Capítulo 3

A chuva decidiu cair. Não havia nenhum lugar onde a tempestade não pudesse chegar. As ruas inundadas, pessoas correndo, perdendo seus pertences em uma enxurrada sem volta. O pavor começara a brotar na terra encharcada da chuva premeditada, trazida por alguém que não deveria estar ali.

Às escondidas na cidade, um pequeno número de pessoas que sabiam exatamente o que estava acontecendo pararam para observar o céu, enquanto a tempestade se instalava definitivamente.

Pessoas com os rostos cobertos, trajadas de forma pouco tradicional. Olhos astutos, alguns preocupados. Mas estavam ali, decididos a enfrentar o que estava pó vir. Sobre o edifício St. Fidelius, o Sentinela Chad Blay não era o único a admirar o céu.

- Admiro sua coragem, Blay – falou a jovem logo atrás dele.

- Não é coragem – ele murmurou, enfiando as mãos nos bolsos – acho que é pura estupidez.

Ela riu, resignada. A jovem retinha no rosto rosado uma beleza exótica. Olhos verdes amendoados distantes da ponte do nariz, um rosto comprido, com uma cabeleira louro-acinzentada presa em uma trança até o joelho. O rosto de maças ossudas combinava com a fragilidade aparente de seu corpo magro e delgado.

- Todos estão em seus postos – disse ela – mas você sabe que ela virá aqui primeiro.

- É eu sei... Contas a acertar... Olaph deve estar me odiando.

- Se April for esperta, ela também deve estar.

Chad revirou os olhos, mas não parecia interessado na conversa. Os relâmpagos ocupavam toda a atenção.

- Você sabe que eu não vou ficar aqui – continuou a jovem.

- Tudo bem, Kari. Eu não iria te pedir isso – ele suspirou – se eu puder resolver o problema, tudo bem. Mas... Se eu morrer... Kari, não abandone Cliguer. É um bom amigo. Ele saberá cuidar de você.

- Ora, me poupe, Chandler! – ela retorquiu, exasperada – Não me venha com esse papo! Morra em silêncio.

Ele assentiu. “Tudo bem”, murmurou enquanto pensava.

Foi pego desprevenido por dois longos braços envolvendo-o por trás, em um abraço inesperado.

- Estaremos te esperando lá em baixo – Kari disse, afastando-se do amigo.

Ele não respondeu. Estava preso em outros pensamentos.

No segundo seguinte, ela não estava mais ali. Havia sumido como fumaça. Não era nenhuma novidade para Chad. Estava acostumado com isso.

- É a minha vez... – murmurou ele, sozinho.

O relâmpago cortou o céu como uma navalha desgovernada, rasgando as nuvens e mostrando, por um breve momento, um céu branco com estrelas gigantescas de tons vermelhos e púrpuras. Não era um raio comum.

A luz correu no céu em direção ao edifício como um asteróide. Chandler não moveu um dedo sequer. Engoliu em seco e esperou a resolução do momento.

O caiu explodiu ao seu lado. O teto foi consumido por uma luz alva, ricocheteando filetes de luz que iluminaram o céu como fogos de artifício.

- Você nunca foi discreta, Lorelai. – falou Chad.

Uma risada feminina, amarga e ácida soou, apesar do rugido do trovão. As luzes deram lugar a um pequeno grupo de pessoas. Todos usavam túnicas brancas, exceto uma. A mulher a frente tinha suas longas vestes negras, com fagulhas de fogo ainda crepitando em pontos estratégicos de seu corpo, como uma fantasia high-tech.

- Sutileza não é o meu forte, Chandler, querido... Você sabe disso.

Lorelai era misteriosa. Não havia beleza em seu rosto, ou sequer feiúra. Era pálida, com lábios arroxeados e olhos fundos, amarelos. O cabelo louro estava penteado em um chanel impecável, como uma dama da alta-sociedade. Apenas sua roupa nada contemporânea negava isso.

- Você sabe que não vai conseguir nada à força, certo? – Chad disse, enfim – essa é nossa cidade, Lori. Mande o seu bando de raposas pra casa, e desista dessa vingança idiota.

Lorelai arqueou uma sobrancelha, levemente surpresa.

- Talvez você tenha me interpretado mal, Protegido de Berserker. – ela disse, enquanto removia as luvas de camurça vermelha de suas mãos.

- “Protegido de Berserker”? – Chad riu – há muito não me chama assim. Deve me odiar mesmo.

- Oh, querido, como odeio – ela sorriu, sincera – tudo o que eu gostaria era de acabar com você aqui, nesse momento, e voltar para minha cidade que, aliás, está um caos.

- Um caos? – ele franziu o cenho – O que quer dizer com isso? Não tem feito o dever de casa direito?

Ela ficou inexpressiva. Não parecia nervosa como pensara estar. Lorelai parecia aflita, se observasse melhor.

- As coisas não estão boas para ninguém, Chad. Não se preocupe, diga aos Sentinelas de Berserker que eu não estou aqui por vingança. Estou aqui para trazer um recado.

- Sério? E para isso precisa da alcatéia? – Chad enfatizou essa última palavra de forma desprezível.

Os olhares dos outros encapuzados se voltaram com certa irritação sobre Chandler, que pareceu não se incomodar.

- Você acha mesmo que eu viria aqui sozinha? Ora, eu sei como vocês desejariam ver a minha cabeça pendurada em um mastro, querido. Não quero me arriscar. Sou boa no que faço, mas não subestimo meus inimigos.

- Aprecio seu brilhantismo.

Ela fez uma reverência, agradecida.

- Se quer dar o recado, é melhor que seja uma reunião, ahn... Formal. – Chad sorriu como se aclamasse vitória.

Um segundo depois, dezenas de vultos haviam se reunido a volta do grupo. Olaph apareceu ao lado de April, no telhado do prédio vizinho. Não parecia disposto a se misturar ao conflito.

- Acho que todos esperavam a minha chegada.

- Como você mesmo disse, você não é nada sutil.

Um vulto, bando de Lorelai, aproximou-se da mulher. Pela sua expressão de “braço direito”, cabelos negros ondulados em um rabo de cabalo e barba por fazer, além dos óculos de armação de metal, só podia ser Klaus.

- Lorelai, devemos nos apressar – ele disse – Não podemos ficar muito tempo.

- Tudo bem, Klaus...

Lorelai voltou a ficar séria.

- Chad... – os olhos de Lorelai se voltaram para o outro edifício – Olaph. Proponho uma trégua. Uma trégua entre nós, Raposas, e vocês, Besouros.

Uma onda de murmúrios invadiu a atmosfera. Era algo inesperado, era fácil perceber pela expressão de Chad.

- Trégua... Você quer oficializar uma trégua? – Olaph estava cético – o que está havendo, Lorelai? Que atitude é essa? Você vem em nossa cidade, traz consigo essa tempestade e a lança sobre nós, depois nos diz que tem um recado... E agora quer uma trégua?

- Não será por muito tempo, Olaph. – ela falou, decidida – Pretendo acabar com vocês o quanto antes. Mas, por hora, não podemos nos dar ao luxo de lutarmos uns contra os outros. Temos um inimigo em comum.

- Do que está falando, Raposa? – foi Kari quem falou. Estava ao lado de Chad, fitando Lorelai com desprezo – Que raio de inimigo é esse?

Lorelai lançou um olhar para Klaus, que compreendeu a mensagem.

- Vou mostra a vocês. Acreditem, isso não é uma cilada.

Klaus havia colocado um artefato de pedra no centro do terraço, um objeto que lembrava um ovo de avestruz. Klaus, com um único toque, incitou o objeto a se abrir. Uma fenda se abriu e, dele, um dragão de pedra, muito vivo, foi liberto da prisão de pedra. O animal alçou vôo, dócil, sem aparente sinal de perigo.

Todos se afastaram, exceto Lorelai e Chad que, como mandava o figurino, representavam a frente de seus respectivos grupos.

- Há anos... Muitos anos atrás... – Lorelai falou e, ao som de sua voz, o animal paralisou no ar, com suas asas abertas. Então ele caiu.

Os milhares de estilhaços de pedra se lançaram por todos os lados. E pararam no ar, como se o tempo fosse pausado. As lascas orbitavam no ar em movimentos sincronizados. Juntas as lascas giraram até formar um globo, onde os continentes estavam em alto-relevo. Lorelai continuou sua narrativa enquanto as pedras se encarregavam de mostrar os acontecimentos.

- Vocês sabem, coisa de milênios... Havia uma classe de humanóides que viviam entre nós.

- Gárgulas – falou April.

Instantaneamente as pedras colidiram no ar, moldando umas nas outras até formarem uma silhueta de forma humana, mas com asas semelhantes às de morcego.

- Exato – assentiu Lorelai – Isso é notório, todos vocês sabem... E, como também devem saber, elas foram caçadas. Caçadas por acreditarmos serem elas o fim de nossa existência.

- Mas elas não podem ser mortas. São criaturas que nasceram do Ventre-Perpétuo. Por isso foram...

- Petrificadas – falou Lorelai, completando – E, como todos sabem... Tivemos uma ajuda para alcançarmos esse intento.

As pedras se reagruparam. Linhas serpenteantes dançavam no céu, brotando de uma cabeça de mulher, com olhos estreitos e apavorantes, embora fosse estranhamente belo.

- Medusa – completou Lorelai – Seu talento nos ajudou a aprisionar as gárgulas nesses recipientes de pedra.

Ela apontou para vários edifícios a sua volta, entre eles, a catedral gótica onde April estivera com Olaph, há mais de trezentos metros de distância, onde apenas sua torre principal poderia ser vista.

- As gárgulas eram as guardiãs de suas terras. Mas, quando cada uma dessas terras foram abandonadas, as pessoas se esqueceram do pavor que era viver ao lado de criaturas como aquelas... E começaram a lutar entre si, guerrear e tomar posse do máximo de território que pudessem... Até nós chegarmos.

- Os Criptos – concluiu Klaus, sério – Passamos a manter a ordem... Manter longe do poder os bandos que só trazem problemas... As Lebres, os Búfalos, e os Chacais.

- Nós já sabemos de tudo isso – falou Chad, já impaciente – não entendo o que é tudo isso. Veio nos mostrar sua nova habilidade em 3D com pedaços de pedra?

Lorelai riu, veemente.

- Não é para isso que eu trouxe isso – ela falou, apontando para o amontoado de pedras que pairava no ar – eu quero que vejam uma coisa...

Ao silenciar da voz de Lorelai, as pedras caíram... Começaram a se reagrupar no centro do chão, onde, como bolinhas de mercúrio, começaram a se fundir e formar uma única massa sólida e rígida.

Uma placa de pedra acinzentada se formou a frente deles.

Os Besouros prenderam a respiração, alarmados. Era quase impossível acreditarem no que viam.

- A Cripta de Berserker! – Chad vociferou – vocês violaram a cripta!

- Não seja tolo, Chandler! – Lorelai estava indignada agora. De repente, todos pareciam apavorados – Você sabe que nenhum de nós pode entrar na Cripta das Gárgulas.

- Então... Como você explica isso?!

- A Cripta de Berserker foi violada, isso é um fato. Aqui está a lápide. E, se isso for verdade, alguém, ou alguma coisa, sabe onde estão as outras Criptas!

- Isso significa... – a voz de Kari falhou.

- Estão a procura da Cabeça da Medusa!