De Volta à Nova Velha Vida

Estava feito.

Exatamente onze meses após a queda, Molly e eu nos separamos.

Obviamente, não havia mais o mesmo amor e o carinho de antes. Mas isso não anulava o fato de que eles tinham existido por um bom tempo, nem apagava todas os bons momentos que passamos juntos. Lembrando desses momentos agora, eles me parecem estranhos, como se fossem as memórias de outra pessoa.

Era melhor agora, enquanto ainda havia carinho e respeito entre nós, do que deixar chegar ao ponto em que não suportaríamos mesmo olhar na cara um do outro.

Durante todo o processo de divórcio, as papeladas, os advogados e toda a burocracia, eu acreditei que não seria afetado. Molly estava convicta de sua decisão, eu também. Desde meu retorno para casa, nós estávamos caminhando para este destino. Na verdade, eu estabeleci os alicerces para esse final no momento em que aceitei a proposta de Jack para ajudar a capturar Dolarhyde.

“Eu estarei diferente quando eu voltar.”

Todos nós estávamos. Molly fazia parte do passado. Uma curta vida perfeitamente normal, fadada ao finito.

Eu achei que não seria afetado pela nossa separação. Eu estava enganado. Eu realmente amei Molly. Provavelmente, eu ainda a ame. Por isso sei que o melhor para ela e Walter é deixa-la partir. Ela estará mais segura longe do meu mundo. Eu chorei ao final de tudo, quando já estava sozinho. Chorei como se uma parte de mim tivesse morrido.

Talvez tivesse mesmo.

“Como você Will, ele também precisa de uma família para fugir do que há dentro dele.”

Molly e Walter foram morar com os pais de seu marido falecido. Eu não permaneci na nossa casa, voltei para a Virgínia, mas não voltei para minha antiga casa em Wolf Trap.

Voltei a morar próximo as docas. Dormia num veleiro velho, que havia comprado. Eu tinha trabalho que mantinha minha mente ocupada com peças de motores. A noite eu ia para um bar me encher de álcool até estar cansado o suficiente para apagar e dormir a noite inteira, sem sonhar. Não era uma rotina muito agradável nem muito sadia, mas eu precisava continuar com isso para funcionar. Às vezes, eu fraquejava, e pegava aquela bendita carta novamente.

Antes de deixar o hospital depois que acordei do meu coma, uma enfermeira veio até mim quando Molly não estava.

― Senhor Graham. Pediram para lhe entregar isso quando estivesse acordado.

Eu não perguntei a ela quem havia mandado. Eu sabia que ela não teria a resposta e eu sabia muito bem quem era o remetente. Naquele dia eu li a carta e a escondi comigo. Eu tinha então a certeza que Jack Crawford não tinha, Hannibal estava vivo.

Quando voltei para casa com Molly, voltei esperando fazer nossas vidas funcionarem como antes, mas nunca me livrei daquela carta. E aqui estou eu novamente, relendo-a, apesar da visão estar enevoada pelo efeito do álcool.

Caro Will,

Mais uma vez o destino nos dá uma nova chance. Que caminho tomaremos agora? Não podemos simplesmente voltar ao que éramos antes, você verá que é impossível. A vida não será a mesma, porque você já não é o mesmo.

Você finalmente saiu da sua crisálida, e eu vi suas asas e elas são lindas, perfeitas, com seu design único e admirável. Você não pode voltar a esconder suas asas, Will. Não há motivo para se envergonhar de algo tão belo.

O Dragão foi obscurecido pela sua glória, Will. Ele foi subjugado por nossa vontade. Eu vi o cordeiro se transformar num leão, e como foi esplendoroso! Toda a sua fúria, violência e paixão. Toda a sua intensidade perfeitamente sincronizada com a minha. Foi maravilhoso de ver.

Sonho com a nossa dança todas as noites.

Sabe, Will, os falcões são uns dos melhores caçadores da natureza, mas eles caçam sozinhos. Essa é a fraqueza deles. Imagine o que eles poderiam fazer se começassem a caçar juntos.

Espero que tenha uma boa recuperação.

HL

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Jack

Quando Jack Crawford soube que Will Graham tinha se separado da mulher, seus instintos lhe disseram para vigiá-lo. Depois de dois meses, Jack resolveu ir ele mesmo checar Will, ver como ele estava. Ou mais precisamente, com quem ele estava.

Toda a questão do Will foi complicada desde o início. Jack estava grato por Will ter matado Dolarhyde e, até onde se sabe, ter tentado matar Hannibal. Por essa gratidão, Jack fez o máximo possível para limpar o nome do Will. Jack foi a coletivas de impressa para esclarecer que as notícias de que o agente Will Graham tinha ajudado na fuga de Hannibal Lecter eram um equívoco. O agente Graham fora pego como refém durante a fuga, esta foi a versão final. Jack não podia dizer que tudo fazia parte de um plano que saiu parcialmente errado.

Sim, Dolarhyde morreu. Mas Hannibal escapou. Essa não era uma troca muito boa.

Entre a fuga na estrada e o hospital, aconteceram coisas que apenas Will e Hannibal puderam testemunhar. Hannibal tinha dito algumas coisas, que bem mais tarde foram confirmadas pelo Will. Mas Jack sabia que seria tolice confiar cegamente em Will a essa altura. Por isso ele ordenou que vigiassem Will.

Aparentemente, Will vivia sozinho desde que a esposa o deixara, nem cachorros ele voltara a adquirir. Não entrara em contato com ninguém além de seus colegas de trabalho, com quem também praticamente não interagia.

Jack encontrou Will em um bar de quinta categoria. Havia muitas pessoas bebendo e conversando. Um grupo numa partida de bilhar. Alguns dançando em meio a fumaça de cigarro. A conversa praticamente ocultava a música.

Quase não o reconheceu. Will cheirava a álcool e graxa, todo desalinhado. Cabelo e barba crescidos, que o fazia parecer muito mais velho e escondiam suas feições, ele não estava muito diferente dos outros tipos que frequentavam o local.

Jack quase se sentiu culpado pela situação de Will. Mas ele fizera tudo o que podia para limpar o nome de Graham. Tudo bem, ele tinha colocado o pescoço de Will na guilhotina, mas ele nunca disse para Will se apegar ao carrasco. Will era adulto. Ele podia fazer suas próprias escolhas.

Se antes Jack se preocupava com o mal que ele poderia ter causado a Will, agora ele se preocupava com quem Will Graham seria depois de matar Dolarhyde.

Jack se aproximou e se sentou no banco vazio ao lado de Graham.

― Está perdendo seu tempo aqui, Jack. Ele deve estar em um país bem distante, Grécia talvez. Ou em algum lugar que você nem pensaria em procurar. Brasil, quem sabe.

O tom afiado e rude. Estranhamente, Jack se lembrou da primeira vez que viu Will Graham. Um professor em Quântico com todos os atributos de um nerd. Um tanto rude quando se sentia encurralado, mas muito doce e gentil quando não se tentava invadir seu espaço.

― Não precisa se armar, Will. Vim para ver como você está.

Will riu desdenhosamente.

― Sei. É claro. Também não vou ajudá-lo em nenhum caso novamente. Se é por isso que está aqui.

― Porque está fazendo isso consigo mesmo? Você é inteligente, Will. Pode conseguir um emprego melhor, sair desse lugar...

― Eu cresci num lugar assim. É onde pessoas como eu passam despercebidas.

― Pessoas como você?

― Aqui ninguém se importa se você já foi preso contanto que conserte as coisas e limpe o chão de boca fechada. Ninguém aqui sabe quem eu sou.

― Você poderia voltar a dar aulas em Quântico. Grande parte da Academia te considera um herói.

― Não vamos mentir, Jack. Apesar do que você possa ter dito para a imprensa, muitos ainda acreditam que eu ajudei Hannibal a fugir. Você só quer que eu volte para Quântico porque seria mais fácil me vigiar lá. Acha que não sei de seus espiões? O que esperava encontrar? Eu já disse: está perdendo o seu tempo. Nunca mais o vi, desde a queda.

Jack encarou Will por um momento.

― Não eram espiões, eram vigias. Para sua segurança. Hannibal poderia tentar mata-lo, como tentou no passado.

― Se ele quisesse me matar agora... eu deixaria ― Will respondeu de maneira mórbida.

― Por quê?

― Porque já estou morto.

Eles ficaram alguns minutos em silêncio, escutando o barulho e a música do bar. Finalmente, Jack disse:

― Quando me disseram como você estava, eu achei que fosse porque Molly o deixou. Agora acho que você está assim porque ele o deixou.

Will olhou furiosamente para Jack. Ele se levantou e jogou o dinheiro sobre o balcão. Saiu sem olhar para trás.

― Quer que continuemos a vigiar Will Graham, senhor? ― perguntou o outro oficial quando Jack entrou no carro.

― Não. ― Jack afrouxou a gravata e suspirou. Ele estava cansado. Muito cansado. Mais de um ano se passara e eles não tiveram uma pista sequer de Hannibal ou a tal mulher oriental. ― Não mais. Aquele não é mais Will Graham.

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Will

Um ano, seis meses e três dias desde a queda.

Voltei para o barco a noite, depois do trabalho, como todos os dias. Fiquei surpreso ao encontrar um pequeno pacote endereçado a mim largado no meu convés. Olhei o píer e tudo em volta antes de pegar o pacote e me trancar na cabine.

Minhas mãos tremiam quando abri a caixa. Eu não fazia ideia do que haveria ali dentro ou o que eu esperava encontrar, mas a minha sensação era a de que o próprio Hannibal fosse sair dali, por mais absurdo que a ideia fosse.

Havia um pequeno telefone envolto em plástico bolha, desses bem baratos, praticamente descartáveis, e um cabo carregador. Liguei o aparelho e constatei que havia apenas um único número registrado nele. Eu demorei alguns minutos antes de decidir o que eu queria fazer.

Eu estava sóbrio esta noite. Por isso, me coloquei meio copo de whisky e engoli de uma vez. O álcool desceu queimando a garganta. Tentei normalizar minha respiração e liguei. A cada toque da espera, meus batimentos cardíacos pareciam aumentar. A cada toque eu sentia que era um passo dele até mim. Eu esperei.

Esperei.

Caiu em caixa postal.

A decepção teve gosto mais amargo em minha garganta do que a bebida. Não tentei ligar outra vez. Eu não queria parecer desesperado. E também, ele poderia estar em uma situação que não o permitia atender. Eram quase oito da noite. Deixei o telefone sobre a mesa. E esperei.

Era quase meia noite quando o telefone tocou.

― Alô?

― Olá, Will.

Eu parei de respirar por dois segundos. Depois de tanto tempo, era realmente a voz dele.

―Olá, doutor.

― É bom finalmente ouvir sua voz ― a voz de Hannibal era calma. ― Você pode falar agora? Não quero atrapalhá-lo.

― Não. Você pode falar. Estou sozinho. ― Eu me sentia ansioso, feliz e assustado. Era difícil de explicar. Era como reencontrar um parente que eu não via há muito tempo. Mas eu não me esqueci que da última vez que estivemos juntos, minhas ações não foram das melhores, então... eu estava cauteloso. ― Você... está... bem?

― Estou. Obrigado por perguntar. Perdoe-me pela demora em entrar em contato. Eu tinha que encontrar um esconderijo seguro e precisava ter certeza de que o FBI não estava mais o seguindo. Eu não podia arriscar a aumentar a desconfiança do FBI sobre você, não depois que eles começaram a acreditar você não estava em contato comigo.

― Você disse a Jack que eu tentei te matar.

― Eu disse. Isso é verdade. Eu também tentei fazer Jack acreditar que eu estava bravo com você por isso. ― Hannibal riu. ― Isso não é verdade. Eu sabia que Chiyoh viria antes do reforço policial chegar. Também sabia que não poderia leva-lo comigo sem arriscar sua saúde e a prisão de nós dois. Então, enquanto estava no hospital e depois, fiz o máximo para protege-lo do FBI. Agora você entende porque demorei tanto?

― Sim. Eu imaginei que fosse por isso. Ainda assim, foi uma longa espera.

― Eu também queria lhe dar tempo para pensar sobre o que você quer para seu futuro.

De alguma forma, eu sabia que Hannibal estava se referindo ao fato de eu ter voltado para Molly e de ter tentado levar minha antiga vida. O fato é que a minha antiga vida nunca foi com Molly, sempre foi com Hannibal. A vida com Molly foi apenas tempo emprestado. Agora, eu estava prestes a estar de volta a uma nova velha vida.

―Teve uma boa recuperação?

― Sim. Apenas mais algumas cicatrizes novas. Já estive em situações piores.

― Eu acredito...

O tom de Hannibal era divertido. Eu me lembrei de seu sorriso e imediatamente quis poder vê-lo e... tocá-lo. Ter absoluta certeza de que ele estava ali. Percebi que ele tinha ficado silencioso.

― Você ainda está aí?

― ...

― Hannibal?

― Estou com você, Will. Só queria ouvir sua respiração. Estou tentando recriar a sua imagem aqui comigo.

Eu senti uma coisa estranha quando ele disse aquilo. Contentamento. Calor. Ansiedade.

― E... Onde seria aqui?

― Mais perto do que você imagina.

― Isso, isso não é perigoso?

― Estou sendo cuidadoso. Mas fico feliz em saber que você se preocupa. Você ainda usa a mesma loção horrenda?

Eu comecei a rir. Ele também.

― Infelizmente, sim.

Nós caímos em silêncio novamente. Me concentrei no som da respiração dele. Eu pude sentir seus olhos me analisando, mesmo sabendo que ele não estava ali comigo.

― Eu sinto muito por Molly. Ela parecia ser uma mulher admirável.

― Ela é ― e repeti com a voz repentinamente embargada. ― Ela é. ― era como sentir uma ferida reaberta.

― Se ela não é capaz de enxergar a beleza da sua natureza, Will, se ela não é capaz de aceitá-lo por inteiro, então ela não merece você.

― Talvez eu não mereça ela.

― Sente a falta dela?

― Nem tanto quanto imaginei que sentiria.

― Sentiu a minha falta?

O tom dele era cru, não traía nenhuma emoção. Hesitei. Pensei em mentir, mas então...

― Mais do que imaginei que sentiria.

Hannibal ficou em silêncio novamente. Ele ficou tanto tempo quieto que pensei que ele tivesse me deixado. Estava abrindo a boca para chama-lo quando ele falou:

― Eu quero te ver, Will. Se você estiver confortável com isso.

Respirei fundo e tomei fôlego para continuar.

― Claro. Tudo bem. Hum... quando e onde?

― Sabe onde fica a residência da doutora Du Maurier?

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.