Cuidado com o que você usa como chaveiro

Verifique se sua bebida não foi batizada ou você pode apanhar


— Faça isso.

A voz firme, embora calma, o fez sobressaltar levemente, trazendo-o de volta a realidade.

Gintoki estava numa região mais afastada do jardim da mansão de sua contraparte, sentado no pequeno banco que ficava de frente para o lago de porte médio, iluminado pelas lamparinas coloridas acerca dele, bem como pela luz da Lua, a qual naquela noite estava no auge de sua fase cheia.

Desde que conseguiram explicar tudo aos personagens daquele universo e Mayah avisara que o jantar só ficaria pronto dentro de uma hora, dera um jeito de sair na surdina, andando pelos grandes jardins até encontrar aquele lugar e resolver ficar por ali mesmo, enquanto tentava pôr os pensamentos em ordem; coisa que não conseguiria fazer se continuasse naquele meio.

Durante toda a conversa ele permanecera em silêncio, tentando não se sujeitar aos próprios sentimentos confusos, mas sem grande sucesso nessa empreitada. Ter não só Kagura como Shouyou à sua frente, vivos e saudáveis parecia ser muito pra que ele conseguisse processar e lidar com facilidade. Por mais que uma parte de si ficasse imensamente feliz por vê-los, uma outra conflitante lembrava-o de que em seu universo fracassara em salvar ambos.

— Está alucinando ou alguma coisa assim? — respondeu após alguns instantes, com seu tom costumeiramente largado. — Não ‘tô querendo fazer nada no momento.

O outro, no entanto, apenas aproximou-se mais, ficando à beira da margem, encarando o reflexo da Lua nas águas coloridas artificialmente.

— Vinte e seis anos atrás, quase 27, — Sua voz tinha um tom nostálgico, ainda que essa nostalgia não fosse daquelas agradáveis e felizes, mas trouxesse consigo pesar. — quando eu descobri que o líder da Naraku era Utsuro e, pela primeira vez em mais de uma década revi o rosto de Shouyou à minha frente, eu acreditei que estava sendo assombrado por aquele fantasma por conta de um carma do qual eu não poderia fugir. Dois anos depois tive a oportunidade de rever aqueles olhos e aquele sorriso novamente, somente para voltar a perdê-los em seguida, fracassando mais uma vez em salvá-lo. E junto com ele, perdendo também um precioso companheiro, que morreu nos meus braços sem eu poder fazer qualquer coisa para ajudá-lo. E embora eu dissesse a mim mesmo que voltei para essa cidade porque queria parar de fugir, foi apenas o que eu fiz outra vez. Eu deveria estar feliz por Edo estar a salvo, e por Shouyou finalmente ter podido descansar em paz, e era no que eu me obrigava a pensar. Mas no fundo, a verdade era que eu não suportava ter que perdê-lo novamente para que o mundo estivesse a salvo. E não suportava o fato de estar falhando com a promessa que fiz a Takasugi pela segunda vez, e pelo mesmo motivo. Então eu fugi disso e voltei pra Aokigahara, na tentativa de incutir a mim mesmo todas as flagelações e punições que fossem possíveis, e que eu sabia que merecia; porque Deus sabe o quanto eu odiava esse lugar. — Olhou rapidamente para sua contraparte mais nova. — E você também. — Sorriu com pesar, fazendo com que o outro vagasse seu olhar vazio e desfocado pelo lago. — E no fim das contas, — Tornou a encarar o lago também, ainda com o mesmo sorriso. — ironicamente, voltar pra essa cidade me trouxe mais bênçãos do que desgraças.

Pausou um momento, mas não tardou a quebrar o silêncio novamente.

— Catorze anos atrás, quando eu achava que já havia abandonado tudo isso naquela área mais profunda da mente, aquela que a gente raramente acessa, eu descobri que Shouyou estava vivo, assim como Takasugi. Não tenho nem como lhe descrever tudo o que vivi internamente com essas duas notícias. Mas acho que você deve imaginar, considerando que está vivendo algo muito perto disso. — Mais uma pausa. — Ele estava vivo, mas isso significava que o sofrimento interminável dele ainda existia... — Suspirou. — Eu só consegui lidar com a presença de Shouyou, a partir do momento em que ele me fez entender o quão feliz por estar vivo ele se sentia. E ainda assim jamais me perdoei por nunca ter conseguido salvá-lo, fosse de uma forma ou fosse de outra. Ainda assim, me permiti sentir-me feliz por tê-lo de volta conosco. — Tornou a virar-se para seu eu mais jovem, olhando-o nos olhos. — Embora a partir de determinado momento tenhamos vivido histórias diferentes, eu e você temos os mesmos pecados, inclusive termos falhado em proteger um de nossos filhos — lembrou-se dolorosamente do gêmeo de Soujirou e a Kagura do outro universo. — E igualmente, nunca nos perdoaremos por nenhum deles. Ainda assim, me permitir viver as felicidades que o destino casualmente me ofertou foi o que me manteve são até hoje. Não se arrependa de não fazer o mesmo. Shouyou e Kagura podem não ser exatamente os mesmos do seu universo, mas ainda são eles, e vão ficar felizes em poder te ouvir e em conversarem com você. — Sorriu uma última vez, já se preparando para voltar à mansão. — O jantar está pronto — informou antes de dar os primeiros passos e então deixá-lo só.

(...)

Após o jantar, estavam todos de volta à sala, conversando entre si, conhecendo o universo uns dos outros, com exceção do dono da mansão que precisou se recolher no escritório por alguns minutos para tentar explicar, por telefone, a Miyuki o que estava acontecendo. Gintoki pensava em como começaria uma conversa com Shouyou e/ou Kagura sem que ela parecesse mais estranha do que já seria, quando ouviu várias vozes animadas vindo da porta de entrada da casa e chegando ao hall. Ele e seus companheiros de universo logo descobriram a quem pertenciam.

Entrando na sala de estar e cumprimentando a todos, antes de paralisarem ao os verem, estavam todos os jovens e adolescentes dos quais já haviam ouvido falar e ainda outros. O grupo era composto pelos filhos de sua contraparte, reconhecidos pelas fotos espalhadas pela casa, e mais quatro que eles não reconheceram. Assim que adentraram o amplo cômodo, interromperam seus passos no mesmo instante, encarando-os com os olhos arregalados.

— Oe... — Satoshi foi o primeiro a se pronunciar após alguns instantes de silêncio, ainda pasmo com o que via. — É impressão minha ou batizaram minha bebida com alguma merda que me faz ver tudo em dobro?

Sua resposta foi levemente dolorosa, pois foi seu pai batendo em sua cabeça com um grosso maço de jornal enrolado.

— Por que diabos estou apanhando? — reclamou se voltando para o mais velho, que já caminhava em direção a poltrona vazia para se sentar.

— Só pela possibilidade de ser drogado, você já merece uma surra, moleque — respondeu um tanto rabugento, ignorando os resmungos insatisfeitos do filho e esperando pela pergunta que já esperava vir de alguém entre eles.

Essa veio de Dango, que encarou o pai, confusa.

— Hm... Pai... o que exatamente está acontecendo aqui?

Gintoki sentiu não só o olhar de Dango, como também os demais olhares sobre si. Era bem óbvio que queriam respostas, então tratou de explicar brevemente a viagem acidental que os visitantes haviam feito até Aokigahara. Em determinado momento, Souichirou cochichou a Satoshi.

— Se aquele cara é o seu pai, aquele outro de cabelo igual será que é um clone dele ou é você?

Enquanto os dois debatiam, o Yorozuya piscou os olhos algumas vezes para entender o que estava vendo. O tal do Satoshi ele sabia quem era por conta das fotos, mas o outro também lhe parecia bastante familiar. Os cabelos cor de areia eram inconfundíveis, sabia que pertenciam aos Okita, e seu corte remetia ao do cara mais sádico que já havia conhecido. Só que os olhos eram diferentes. Eram azuis... Como os daquela Kagura.

— Ei, Pattsuan — cochichou ao amigo. — Que fique bem claro que até agora não bebi nada com álcool... É impressão minha ou aquele moleque tem os olhos iguais ao da Kagura?

O Shimura piscou algumas vezes e até limpou as lentes dos óculos para ter certeza de que não estava vendo coisas.

— É, Gin-san... Ele tem olhos azuis mesmo...

— Ei, você — o albino chamou a atenção do jovem. — Você é filho de quem?

Soucihiro abriu a boca para responder, mas foi interrompido por Gintoki antes.

— Só um minuto, Souichiro — pediu, encarando sua contraparte de Edo. — Você já está sentado, ok. Mas o coração anda bem? — Conhecendo a si mesmo tão bem quanto conhecia, achou melhor perguntar.

— O que diabos tem a ver meu coração com a origem desse moleque? — respondeu com outra pergunta, uma luz vermelha voltando a piscar em sua cabeça.

— Apenas responda — mandou com impaciência.

— O único problema do papai é com relação ao açúcar... — Ginmaru respondeu no lugar do pai.

— Ok. Pode continuar, Souichiro.

O garoto segurava o riso, mas não demorou a responder.

— Sou filho dessa ruiva com esse cara aí. — Apontou divertido para os pais, Kagura e Sougo, que estavam sentados de forma relaxada em seus respectivos lugares.

O faz-tudo ficou em choque.

Alternou seu olhar ora para Souichiro, ora para Kagura e Sougo. Fez isso umas três vezes, assim como Shinpachi, e ambos não conseguiam acreditar no que ouviram.

Ginmaru não esboçou qualquer reação, pois o pouco que conhecera a Yato fora de relatos de quem convivera com ela e o breve tempo em que a versão do passado passara com eles.

Quem não ficaria chocado em saber que uma garota poderia ter crescido?

Mas para Ginmaru não fazia lá muita diferença, tudo o que conhecera fora a pirralha de catorze anos que viajara do passado para a sua época. Seu foco era o jovem de cabelos tão prateados quanto os seus, que o encarava intrigado.

— K-Kagura... — o Yorozuya de Edo tentava manter o mínimo de raciocínio possível. — Onde você tava com a cabeça pra se engraçar com esse sádico de marca maior...?

A ruiva revirou os olhos azuis e bufou aborrecida.

— Eu já tive que passar por isso catorze anos atrás, não quero passar por isso de novo, não...

— VOCÊ PIROU, KAGURA? — Gintoki se levantou bruscamente de onde estava sentado. — TAVA CEGA PELOS HORMÔNIOS, É ISSO?

— Danna... — Sougo atalhou também um tanto entediado, enquanto a Yato limpava o nariz com o dedo mindinho. — Aconteceu, só isso...

— ACONTECEU? — Ele apontou o dedo em riste para o Capitão da Primeira Divisão da Shinsengumi, enquanto berrava com voz esganiçada. — VOCÊ COM CERTEZA QUIS CORROMPER A KAGURA, SEU SÁDICO LADRÃO DE IMPOSTOS!

O albino recuperou o fôlego e tentou se acalmar, lembrando-se que aquele não era seu universo.

— Cara... Ainda bem que na minha dimensão não vou ter esse desgosto... — Deixou-se cair de volta ao sofá, levando as mãos ao rosto, ainda em negação.

Sua contraparte de Aokigahara, por seu turno, encarou a esposa brevemente, comentando com admiração:

— Estou impressionado. A reação dele foi melhor que a minha.

Ela riu, lembrando-se do fuzuê que seu marido causara no dia em que descobriu sobre Souichiro.

— Sem dúvidas!

(...)

Caminhando pelas ruas da cidade estranha, ele pensava numa maneira de se safar daquela confusão. Jamais pensou que um simples furto poderia causar aquela bagunça toda. Agora precisava resolver.

Ele já havia tentado ativar o controle esquisito que afanara do garoto de cabelo prateado, mas a coisa parecia quebrada e não funcionava mais. Após alguns minutos frustrados, tentando consertar o aparelho e não conseguindo, resolveu apenas caminhar por entre os bairros da cidade, na tentativa de encontrar algum profissional que pudesse consertar aquela geringonça, ao mesmo tempo em que buscava por informações do lugar em que estava.

A primeira coisa que percebeu é que não seria fácil sobreviver por muito tempo ali. Em Edo ele furtava para sobreviver, mas ali aparentemente isso estava fora de questão. Assistira a um garoto de uns 16 anos, muito ágil inclusive, ser preso quase imediatamente após ter tentado furtar uma senhora na feira pela qual passou, sendo assim levado por alguns homens que vestiam um uniforme estranho e que não pareciam ser muito amigáveis.

Aquela não parecia ser uma cidade na qual criminosos de baixo calão como ele pudessem agir sem sofrer sérias consequências por isso. Dessa maneira, precisava urgentemente encontrar uma forma de voltar pra casa. Mesmo que ainda não fizesse ideia de como.

Ele estava tão distraído em seus pensamentos que não percebeu o homem que vinha da direção contrária na rua movimentada, esbarrando assim nele.

— Olhe por onde anda, maldito! — xingou o homem no qual esbarrou, mas assim que esse ergueu o olhar, sua expressão se alterou para uma que se mostrava surpresa e preocupada.

— Aoshi-aniki! Não tinha visto que era você! Me perdoe por isso! — Curvou-se em um pedido de desculpas respeitoso.

­— Nos conhecemos? — questionou confuso ao outro, que devolveu o olhar carregando a mesma confusão.

— Claro que sim, chefe! Por acaso deu amnésia? — Ele nem deixou o homem chamado Aoshi responder. — Sou Takuma, seu braço direito, Aniki!