Conhecimento Adquirido e Não Confesso

O Estripador de Chesapeake e o Grande Dragão Vermelho


O Estripador de Chesapeake e o Grande Dragão Vermelho

Eu achava incrível e assustador como Hannibal era capaz de me reconhecer pelo cheiro mesmo depois de tanto tempo. Ele provavelmente já tinha mapeado todas as minhas novas características naqueles poucos segundos. Se é que eu havia mudado fisicamente.

– Suas mãos estão estragadas, Will, não se parecem com as mãos de um policial. Tem trabalho pesado, imagino. Parece-me um tanto bronzeado. A cor fica bem em você. Está morando em algum lugar perto da praia? Adoraria visita-lo qualquer dia desses.

É claro que isso nunca aconteceria. A estadia de Hannibal naquele manicômio era permanente. E de jeito nenhum o queria perto de Molly ou Walter.

— Estou feliz que tenha vindo me ver, Will. Minhas visitas são sempre profissionais. Psiquiatras de quinta e pseudo-intelectuais.

– Minha visita também é por motivos profissionais, Dr. Lecter – quis deixar claro.

Os olhos de Lecter se estreitaram minimamente. Notei quando ele, discretamente, olhou para a aliança em minha mão esquerda. Pensei que ele fosse fazer algum comentário a respeito ou me indagar sobre o assunto, mas ele não o fez.

— Não vamos mais nos chamar pelo nome?

– Quanto menos pessoal, mais confortável eu fico.

Hannibal estava mais magro, mas não muito diferente do que eu me lembrava dele. Seu cabelo fora aparado mais curto do que ele costumava usar e havia agora mais fios cinza do que loiros. Estranhamente, ele parecia mais jovem. Seus olhos pequenos e castanhos tinham a mesma intensidade e voracidade. Senti como se ele fosse capaz de olhar dentro da minha cabeça.

– Quanto tempo faz, Will? Três anos? Pensei em você todo esse tempo, e em como viemos parar onde estamos agora. Você tem uma família, Will? Você finalmente resolveu ouvir meus conselhos e percebeu que precisa de contato humano, que a companhia dos seus cachorros não é suficiente. Diga-me, é um enteado ou enteada? Imagino que não seja um filho biologicamente seu. Você não suportaria transmitir as características terríveis que você tanto odeia. Então? Há uma criança na sua vida, Will? Eu te dei uma criança, se é que se lembra.

Trinquei os dentes. Eu sabia o que ele estava tentando fazer. Mas mantive o foco.

— Estou aqui por causa de Chicago e Búfalo. Deve ter lido a respeito nos jornais. Sobre os Jacobi e os Leeds.

– Li, mas não pude recortá-los. Não me deixam ter uma tesoura.

– O FBI concordou em requisitarmos sua ajuda nesse caso. Posso te dar acesso aos arquivos e poderá ver as fotos. Esse novo assassino parece bem esperto e tem métodos peculiares, achei que você teria uma opinião a respeito.

Hannibal sorriu novamente. Seu olhar perscrutador não saia de cima de mim.

– Você só veio aqui pra me ver. – Falou como se o fato fosse uma grande vitória para ele. – Veio sentir o velho cheiro de novo. Por que não cheira a si mesmo? Você e eu somos iguais, Will. Espera voltarmos a nossa velha dinâmica?

– Essa rotina ficou no passado, Doutor – dei as costas, decidido a ir embora e não pisar mais ali.

– Porque você é um novo homem, não é? Dê-me o arquivo. Em uma hora poderemos debater sobre. Como nos velhos tempos.

Voltei e coloquei as pastas num pequeno compartimento, que permitia passar coisas a ele sem precisar abrir a porta.

Hannibal me ajudou a ver pontos que eu havia ignorado e me sugeriu a dar uma olhada em locais que eu não fora, como os jardins e as redondezas das residências. Hannibal estava convencido de que os jardins eram elementos importantes para o assassino na escolha das famílias.

Ele também não perdeu a oportunidade de me provocar, questionando o que eu vira e o que eu sentira quando me coloquei no lugar do assassino. Ele sabia muito bem o que eu sentia, fazia o questionamento porque isso me levaria a ficar pensando no assunto.

A conexão que eu estabelecia com o pensamento dos assassinos nem sempre era agradável. Por mais que eu tentasse evitar, tudo o que eu via e aprendia contaminava todas as outras partes de mim. Todos os meus valores de moral e decência se horrorizavam com os pensamentos e sonhos que invadiam minha mente, me recriminando por eu compartilhar do prazer e da sensação de poder que os assassinos sentiam ao fazer suas vítimas. Infelizmente, nem mesmo as pessoas que eu amava, a quem eu jamais seria capaz de fazer mal, não conseguiam encontrar refúgio na minha mente.

Era complicado ter de explicar que meus pesadelos não eram causados pelas atrocidades que eu via, mas pelas atrocidades que eu me imaginava cometendo. Até hoje, só revelei isto a uma única pessoa. E agora, ele tem acesso a minha alma.

Durante nossa conversa, Hannibal deu a entender que sabia como o Fada do Dente escolhia as vítimas.

– Como ele as escolhe? – indaguei.

Hannibal olhou-me com seriedade.

– Não tenho uma hipótese formada sobre isso ainda. Mas talvez amanhã eu possa ter.

– É claro que você tem uma hipótese.

– Mas não estou disposto a compartilhá-la hoje. Amanhã pode ser que esteja de melhor humor.

– Você só quer que eu venha aqui outra vez.

– Você não quer?

Não respondi, mas pela expressão de Hannibal, ela já tinha percebido que meu silêncio significava que eu concordava com algo que não queria admitir.

– Obrigada pela ajuda, Doutor.

– Os valores de família podem ter diminuído no último século, mas ainda ajudamos nossas famílias quando podemos. Você é minha família, Will.

Me perdi nos seus olhos. Por um instante, senti como se não tivesse vidro nos separando. Como se nem um dia tivesse passado desde aquela tarde em minha casa, quando eu disse que nunca mais queria vê-lo. Senti uma euforia súbita e inexplicável.

— Eu tenho direito a ligações. Recompensa por bom comportamento. Infelizmente, só posso ter ligações privadas com meu advogado, mas por que não me passa o número do seu celular? Se me ocorrer algo que possa lhe interessar sobre o caso, entrarei em contato com você.

– Não. Se tiver algo para me dizer sobre o caso, peça para Alana me avisar.

– Isso foi rude, Will – ouvi-o dizer antes que eu deixasse a sala.

Saí de lá branco. Tive que olhar em torno de mim para ter certeza de que ele não havia saído de lá comigo.

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Os dias eram razoavelmente fáceis, mas as noites eram difíceis. Os pesadelos voltaram e eu me sentia imensamente só. O quarto do motel era quieto demais. Sentia falta da risada do Walter e da voz da Molly. Sentia falta deles. Eu ligava para Molly todas as noites e sempre que eu precisava ouvir a voz dela, mas nem sempre ela podia atender. Eu não a culpava, ela também tinha uma vida. Pensar nisso me deu uma sensação estranha, como se tivesse ocorrido uma ruptura entre nossas vidas.

Eu me sentia só e não demorou para que ele voltasse a visitar a minha mente. Sua imagem se formava diante de mim, sentado numa cadeira no quarto do motel, tão real quanto o verdadeiro Hannibal.

– Você está bem, Will?

– Estou – respondi bruscamente. Enchi um copo com Vodca. O líquido desceu rasgando a garganta.

– Você não me parece bem. Parece tenso. Espero não ser eu o responsável por isso.

– Não, não é por sua causa. Você nem mesmo é o Hannibal. É só uma alucinação da minha cabeça, o que com certeza faz de mim um louco.

Ele soltou o botão do paletó, deixando-o aberto. Cruzou as pernas e se empertigou na cadeira. Parecia ter vida própria.

– Se eu estou aqui, Will, é porque o seu subconsciente anseia a minha companhia. Mesmo que você não admita. Você me escondeu na parte mais profunda da sua mente, por todo esse tempo, mas eu sempre estive aqui. Esperando você me chamar. Admita, Will, você não conseguiria ficar longe por muito tempo.

– Eu fiquei. Por três anos. E não voltei por você, voltei para ajudar a prender um louco como você.

– Acredita mesmo nisso? Não terá voltado pela euforia da caça? Diga que não se sentiu feliz, nem mesmo um pouquinho, ao conversar comigo novamente. Como você disse, eu sou produto da sua mente. Eu não poderia estar mentindo, poderia?

– Cale a boca.

— Está tudo bem, Will. Não há nada de errado em querer a companhia de alguém que nos agrada. Ficarei aqui até que você durma.

E ele ficou. Não consegui fazê-lo desaparecer. Ou, talvez, eu só não quisesse ficar sozinho. De qualquer forma, a “presença” dele era melhor que os pesadelos.

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Voltei ao Hospital Penitenciário seis dias depois, Hannibal pareceu contente com o meu retorno e não fez qualquer menção a minha demora. Desta vez, ele foi mais receptivo e amistoso, quase como antigamente. E quando percebi, eu estava voltando lá outra vez e outra vez. Alana me recebia com uma expressão de acusação. Havia desconfiança em seu olhar. Minhas visitas estavam se tornando cada vez mais frequentes. Alana sabia tão bem quanto eu que minha proximidade com Hannibal não poderia resultar em boa coisa.

– O que está fazendo aqui de novo, Will? – sua voz soava como um alerta.

– É sobre o Fada do Dente, Alana. Sinto que estamos perto de apanhá-lo.

– Quando você diz “nós”, está se referindo a você e o Jack ou a você e o Hannibal?

Não proferi resposta alguma.

– Tenha cuidado, Will. Sabe que Hannibal está sempre tramando algo. Sempre. E acredito que ele não tenha as melhores intenções para você. Afinal, ele já destravou a porta da sua mente uma vez, duvido que ele vá resistir a fazer isso de novo – Alana me olhou dos pés a cabeça. – Me pergunto se você permitiria isso.

– Só estou aqui pelo caso, Alana – creio que meu tom deva ter soado um tanto rude.

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Eu saía da casa dos Leed com algumas coisas que eu acreditava serem evidências, quando me deparei com uma figura conhecida. Esguia, nariz empinado, câmera em mãos, cachos vermelhos. Freddie Lounds.

– Estou surpresa em vê-lo de volta à ativa, Will. Jurava que nunca mais o veria depois da prisão do Hannibal. Você já foi vê-lo? Antes que minta, saiba que eu sei que você foi. Ainda não aprendeu sua lição ou sentiu tanta falta dele assim?

– Tchau, Freddie.

Freddie continuou me seguindo, como uma mosca irritante.

– Quando o FBI te chamou?

– Você sabe muito bem quando. Fez o maior alarde no seu jornalzinho de quinta.

– Ah, então você leu? – ela sorriu. Era difícil não ler aquela droga sensacionalista, estava espalhada em cada banca de esquina. – “Maníaco assassino é consultado sobre crimes pelo agente que ele mesmo tentou matar”. Foi recorde de vendas, sabia? O FBI deve estar bem desesperado, já estar consultando loucos. Mas como costumam dizer, é preciso de um para pegar o outro.

– Você está falando de mim ou do Hannibal?

– O que você acha? – sua expressão era de pura provocação. Dei as costas a ela. – Se eu fosse você, Will, eu me usaria. Psicopatas são narcisistas, adoram ler sobre si mesmos... Mesmo quando não gostam do que está escrito.

Parei por um momento fechando os punhos. Ah... se eu pudesse...

Ignorei a Freddie e fui embora.

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Hannibal ainda não havia me contado como o Fada do Dente escolhia as famílias e eu ainda não havia descoberto isso sozinho. No geral, Hannibal sempre dava um jeito de me fazer voltar para vê-lo. Talvez eu também arranjasse desculpas para voltar. O fato é que nunca fui mais eficiente quanto sou com a orientação dele. Sempre que descobria algo novo, eu sentia a necessidade de dizer a ele.

Foi o que fiz quando encontrei um entalhe em uma árvore perto da casa dos Leeds. Era um caractere chinês, simbolizava o Dragão Vermelho. Foi nesse momento em que Hannibal sugeriu que eu fosse ao museu, procurar por uma pintura de William Blake chamada O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol.

Eu só não esperava encontrar o próprio Dragão Vermelho no Museu do Brooklyn.

Hannibal fizera outra vez. Ele encontrara um meio de manipular toda a situação. Entrara em contato com o assassino que se auto intitulava Dragão Vermelho e deu um jeito para que nós dois nos encontrássemos. Infelizmente, o sujeito conseguiu escapar antes que eu o apanhasse. Mas agora eu já conhecia seu rosto e sua fascinação pelas pinturas de Blake, isso deveria ter alguma serventia. Tínhamos menos de 10 dias para a lua cheia. E o Dragão devia estar agora mais desesperado e cauteloso do que nunca.

Eu estava irritado com Hannibal. Irritado por ele estar me enganando mais uma vez. É claro que eu tinha consciência de suas maquinações e tinha certeza de que ele sabia mais do que me contava, mas não pensei que ele conhecesse o assassino.

– Contemple o Grande Dragão Vermelho! – eu declamei com sarcasmo ao entrar na sala. Hannibal me encarou com uma expressão que beirava o cinismo.

– E contemplou?

– Você sabia que ele estaria lá, por isso me mandou. Ele contatou você, tem conversado com ele todo esse tempo e não me disse nada. Esse não era o acordo que tínhamos, Doutor.

– Que acordo nós tínhamos, Will? Você me pediu ajuda com o caso, eu te ajudei com o caso. Te levei direto a ele, não levei?

– Me fala quem ele é?

– Não sei quem ele é. Nunca o vi e ele nunca me deu outro nome. Apenas O Grande Dragão Vermelho. Gosto deste Dragão, Will. Ele tem potencial e desprendimento para fazer o que você se julga incapaz. Ao menos ele quis manter contato.

Olhei para Hannibal, incrédulo. Aquilo era algum tipo de punição por eu não ter lhe dado o número do meu telefone? Hannibal sempre arranjava maneiras engenhosas de me punir, ou de me ensinar, como ele preferia pensar. Repentinamente, uma luz se acendeu em minha mente. Claro, as ligações privadas. O Dragão devia ter se passado pelo advogado de Hannibal. Era a única maneira. Uma alternativa esperta e uma grande falha na segurança do Hospital.

– Humph! Não estou interessado nos seus joguinhos, Hannibal. Há uma família lá fora que não sabe que ele está chegando. Me diga como ele as escolhe.

– Pelas redes sociais, eu suponho.

– Está disposto a deixar eles morrerem?

– Eles não são a minha família, Will. E não estou deixando eles morrem. Você está. Faltam sete dias para a lua cheia. Tic-tac.

Dei graças por haver uma parede de vidro nos separando, eu seria capaz de esganá-lo. Talvez fosse justamente o que ele quisesse. Fazer crescer em mim um desejo por sangue.

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Uma ligação no meio da noite. Um pesadelo que se tornava realidade. O Dragão atacara minha família, e por um milagre Molly e Walter conseguiram escapar com vida. Infelizmente, Molly fora baleada durante a fuga.

Enquanto eu dirigia para o hospital, não pude deixar de me sentir culpado. Eu devia estar lá para protegê-los. Eu devia saber que o Dragão iria atrás da minha família e eu sabia exatamente quem dera a ideia a ele.

Depois que tive certeza de que Molly estava estável e fora de perigo, deixei ela e Walter sob proteção policial e fui acertar as contas com certo canibal.

– Estou cansando de vocês doidos desgraçados! – entrei na sala/cela esbravejando. Eu estava furioso e profundamente indignado com o que ele tinha feito. – O que você disse ao Dragão? O que disse a ele?

Hannibal me olhou com seus olhos castanhos, estreitos como os de uma víbora.

– Eu disse a ele para se salvar e matar todos. E dei o endereço da sua casa... Como vai a sua esposa?

– Como vai a minha esposa? Ela teve sorte de sobreviver. Como pôde fazer isso?

– Eu te disse, Will, eles não são a minha família. Você é.

– Molly e Walter não têm nada a ver com qualquer tipo de problema que você tenha comigo, não tinha que envolvê-los nisso.

– Mas eu não os envolvi. Você fez isso quando decidiu trazê-los para a sua vida.

Eu bufei de raiva.

– Eu me vinculo a Abigail, você a tira de mim. Eu me apego à ideia de um filho, você o tira de mim. Eu consigo uma família, você tenta tirá-los de mim. Você não quer que eu tenha nada além de você.

– Eu só quero o melhor pra você, Will. Pessoas como você e eu não podem se dar ao luxo de possuir uma família. Estamos sempre sozinhos.

– Eu não estou sozinho, você está. Não quero mais falar com você.

– Sabe qual é o seu maior problema, Will? Você está em constante negação. Você nega sua natureza, seus instintos, seus sentimentos, suas vontades. Pode esconder sua natureza e seus defeitos, mas não vai conseguir escondê-los para sempre. Uma hora eles virão à tona e os outros notarão. Pode se iludir o quanto quiser, Will. Pode conseguir quantas famílias quiser, mas no fundo você sabe que nós dois sempre estaremos sozinhos sem um ao outro. Porque ninguém jamais poderá entendê-lo e aceitá-lo como eu.

Olhei para ele. Meus olhos estavam marejados. Hannibal voltou a falar, em um tom quase doce.

– Você não está sozinho, Will. Eu estou do seu lado. Sempre estive. Sabe que comigo você pode ser exatamente quem você é. Você inteiro, completo. Não tem que fingir. Não para mim.

Sem perceber, eu estava calmo novamente.