Coroa de prata

Tempestades e vasos quebrados


Silêncio mortal.

Quando despertei enquanto a noite caía e as mantas me engoliam não se ouvia um passo,um sussurro,nada vinha dos corredores.

Meu corpo estava sensível,cansado,humilhado e minha mente não processava muito além do incômodo silêncio.

Vesti um vestido roxo com a saia fluida até os joelhos,sapatos pretos e um sobretudo cinza de botões simples que com todo o cansaço me fizeram lutar por bons cinco minutos até se fecharem.

Na grande cômoda daquele quarto eu decidi ignorar o espelho e apenas seguir porta a fora.

E no instante em que eu pus o pé pra fora dali eu senti meu coração afundar.

Meus pulsos tinham as marcas dos dedos de Nathaniel,o ar frio me sufocava e rasgava meus pulmões enquanto eu me apoiava na maçaneta pensando se seria mais seguro voltar pro quarto.

Quando finalmente meu coração parou de retumbar no peito, dei passos vacilantes por corredores pouco conhecidos e iluminados por grandes tochas e luminárias de cobre que deixavam ao menos uma sensação mais calorosa.

O som da chuva começava a tomar meus ouvidos enquanto eu chegava ao jardim e caminhava lentamente até a cozinha.Não pude deixar de conter um sorriso quando senti o calor dos fornos tomar meu rosto ao abrir a porta.Tudo ali estava como deixei,na minha pequena e mísera bolha de tranquilidade.

Respirei sentindo o corpo relaxar enquanto Giordano vinha com a expressão preocupada e me envolvia num abraço quente e enfarinhado.

—Mil perdões,mas meu coração chora ao te ver tão triste minha querida.

Suas palavras eram embargadas de emoção,seus lábios tremiam sob a barba branca enquanto ele me soltava e aprumava seu avental.

—Posso comer alguma coisa?

Minha pergunta despertou a cozinha.

Como um balé caótico todos vinham com coisas que tinham feito e queriam que eu provasse enquanto Giordano me levava a uma velha mesa de madeira escura com marcas de muito uso.

Comi conservas, pães,compotas,frutas,doces e tudo o que mais pudesse vir a imaginação daquelas pessoas alegres que naquele anoitecer tinham a expressão forçada a sorrir mesmo com o coração pesado.

Giordano enrolava a ponta da barba a cada instante em que eu parava de falar ou comer como se eu fosse desmoronar diante dele,as cozinheiras vinham e tocavam minhas mãos, acariciavam meu cabelo mas evitavam um longo contato entre os olhares.

Olhe só pra você, é como olhar pra uma pessoa morta,claro que não conseguem te encarar.

Com um último longo abraço me despedi de todos e voltei a enfrentar o frio dos corredores até que aquele olhar me encontrou.

David coçava a cabeça constrangido,a garota vermelha enrolava os cabelos nas pontas dos dedos e pisava nas próprias botas sem levantar o olhar.

Suspirei encarando a grande janela de ferro e vidro que me fazia ter uma longa vista de todo o jardim que se afogava em gotas de chuva.

Afogado como meu coração

Desviei de qualquer comentário continuando a andar a passos rápidos tentando me agarrar ao calor da cozinha e segui por lances de escada até chegar a biblioteca sentindo o amargo de boas lembranças.

Lembranças falsas, não se apegue a nenhuma delas.

Sentei-me no grande sofá vermelho e fiquei olhando a lareira apagada apenas iluminada pelas luzes das lâmpadas amareladas nos cantos dos cômodos.

Na parede haviam quadros,pinturas do castelo,de pessoas que eu não conhecia,de crianças correndo e finalmente,ali no último canto havia o fantasma.

Meu estômago embrulhou-se e eu quis vomitar no tapete quando reconheci os olhos de Nathaniel vivamente pintados num enorme quadro de moldura prateada.

Nos lábios um sorriso travesso,no corpo um uniforme militar vermelho com uma corda dourada passando pelo peito, mas mãos um florete e aos seus pés um amarelo e cansado cão de caça deitado tranquilamente.

Desviei o olhar segurando lágrimas que queimavam meus olhos.

Até que ouvi o som leve como uma ilusão de alguém entrando.

Orei como nunca antes pra que fosse qualquer pessoa menos ele.

—Sempre gostei dessa sala de leitura.

Aquela voz me deu náuseas,o cheiro de menta me fez tontear enquanto eu me virava pra encarar os olhos de Nathaniel.

—Você está melhor minha amada?Podemos conversar?

Meu corpo tremia,minha voz desaparecera enquanto eu via aqueles olhos tão doces como na primeira vez que o conheci, mas assim como eu teria medo de uma serpente o pânico só aumentou enquanto ele se aproximava devagar de mim mostrando as palmas das mãos.

—Eu não vou te machucar, só quero conversar…

E eu só quero fugir

Dei um passo pra trás batendo as costas na lareira apagada e tocando as costas aveludadas de um livro.

—O que aconteceu...eu estava fora de mim,tem tanto em jogo,tanto acontecendo que eu não consigo te dizer,tanto que ainda não posso fazer por você…Por favor,por favor me abrace...

Mais um passo

E num instante tudo aconteceu.

Me impulsionei correndo pra cima do sofá e pulei sentindo o coração quase saltar pela boca com o esforço mas não parei,com lágrimas nos olhos,criados me olhando e o desespero me tomando eu corri pelos corredores sentindo que minha vida dependia disso.

Passos vinham atrás de mim cada vez mais rápido,os corredores ficavam cada vez mais iluminados enquanto eu corria.

Até que eu o vi e ao invés de sentir o meu porto seguro,tudo o que pude fazer foi cair no piso de pedra e como uma raposa fugindo do grande cão de caça eu disparei pela chuva encharcando todo o corpo com a água fria que aumentava a cada passo meu.

Me deixem morrer em paz.

Corri até a antiga estufa empurrando com o resto de forças que eu tinha uma grande mesa com vasos de barro que se quebravam no chão enquanto eu travava a única entrada da melhor forma que podia.

Encolhi-me debaixo da pequena mesa de ferro tapando os ouvidos contra os trovões que ecoavam ao meu redor enquanto passos se aproximavam da estufa e um vento cortante entrava pela estufa.

Com olhos azuis,a boca aberta como um lobo em busca da presa ele entrou num rompante derrubando grandes vasos de rosas.

—Você só pode estar louca pra me fazer sair num tempo desses atrás de você,eu só posso estar mais louco ainda de vir atrás de você,mas eu fiz uma promessa de tomar conta de você e pretendo cumpri-la.

O desespero tomou conta de mim enquanto ele se aproximava e me puxava pra seu peito.

Ele estava encharcado mas aquele ainda era o calor pra que eu desesperadamente tentava ir.

Mas não era o mesmo.

Gritei agitando os braços e as pernas o máximo que pude até ser solta e ver a porta se abrir jogando a mesa pra longe e a imagem totalmente perturbada do rei se mostrar diante de mim.

Pisei com toda a força na bota de Nathaniel e corri até a janela batendo minha mão no vidro que se estilhaçou em tantos pedaços quanto eram necessários.

Acabe com isso ou eles acabarão.

Minha filha o que está fazendo?Pare com isso agora! Nos deixe te ajudar - o rei bradava se aproximando enquanto eu sentia os cortes lancinantes na mão.

Puxei um caco de vidro pontiagudo da janela e apontei pra eles recuando,vendo o carmesim de meu sangue cobrir o vidro enquanto minha visão começava a turvar.

—Meu amor,vamos conversar,querida me perdoe!Por favor vamos conversar!

Os gritos de Nathaniel eram urros numa face distorcida pelo desespero,o rei não era diferente enquanto avançava pra mim me sufocando com sua presença.

—Chega!Pelo amor de Deus chega!Eu não consigo mais!Chega!

Minha voz ecoava enquanto relâmpagos iluminavam o céu e eu caía de joelhos segurando ainda mais forte o caco de vidro sentindo os cortes cada vez mais fundos.

Com um último suspiro de coragem eu levei a ponta do vidro até a garganta e diante de mim vi Nathaniel cair de joelhos enquanto o rei puxava os cabelos e David chegava pela porta e me olhava mortificado.

Finalmente meu fim.

Sorri enquanto Nathaniel berrava e se jogava no chão estendendo sua mão pra mim,seus olhos desesperados,seus gritos enchendo a estufa enquanto eu sentia a ponta do vidro começar a perfurar minha carne.

—Tudo vai voltar a ser como antes pra vocês, não estarei mais no seu caminho.Voce foi um bom irmão enquanto precisou ser e agradeço por isso.

As rosas cheiram tão bem na noite fria…

E como um leão ele veio.

Num salto o rei se jogou contra meu corpo arrancando o caco de vidro de meus dedos e me puxando num abraço desesperado marcado pelo compasso insano de seu coração.

—NÃO!Pelo amor de sua mãe,por tudo o que meu amor construiu eu não perderei você depois de tantos anos de desespero!

Uma mão do rei estava firmemente presa aos meus cabelos enquanto a outra segurava meu braço dormente e o que eu podia fazer era chorar.

—Eu suplico,por favor tenha piedade de mim...

Minha voz saiu num sussurro afogado por lágrimas enquanto ele me segurava pelos braços e cobria minhas palavras com urros que de tão altos silenciavam os trovões.

Idiota,fraca, patética.

Contra tudo o que eu sentia o que pude fazer foi tocar o rosto do rei com a mão ensanguentada até que ele me notasse e tivesse o olhar em mim.

—Me conte sobre ela -eu sussurrei segurando a vontade de gritar de dor.

Confuso e agoniado ele sorriu de lado beijando minha testa e me aninhando em seu peito e suspirando pesadamente.

—Sua mãe…

—Pai a mão dela!

A voz de Nathaniel rasgou o silêncio e eu me lancei pra debaixo de uma mesa tapando os ouvidos e esperando pelo pior.

Mas o silêncio imperou.

Meu coração martelava,minha cabeça girava sem parar enquanto eu caía de lado me encolhendo o máximo que podia e rezando pra que a escuridão pudesse me esconder de qualquer mal.

—Querida...minha filha nós precisamos cuidar de você,meu amor a sua mão,você inteira não está bem,por favor me deixe cuidar de você.Eu sei que tudo é assustador e tornamos tudo o pior possível pra você e não tem como nesse momento você me perdoar,mas por favor,eu te suplico que me deixe cuidar de você.

Abri os olhos pra dar de cara com o rei deitado no chão estendendo sua mão pra mim,nos olhos uma súplica silenciosa,nos lábios um murmúrio quase insano.

—Socorro… -sussurrrei segurando a mão ensanguentada enquanto a chuva parava de cair.

Nathaniel estava de joelhos chorando com a cabeça no chão,as mãos socando o piso e as costas numa montanha curvada de soluços e tosse sem fim.

Ignorando todo o desespero eu juntei forças e engatinhei passando pelo rei e escorreguei caindo deitada ao lado de Nathaniel que me olhava mortificado.

—Oh Senhor o que eu fiz com você?

Suas mãos tremiam enquanto ele se aproximava e estendia os dedos pra me tocar.

Seu olhar encontrava o meu que covardemente tentava encarar o chão enquanto o rei me aninhava em seu colo e puxava Nathaniel até que ficássemos os três novamente naquela bolha.

Fria,feia e caótica,mas com um amor perdido e desesperado que transbordava de nós.

—Por favor, nos deixe cuidar de você.

A voz do rei era cansada,assustada e suplicante enquanto David se aproximava com o médico e enfermeiras ao lado.

Assenti enquanto ele nos soltava e beijava minha testa mas voltei a me segurar em seu peito quando o enfermeiro quis me tirar dali.

—Por favor não!

Como um leão que defende sua cria ele empurrou a mão do homem e me firmou em seus braços se levantando enquanto um enfermeiro apoiava Nathaniel.

David vinha silencioso carregando um guarda chuva ao nosso lado enquanto o rei me carregava e sussurrava algum tipo de cantiga que eu não conhecia.

Na enfermaria eu tremia violentamente com o frio enquanto ele me colocava numa das macas e acariciava meus cabelos.

Uma enfermeira apareceu com Jenna ao seu lado que entre lágrimas silenciosas tirou toda a minha roupa e me vestiu com um pijama quente.

O médico lavou minha mão ferida sem nada dizer e as lágrimas corriam enquanto o rei cantarolava aos sussurros e beijava minha cabeça.

—S...sua mãe era igualzinha a você, apaixonada,intensa e entregue como nenhuma outra seria.As lágrimas dela silenciavam o reino,as risadas iluminavam até as noites mais escuras.Mesmo doente ela alegrava a todos e nunca a vi tão feliz do que quando você veio ao mundo.Voce sempre foi tudo pra ela,sempre foi a razão de sorrisos tão iluminados quanto você possa imaginar,de cantigas malucas,de danças pelo salão só pra te fazer sorrir.Quando você foi levada a vida no castelo se foi e quando ela morreu a minha vida se foi,mas eu ainda continuei por que tinha a promessa,eu persisti por que jurei que te encontraria e quando consegui eu senti a vida retornar a minha alma,mesmo com medo de que você me odiasse eu estava nadando num mar de amor e ainda estou.Minha filha eu te amo, nós te amamos.Eu sei que é impossível pra você acreditar diante da situação mas essa é a nossa verdade minha amada,por favor,eu suplico a você que nos deixe tentar uma última vez,que nos ajude a sermos uma família de novo.

Os pontos doíam a cada fio que passava pela minha carne,mas meu coração idiota se apegava a aquelas juras como um moribundo se apega a esperança.

Fechei meus olhos enquanto o médico enfaixava minha mão e logo saía sem nenhuma palavra.

—Tudo bem papai... está tudo bem agora -eu sussurrei derrotada pelo cansaço.

Eu não fazia ideia do que seria de mim,mas como um perdido no mar eu me deixei guiar desesperadamente pelo farol daquelas promessas de amor.