso por esta velha aqui? — perguntou dando uma risada fraca.

Eu e Alastair nos encaramos por alguns segundos, uma breve comunicação silenciosa, e assentimos ao mesmo tempo.

Afinal, que outra escolha teríamos?

— Olha, aqui tem uns livros incríveis. Edições raras e tudo mais, sabe? — Vovó disse mudando abruptamente de assunto, pegando um pãozinho da cesta no canto da mesa e sorrindo para mim. Sua expressão de imediato mais amena.

Não pude evitar um sorriso fraco de alívio. Quer dizer, creio que alívio não fosse nem de longe a palavra certa para a ocasião, mas algo próximo.

Me levantei para olhar as estantes enquanto a comida não chegava. Não poderia ter certeza, mas algo me dizia que vovó tinha a tratar com Alastair em particular depois daquela indireta dos livros.

Suspirei sentindo o leve tremor do nervosismo ainda nos joelhos. O que estava acontecendo hoje, sinceramente... o que mais aconteceria? Talvez um livro falante, acho que seria plausível, não é.