Parte 2: Couro Barato de Jacaré

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Os Turner iam a 10 km por hora na via cinza esburacada, coberta com uma névoa esverdeada que adicionava um ar tenebroso na cidade; no rádio apenas podia se ouvir a estática bem baixinho. A esposa do senhor Turner olhava no mapa, girando-o, procurando a forma correta de posicioná-lo. A filha atrás afagava o pelo do pequeno Yorkshire em suas mãos, enquanto ia observando pela janela o que não poderia ser chamado de paisagem, já que pouco podia-se ver.

— Querido, é muito provável que esse não seja o caminho para Nova Iorque. - falava a esposa, com um tom de nervosismo, tentando ao máximo não explodir com a estupidez do marido. - Eu disse que devíamos ter permanecido na estrada principal. - botou a mão na cabeça e a balançou, decepcionada e preocupada.

— Querida, mulheres não sabem mexer com mapas. E essa rota é bem mais rápida. - olhou para o painel do carro. - E olhe só! Precisamos abastecer! Aposto que na estrada não acharíamos um posto. - e apontou para um logo em frente, iluminado apenas por uma pequena luz acesa, repleta de insetos voando em torno, e agora pelos faróis.

“Passamos por uns 30 durante todo o percurso", pensou a senhora Turner, que permaneceu no carro com a filha, olhando seu reflexo na janela do carro, acariciando as rugas que vinham nascendo conforme os anos iam passando e os estresses acumulavam.

Do lado de fora, o marido chamava por alguém que pudesse atendê-lo. Até dentro do carro era possível ouvir sua voz ecoar. Atirou os ombros e entrou na lojinha, a lanterna do celular ligada. O que mais irritava a senhora Turner era a despreocupação do marido. Andava ali fora com um olhar pleno, não parecia nem um pouco aterrorizado com o ambiente. Então que a porta do Sedan prateado se abre, e a pequena Lily, filha do casal, saiu correndo, gritando pelo cachorrinho que escapara pela abertura da janela traseira.

Não foi muito longe, o pequeno estava latindo para um arbusto atrás do posto; e não parava, rosnava furiosamente para a vegetação. A garotinha parou, agachou-se, o pequeno vestido amarelo com flores brancas roçando no solo molhado, esticou os braços para pegar o animal até que uma enorme boca fecha-se em torno dele, respingando sangue no rosto da garota. Podia ver grandes dentes segurando seu mascote, que chiava de dor e desespero. Atrás, sua mãe vira toda a cena e portava mesma expressão de terror, a mesma lágrima escorrendo dos olhos esbugalhados de ambas. Pegou a filha à força, a abraçou e saiu correndo enquanto ela gritava um grito agudo.

— O que está acontecendo? Para que todo o alvoroço, galera? Viram uma barata, né? - o senhor Turner falava debochadamente, vendo as duas correndo de volta para o carro.

Entraram e mandaram o homem acelerar. Ele pediu que tivessem calma e ia ligando lentamente a chave no carro mas logo no seu lado, uma espécie de humano-crocodilo abocanha seu ombro. O senhor Turner por impulso acelera e aquilo que o mordeu voa para trás, levando um pedaço do seu membro. Mesmo com o condutor sangrando, o carro não parava. A família Turner queria apenas sair daquela cidade amaldiçoada. Cercados pela poeira e terra levantada e névoa, podia-se ver pelo retrovisor 3 pares de olhos vermelhos-sangue e bocas recheadas de dentes brancos afiados, sorrindo como que zombassem dos passantes.

***

Já havia passado alguns meses de aula e esse era o primeiro feriado desde o início. Ocorrendo em uma quinta, Fred, Daphne, Velma, Salsicha e Scooby teriam 4 dias inteiros para aproveitar. Mas acompanhando o período de pausa, veio uma semana inteira de chuva.

— Tédio. Tédio. Tédio. - repetia Salsicha repetidamente, sentado mal posicionado no gigante sofá de couro, com o cão, que suspirava, descansando a cabeça em suas pernas.

A amiga ruiva ao seu lado fazia lentamente as unhas, com um olhar depressivo contrastando com a cor de esmalte escolhida, rosa claro. Velma estava com a mesma disposição, menos lendo o livro em suas mãos e mais divagando sobre a vida.

O único que parecia genuinamente interessado em existir era Fred. Passara toda aquela manhã se entretendo montando uma armadilha na porta de entrada do seu casarão. Naquele momento, portava um sorriso no rosto, enquanto batia rapidamente o pé no chão, os dedos entrelaçados, esperando que o entregador da comida que encomendou pra turma chegasse.

— Já faz 1 hora que a comida não chega. Provável que nem o pessoal do restaurante esteja no pique. - Daphne se dirigia ao garoto. - E mesmo que ele chegue, qual a necessidade de fazer ele passar por isso?

Fred seguia olhando para a porta e para o relógio e para a porta de novo. Daphne suspirou e seguiu pintando as unhas. Porém, logo que voltou à sua atividade, a campainha tocava.

O garoto loiro correu para a entrada e puxou a maçaneta. Pendurado de cabeça para baixo na frente da casa estava um garoto esguio e sardento, os olhos arregalados estavam olhando para Fred, que sorria, contente com o sucesso da sua armadilha.

— Entrega para Jones. - falou gaguejando, enquanto balançava levemente por causa do vento e da chuva.

Fred pegou o pacote, bateu a porta e correu para a mesinha da sala pra abrí-lo. Os outros quatro chamaram a sua atenção para o garoto que seguia preso pela corda.

— Ah! É mesmo! - e ajudou ele a sair do problema, que logo que foi solto saiu correndo descendo a ladeira da rua.

Se juntaram em torno da embalagem e esperaram Velma desembrulhar. Dentro, havia uma carta sobre uma espécie de bolsa enrolada em plástico-bolha.

— Isso não é a comida! - falou Scooby. Ele e o dono pegaram o plástico irritados e voltaram às suas posições de tédio e sofrimento, mas agora com bolhas estourando de alegria (ou nem tanto.)

Os outros três jovens permaneceram com atenção na caixa. Velma retirou a carta primeiro, um enorme "E" vermelho estava carimbado no topo. Começou a ler:

“Olá, Mistério S.A.. Vocês não me conhecem mas meus olhos não saem de vocês. Esse feriado chuvoso merece uma atenção especial de vocês, não aqui, em Crystal Cove. O mistério está na bela bolsa que enviei para vocês. Divirtam-se."

— Medo. - Daphne soltou. - Pega a bolsa e vamos ver o que tem dentro.

A amiga levantou pela alça e abriu o fecho. Era uma linda bolsa, pequena, feita de couro de crocodilo esverdeado com um fecho dourado todo trabalhado. Não havia nada dentro, porém Velma instintivamente foi olhar a etiqueta. Escrito em uma caligrafia fina estava "Manufaturado em Gatorsburg. Couro 100% natural"

— Impossível. - declarou.

— Como assim ? - Salsicha não conseguiu mostrar desinteresse àquela afirmação.

— Porque não existem mais crocodilos em Gatosburg. Não existem há 40 anos.

***

“ Gatosburg é localizada a 60 km de Crystal Cove, em uma região pantanosa. Fundada em 1894, a cidade começou a ser planejada e construída a mando do magnata William Sheperd, e foi tomando forma em um espaço que poucos consideravam propício a viver.

Nos primeiros anos, ela não havia crescido muito. Não havia qualquer atividade ali que não fosse a serviço do dono das terras. Vendo o insucesso que a sua criação teve, o Sr. Sheperd demandou que seus subordinados procurassem por minas de metais que pudessem ser extraídos, e que depois seriam mandados para as empresas ferroviárias do país.

Todavia, o que eles acharam foi algo muito mais interessante. Acreditando terem encontrado uma caverna para mineração, os exploradores entraram em um local de procriação de crocodilos e lá viram dezenas desses animais. Com o início da indústria da moda focada em artigos de luxo, o couro esverdeado e resistente seria a forma de subsistência da cidade. Porém se tornou muito mais que isso. Após um desastre natural devido às chuvas no Sul, diversas pessoas ouviram sobre Gatorsburg e migraram para lá, para serem recebidos com capacetes e fações e irem explorar o que os habitantes chamaram de "Minas de Crocodilos".

E foram se expandindo e prosperando até meados da década de 40. E a atividade econômica citadina são se reservou apenas à obtenção e à venda do couro. Gatorsburg se tornou um pólo turístico: eram camisetas de crocodilo, bonés de crocodilo, restaurantes que serviam crocodilos e até mesmo a arquitetura em homenagens a eles. No entanto, aquela exploração radical do material seria o fim da região. As minas foram secando, assim como os cofres daqueles que as exploravam, aliado à morte do magnata fundador, que trouxe a instabilidade política. Em 20 anos, a população decresceu 700%, o pântano voltou a tomar conta e Gatorsburg se tornou uma cidade fantasma. "

— E é por isso que não pode ser possível que essa bolsa seja real. - terminou Velma.

— Bom, galera. Peguem nossas mochilas. Está na hora de uma "road trip" a Gatorsburg. - falou Fred, liderando o grupo no que parecia ser o seu próximo mistério.

Do lado de fora da casa, a chuva parecia ter aumentado; ouviu-se um trovão de longe, seguido de um raio no horizonte.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.