Crimsontale (cancelada)

Capitulo 4: Toriel, a Guardiã das Ruínas.


O denso e nefasto ar do nervosismo flutuava sobre minha cabeça diante da situação, a luz daquelas pétalas estáticas — tão brilhante quanto o espírito de fogo ao meu lado — penetrando minha visão como uma lança de luz solar. Entretanto, antes mesmo que eu pudesse fazer qualquer coisa — de sequer dar um mísero passo a frente — vinhas saltaram através da pequena janela, vindo em minha direção com a voracidade e agilidade de uma besta selvagem, sedenta por sangue.

Finos e esverdeados como musgo, eles já estavam perto o suficiente de mim para encher meu corpo de rasgos no momento em que se revelaram. Era apenas uma questão de segundos até me atingirem simultaneamente como chicotes espinhosos. Mas, se quer saber de uma coisa, eu não estava tão preocupada com isso quanto aparentemente deveria estar. Minha surpresa era inegável, e meu coração estava acelerado, sim. O ataque repentino realmente me pegou desprevenida, porém, isso não queria dizer que iria me deixar cair tão facilmente por algo tão simples. Afinal, todo meu estudo e treinamento como maga não foi para nada.

Assim que os cipós chegam, salto para meu lado direito. As mechas de meu cabelo são jogadas na direção contrária em resposta ao brusco movimento, assim como as longas caudas escarlates de meu cachecol.

Por um segundo, o mundo todo fica em câmera lenta, e como um gavião atrás de sua presa, as finas plantas passam rasgando o ar a sua frente, o borrão verde escuro ferozmente arrancando fora o pouco de meu cabelo que havia ficado em seu caminho.

Como penas de um pássaro abatido, os fios dilacerados agora caiam ao chão de forma irregular, seus agressores se fincando agressivamente na parede que antes estava atrás de mim como touros enlouquecidos após verem o balançar do pano vermelho.

Eu havia desviado do golpe. Não com a perfeição e maestria que esperava demonstrar, mas desviei. Tendo isso em vista, a distância entre mim e aquelas vinhas espinhosas agora havia se expandido, mesmo que apenas um pouco, e isso era ótimo, pois me dava todo o tempo que eu precisava para fazer uma coisa.

Em apenas um simples piscar, meus olhos passam do castanho ao vermelho, como se a própria iris de ambos agora se transbordasse com o sangue fresco que fluía por todo meu corpo. O cachecol escarlate, antes estático ao redor de meu pescoço, subitamente ganhava vida, passando a mexer-se de um lado ao outro de maneira suave, elegante. Era como se fosse um dançarino seguindo o ritmo de uma lenta melodia, dançando em meio as partículas do ar de forma majestosa.

Seu corpo tornava-se translúcido, o vermelho escarlate que o cobria se acendendo de forma esbelta, ganhando assim um tom ainda mais vivido que antes. Uma fina e luminosa aura de luz branca também passava a o envolver — se mexendo de forma irregular, como ondas no mar —, criando assim um lindo contraste que só amplificava ainda mais a beleza do cachecol nessa sua nova forma, cujo emanava energia mágica.

A força da alma. Da determinação. Minha, e da de todos que antes de mim vieram. Agora fluía como um esbelto e sinuoso rio cristalino por meu corpo, trazendo para ele uma confortável e revigorante sensação de poder.

Pouco tempo havia se passado com essa minha pequena transformação, mesmo assim, parecia que os poucos segundos nos quais fechei meus olhos durante o processo tinham sido mais que o suficiente para que aquela flor conseguisse recuar seus cipós e ficar oculta mais uma vez. Aparentemente, nosso embate iria virar um jogo de gato e rato, o que não me incomodava tanto.

Olhando para os lados, eu via que a parede — agora a minha direita — tinha ficado ainda mais destruída que antes, tendo desmoronado por completo após os cipós terem sido arrancados de sua superfície roxa e desgastada. Sorte a minha que não fui atingida por aquelas coisas.

O espírito de fogo também olhava junto a mim o cenário após o rápido desenrolar de toda ação, suas grandes e cartunescas esferas negras exibindo a mais pura das expressões de confusão que já vi, com direito a pontos de interrogação em chamas formados sobre ele.

Para ser bem sincera, até tinha esquecido que ele estava ali nesse meio tempo, meu foco estava mais direcionado no processo de não ser empalada viva e sangrar até a morte nas ruínas de uma antiga cidade de monstros na hora, mas suponho que ele não se importe muito com isso. Ambos estamos vivos no fim das contas, e é isso que conta, não?

Novamente, vou até a pequena janela cujo qual anteriormente a frente estava, a pequena e confusa esfera de fogo acompanhando meus passos. Olhando através dela, podia ver que não havia nada ali, não mais. A criatura havia fugido dali pouco depois de me atacar, afinal era a única escolha lógica para ela nessa situação. Mesmo assim, ela não pode ter ido tão longe em tão pouco tempo sem uma magia de portal ou super velocidade, e por mais que ela tivesse usado algo assim, eu deveria ter sido capaz de sentir o seu uso, afinal, todos os magos, experientes ou não, tem algum tipo de sensibilidade a magia. Da pra sentir sua essência no ar assim como se sente o perfume de uma flor. O cheiro varia de acordo com a alma do ser, a determinação por exemplo, cheira como rosas, mas isso é conversa para outro momento.

Apoiando uma das mãos na abertura quadrada na parede, com calma entro nos restos mortais do que um dia teria sido a casa de alguém. Não havia sobrado muito para se ver por dentro. Tudo estava destruído e inutilizado por ali, basicamente um monte de entulho. Contudo, havia algo intrigante, que ali clamava por minha atenção. Era um buraco feito no chão. Pequeno, mas ainda assim grande o bastante para caber uma flor, ou até mesmo, uma bola de fogo azul com grandes olhos.

Estava certa de que aquele buraco não estava ali por algum motivo aleatório. Aquela planta havia feito isso, e nesse exato momento ela fugia bem por debaixo dos nossos pés. Porém, para o azar dela, eu tive uma idéia.

— Acha que pode entrar aqui e fazer com que nosso amigo saia para a superfície novamente? — Dirigindo a palavra ao espírito, eu apontava para a abertura no chão.

Um a um, três pontos de fogo aparecem sobre a esfera azulada, seus olhos passando a exibir uma expressão pensativa. O espírito ponderava sobre a sugestão, mas não demorou muito para que ele concordasse. Criando duas pequenas mãos flutuantes, a esfera agora fazia sinal de joinha com ambas, em seguida dando uma rápida piscada para mim, o que me faz dar um pequeno sorriso. Acho que vou manter ele comigo mesmo que ele não me seja mais muito útil, vai ser uma companhia legal aqui embaixo.

— Ótimo. Agora vamos.

O espírito de fogo assente, batendo continência com as mãos e logo depois adentrando o buraco no chão sem pensar duas vezes, deixando um pequeno rastro de fogo azul claro atrás de si ao o fazer. A esfera era rápida, e, suponho eu, iria alcançar o monstro em pouco tempo.

Retorno para o ambiente externo, mais uma vez saltando a janela, porém agora com mais agilidade. Estava me livrando dos limites impostos pela pequena residência, e isso ajudaria na hora que a flor fosse expulsa do interior terrestre. No entanto, antes que isso acontecesse, eu ainda precisava de uma coisa. Me agachando, do chão pego uma pequena pedra roxa dentre as muitas que ali estavam espalhadas, assim a envolvendo entre ambas minhas mãos e fechando meus olhos.

Um processo mágico de encantamento começava, pequenos raios vermelhos de energia sendo liberados ao mesmo tempo que um fraco brilho era emitido dentre as frestas de minhas mãos. Não demora muito para que aquele "show" mágico feche suas cortinas para assim dar origem a um "novo" fragmento. Abrindo meus olhos, eu via que aquela pedra sobre minhas palmas agora possuía uma aura vermelha sobre sua estrutura, as rachaduras em seu corpo tendo sido preenchidas por um fluxo de energia de mesma cor. Claro, tirando isso, ele ainda parecia o mesmo pedaço de irrelevância de antes, no entanto, era evidente que havia ficado mais forte — do meu ponto de vista pelo menos —, cheio com todo o poder que uma pequena pedra poderia se dar ao luxo de suportar. Seria muito útil para seu propósito, principalmente depois de adquirir a característica perseguidora de um míssil teleguiado.

Passo a brincar um pouco com a pedra, a jogando de uma mão a outra enquanto aguardava pacientemente a chama fazer seu trabalho. Meu cachecol provavelmente poderia alcançar a planta e daqui mesmo a desferir um forte ataque, contudo, isso seria desnecessário. Eu não tenho vontade de machucar ninguém aqui, por mais hostil que minha imagem exterior possa parecer. Se eu ainda puder conversar com aqueles que se puserem contra mim ou os aterrorizar para que fujam e saiam do meu caminho sem me dar mais trabalho, então não irei recorrer a violência de forma desnecessária. Meu pai sempre me dizia que nem sempre se pode vencer uma luta só com a força, e que a razão dentro de nossas cabeças sempre tem um espaço para agir, e eu nunca parei de seguir essa linha de pensamento desde que a ouvi pela primeira vez.

Passado algum tempo — segundos, para ser mais exata —, a alguns metros a frente, o chão começava a se rachar, e como a erupção de um vulcão ativo, jorando como pedras magmáticas e cinzas vulcânicas, a flor e a chama eram expelidos de uma só vez, terra e pedra sendo jogadas no ar com o impacto.

A flor tinha um pouco de fogo em suas pétalas, seu rosto estando visivelmente machucado pelo impacto com o espírito azulado. Sua expressão mostrava dor e raiva misturados em um só composto, as vinhas expostas mostrando que mesmo naquele momento, ela estava pronta para atacar mais uma vez.

Não perdendo tempo, a pedra que em minha mão estava logo é arremessada, seguindo o momento que a flor começava a cair de volta para o chão. Controlei um pouco da força do arremesso para não machucar muito na hora do impacto, e com o encantamento que coloquei naquela pedra, já tendo seu alvo em mente, ela não iria errar seu alvo naquela circunstância.

— Vão pro inferno! Não estão vendo que não quero brigar com vo- — As palavras de fúria do monstro são interrompidas quando uma veloz pedra o atinge em cheio.

Era como ver um cometa vermelho cortando o espaço para no fim se colidir com outro corpo celeste. Sua velocidade era fenomenal, e a força de seu impacto fez com que a planta, ainda no ar, fosse arremessada a metros de distância do local onde originalmente estava, acabando por se chocar com uma estátua de algo que, aparentemente, seria um grande e forte bode vestido em uma armadura. A estátua feita de mármore acaba por rachar um pouco com a forte colisão, a ponta do grande tridente que segurava, já rachada, se quebrando e caindo ao chão junto a flor. É, talvez eu tenha exagerado um pouco, só um pouco. Espero que não me prendam por vandalismo por conta disso.

— Merda… is- isso… doeu... — A criatura lentamente se reerguia, pedaços de entulho caindo de seu pequeno e, visivelmente frágil, corpo.

Estando agora bem próxima dele, tendo aproveitado seu estado atordoado para me aproximar sem esperar nenhum contra-ataque, eu o via erguer sua cabeça, seus olhos negros como carvão se encontrando com os meus. Parecia estar reorganizando seus pensamentos, pois de primeira ela apenas fica em silêncio, me olhando com uma expressão desnorteada.

Suas vinhas estavam agora retraidas na Base de seu corpo, e pareciam se comportar como pernas para o monstro naquela forma. Interessante.

— Tá esperando o que? — o silêncio se rompe. A flor havia voltado a si. — Vai… acaba logo com isso, é o que quer não? — Ela fazia um curto silêncio, seu rosto expressando desgosto. — E pensar que eu pensei que podia fugir de alguém como você… que idiota. — Resmungava, desviando seu olhar.

A princípio, não falei nada. As pontas de meu cachecol estavam apontadas em sua direção, prontas para atacar, e meu rosto provavelmente estava emanando uma aura tão fria quanto um iceberg naquele momento, mas, na realidade, eu não pretendia lançar nenhum ataque a flor. O cachecol estava agindo por conta própria, se precavendo caso ela tentasse algo, afinal, seu objetivo principal como "marca" de mago, é proteger quem a usa. Quanto a expressão de assassina, bem, é só uma forma de intimidação que passei a usar desde os tempos do ensino fundamental, quando alguns idiotas tentavam implicar com Leo. Funcionava, e ainda funciona muito bem em conjunto com minha "forma de batalha". Não sou nenhum tipo de psicopata — juro —, nunca matei ninguém, e não vou fazer dessa flor minha primeira vítima. Não é o certo a se fazer, não é o que meu pai faria se estivesse no meu lugar agora.

Ainda em silêncio, eu olhava para aquela pequena criatura com curiosidade. Ela emanava miséria, dor, odio, raiva… mas, apesar disso, também mostrava inocência, medo, esperança… coisas que, quando comparadas, pareciam vir de dois seres, duas almas completamente distintas. Apenas o que é esse monstro que diante de mim agora está? Não havia nada do tipo nos livros que li.

— Ah. Então são vocês que estão causando toda essa confusão aqui. Era de ser esperado. — Uma graciosa voz feminina surge vindo das sombras da estátua.

Tirando os olhos do pequeno judiado aos pés da estátua, minha atenção se voltava para a nova figura que no local acabará de se mostrar. Vinda da sombra imponente formada pela grande estátua do guerreiro bode, a figura era uma mulher. Uma grande — ênfase em grande — mulher cabra.

Com pequenos chifres, uma pelugem esbranquiçada e olhos avermelhados, o monstro com mais de dois metros de altura exibia um doce sorriso em seu rosto enquanto se aproximava calmamente de nós. Vestia um manto cinzento de mangas esbranquiçadas, com linhas brancas que contornavam de cima a baixo toda a parte cinza, cercando em seu peito um brasão, que exibia um símbolo já familiar para mim. Era o anjo que havia visto antes, no portão que dava acesso às ruínas da cidade.

A mulher cessa seus passos assim que fica ao lado da flor, seus olhos avermelhados caindo sobre o pequeno monstro. Ela deixa escapar um pequeno suspiro, balançando sua cabeça para os lados em um movimento de desaprovação.

— Vocês dois realmente não conseguem ficar parados no lugar, não é? — A cabra ainda mantinha seu sorriso.

— Foi ideia da Chara! — Sua forma de falar mudava de repente. — Ela nunca tem paciência para esperar você terminar de cozinhar, nunca!

A mulher de manto apenas ri da fala da pequena criatura, agora a pegando e a colocando sobre seus braços cruzados. Enquanto isso, eu apenas olhava tudo aquilo com uma expressão confusa em meu rosto. O que aconteceu com aquela atitude de antes? Estaria aquele meu simples pensamento relacionado a duas almas e um só corpo, correta?

— Eu sei muito bem como é sua irmã, Asriel, mas os dois poderiam fazer pelo menos um esforcinho para não entrarem em confusão, não?

— Hm… com licença… senhora…

— Huh? — A monstro agora se voltava para mim. — Oh! Me desculpe, me distrai um pouco com meus filhos agora. — Ela dá uma rápida risada sem graça. — Se me permite perguntar, qual seria o seu nome jovem?

Filhos é? Certo, agora isso é algo que vai precisar de uma ótima explicação, pois eu não vejo como uma flor — que aparentemente tem duas almas em si — pode ser filha de uma cabra humanóide.

— Scarlet… Scarlet Tarish… prazer… senhora… cabra… — Com um tom confuso, minha fala fazia a mulher rir mais uma vez.

— O nome é Toriel. Toriel… — ela demonstrava uma leve hesitação, seu sorriso sumindo por uma fração de segundos, mas logo retornando. — apenas, Toriel. Sou a guardiã dessas ruínas em que você agora está. O que lhe traz aqui?

「 Contínua... 」

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.