Como Ser um Príncipe - Interativa

Jardim de rosas cheias de espinhos


Dia 59

Liam Éire tinha os cotovelos apoiado nos joelhos e o corpo inclinado para frente. Ele permanecera assim durante todo a história contada pelo Conselheiro Sean e continuou assim quando ele a finalizou.

—Acabou? - Ele quebrou o silencioso e a atmosfera mágica e enigmática que resultara da narração.

Ele sentira uma série de emoções enquanto Sean contava a história. Ficara dividido entre o que pensar das atitudes de Sinead Hibernia. Fora uma decisão muito arriscada, mas de certa forma, genial – Liam poderia imaginar o que uma intervenção militar causaria aos habitantes de Wicklow. E ele, como um garoto que sempre fora apaixonado por histórias de mistério, aguçou sua curiosidade ao saber que a Força Especial – os espiões - estiveram infiltrados na sua província algumas décadas atrás.

Porém, Liam também sabia do final daquela história. Sabia que o seu bisavô, o Duque Norbert Éire I, escolhera se esconder em Wicklow Hills, buscando se ocultar entre o caos que dominava o lugar. De fato, não recebera muita atenção da população, muitas vezes ignorando o seu título para passar despercebido. Ele e o filho viveram lá até o fim da vida, assim como o pai de Liam, Douglas, nascera e crescera ali. Fora devido aos esforços de seu pai que o nome Éire passou a ter uma reputação melhor na cidade e província - era como se eles estivessem consertando, ao desenvolver a produção agrícola na região, o que, no passado, "eles mesmos" erraram.

Douglas Éire, Maire Seamair Éire, o tio Frederick Seamair e a falecida tia Ágatha tiveram uma enorme dificuldade em restaurar o valor de Wicklow e com muito esforço isso foi conquistado e lhes proporcionou os títulos de conde e condessa, e visconde e viscondessa, respectivamente.

Mas e então? Os pais de Liam e seus tios haviam feito algo benéfico e de extrema importância. Mas talvez não precisassem se os esforços de sua bisavó Sinead Hibernia tivessem gerado algum resultado.

—É isso? - Ele tornou a repetir, obviamente estressado. - Ela fez essa bagunça toda para não dar em nada?

Ali Mackiney, sentada na cadeira ao seu lado no escritório do Conselheiro Sean o olhou com uma mistura de piedade e receio. Era impressão sua ou Liam parecia estar experimentando muitas emoções ao mesmo tempo?

O conselheiro, por outro lado, olhou para Liam com divertimento estampado no rosto... e um pouco de arrogância.

—Claro que não. - O homem de noventa e dois anos abriu a gaveta de sua escrivaninha e tirou de dentro dela um caderno com capa de couro, com aparência muito antiga. - Encontrei o diário da princesa há alguns dias.

Os olhos de Liam e Ali se arregalaram.

O velho homem passou o caderno ao príncipe fazendo pouco caso.

—Li ele inteiro. - Contou. - Há muito remorso, angústia... ambição. Mas isso não importa. A princesa faleceu alguns anos depois de toda a confusão que causou... Mas foi bem há tempo de conseguir a resposta que procurava.

Liam tirou olhar do documento para voltá-lo ao conselheiro, ainda mais surpreso do que quando vira o diário.

—E o que é? - Questionou, inquieto.

—Antiga Irlanda do Norte.

O príncipe parou, olhou para Ali, perguntando em silêncio se ela ouvira a mesma coisa e, sentindo toda a adrenalina esvair-se de seu corpo, voltou-se ao conselheiro como se não tivesse escutado corretamente:

—O que?

—Ela descobriu sobre a existência da Antiga Irlanda do Norte, ainda viva depois dos ataques que sofreu na guerra. E contou que os espiões descobriram que era esse grupo os responsáveis pelo ataque à Wicklow.

Liam simplesmente não queria acreditar nisso.

—Ela sabia esse tempo todo e não contou para ninguém?

—Nós perdemos nossas casas! - Ali exclamou, também não conseguindo se conter. - Foram tomadas pelo governo porque durante todos esses anos os ataques não se cessaram! Ninguém sabia o motivo, apenas ela. E ela não contou para ninguém?

—Como eu disse... - O velho Sean respondeu impaciente, retirando os óculos da ponta do nariz. - Ela faleceu logo depois de descobrir essa informação. - Ele deu de ombros. - E talvez ela tivesse preferido esconder o diário para que ninguém divulgasse essa descoberta de qualquer maneira que não como uma conquista dela mesma. Ela desejava ter se mostrado genial, no final das contas. É a minha teoria... Nunca gostei dela mesmo.

Liam começava a dar nome ao novo sentimento que esquentava o seu corpo rapidamente, quando bateram na porta do escritório duas vezes e, sem esperar uma resposta, uma afobada e um puco descabelada Caitlin Dublin entrou no aposento.

Ela ignorou o conselheiro e a presença da selecionada e se dirigiu imediatamente ao príncipe.

—Liam, Charlotte está fazendo as malas e eu sei que você não a despachou, porque as eliminações que pretende fazer serão ao final da Semana da Paz. Ela não quis falar comigo e parece muito abalada! E eu andei lendo as informações que reuni sobre as selecionadas... você se lembra que me pediu essa investigação, certo? Então, estava lendo e vi que a família dela encontra-se com sérios conflitos, frequentemente sendo ameaçada e suas propriedades invadidas, roubadas... E eu acredito que algo tenha acontecido e Charlotte esteja se vendo obrigada a voltar para Galway!

Ela falou tão rápido e tão inesperadamente que as três pessoas que a ouviram ficaram paralisadas durante longos segundos, tentando processar tudo o que ela havia falado.

Caitlin olhou para todos, esperando uma reação e, impaciente, quando não a recebeu, revirou os olhos e voltou a falar.

—Ela não quer falar. Algo aconteceu.

—Está bem... - Respondeu Liam, concordando, mas não encontrando atitude melhor a tomar.

Mas Sean não pareceu confuso. Fez uma breve pergunta:

—O sobrenome da jovem é O'Dornan?

—Sim... - Foi Ali quem respondeu, insegura.

—Então estou certo em dizer que é esta a selecionada que é neta de Gerard O'Dornan, reconhecido juiz de Galway, cuja família tem uma importante aliança com a monarquia.

Pelo modo que falou aquilo, todos se empertigaram para ouvir o que o conselheiro tinha a falar, pois já estava claro que ele sabia muito mais do que contava.

—Tenho fortes suspeitas que a senhorita O'Dornan foi chantageada. - Contou sem hesitações. Seu tom de voz era firme, mas com uma nota até infantil de rebeldia. Lembrava muito o Sean de apenas dezoito anos que assumiu o cargo de conselheiro como substituto. - Sua família anda sendo ameaçada há alguns meses.

—Por que? - Ali perguntou, surpresa e confusa. - Por que ela seria ameaçada e ainda mais aqui no Palácio?

—Pela Antiga Irlanda do Norte.

Caitlin abafou um grito e Ali recuou na cadeira, ainda mais surpresa. Liam, entretanto, se empertigou, impaciente.

—Por que o senhor acha isso?

Tendo tomado a atenção pelo menos do príncipe, Sean se voltou a ela quando respondeu.

—Porque os O'Dornan estiveram relacionados há muito tempo com a monarquia. E há muitos anos, no período da guerra, eles foram responsáveis por dialogar, juridicamente, claro, um acordo entre a Nova Irlanda e a Antiga Irlanda do Norte. - Falou com uma espantosa, mas inegável certeza.

"Durante a guerra, a Rússia atacou Irlanda do Norte, um país menor e simbolicamente mais fraco, para conseguir chegar à Nova Irlanda, seu verdadeiro objetivo. Vossa Alteza já deve ter em mente que as linhagens de nossa nação muitas vezes cruzaram com às russas. - Ele lançou um olhar fugidio as duas mulheres presentes, fingindo que não havia dito nada sigiloso e se apressando para prosseguir. - Com isso, a Irlanda do Norte caiu com o ataque russo e nunca foi capaz de se reerguer, como imaginávamos até pouco tempo."

"Entretanto, nesse período caótico, a rainha da Nova Irlanda estava grávida de seu primeiro filho, o herdeiro. Com a Rússia tão perto de nos atingir e com extremo medo de perder o filho, a única segurança à linhagem puramente nova-irlandesa, nós fizemos um acordo com a Antiga Irlanda do Norte."

"Esse foi acordo feito pela família da senhorita O'Dornan. É tão antigo que talvez nem ela mesma saiba da existência dele. Sinceramente, esse acordo é visto como uma lenda para alguns, como um conto de fadas que nunca existiu".

"O acordo consistia em deixar que a rainha nova-irlandesa se refugiasse no território da Irlanda do Norte durante o período da guerra, sem levantar suspeitas. Enquanto que, em troca, nossa nação recompensaria esse favor com uma quantia em dinheiro... Importante para a estruturação do país após os ataques sofridos."

"Entretanto... Essa dívida nunca foi quitada. Irlanda do Norte nunca se reergueu e durante todas essas décadas todos acreditaram que ela estava condenada para sempre."

"Mas a interferência da Irlanda do Norte documentada por Sinead Hibernia e todo o caos na província de Wicklow que confirma isso, aponta para um território com habitantes em maior número e melhor organização. Os 'ataques' à família O'Dornan foram movidos pela busca desse documento."

"Retirando Irlanda do Norte e a família em questão dessa equação, resta apenas um fator: A monarquia. E conforme eu tenho observado, ela não passa impune da intenção da nação vizinha de recuperar esse documento. Há espiões entre nós."

"E eu preciso, Vossa Alteza, apontar para a Conselheira Almirena".

Fez-se um silencio absurdo na sequência daquele discurso.

A inquietude de Liam cessou quando as dúvidas lhe tomaram a mente. A história - ainda mais antiga que a de Sinead Hibernia e que fazia o atual herdeiro sentir vontade de perguntar a idade de Sean – lhe tirara o fôlego, mas não o surpreendera tanto quanto ouvir o homem acusar sua colega de trabalho como uma espiã da Irlanda do Norte.

Depois de alguns segundos, ele olhou para os lados e viu que Ali e Caitlin estavam igualmente surpresas. E sem palavras.

Liam Éire definitivamente não imaginava que houvessem tantos segredos assim na monarquia!

E ele sentia-se um pouco menos confiante sabendo que milhares de segredos do passado de certa forma condenavam-no no presente, principalmente em relação a sua condição de Príncipe Herdeiro.

Ele coçou a nuca como sempre fazia quando estava nervoso. Mas quando falou sua voz soou firme e autoritária.

—Conselheiro, o senhor tem conhecimento do quão perigoso é essa acusação?

Sean respondeu a seu olhar com a mesma seriedade e convicção.

—Eu tenho, Alteza. Como assim também tenho das possíveis consequências. - Sua voz era calma e precisa. - Mas eu sou um homem velho, que já viveu muitos escândalos e, ao lhe dizer isso, acredite que isso não é irresponsabilidade ou impulsividade de minha parte. É verdade que tenho pouco a perder, mas tenho muitos anos ao lado da monarquia para confirmar minha lealdade aos senhores e muitos anos de vida que asseguram os muitos conhecimentos que guardo comigo. A Conselheira Almirena é uma infiltrada em nossa monarquia e ela está em busca desse documento.

Novamente o silencio se instaurou após as palavras de Sean, mas não duraram, dessa vez, muito tempo, pois Liam se viu capaz de agir de acordo com a situação, como um verdadeiro príncipe.

—Obviamente essa é uma acusação que não pode ser ignorada. A conselheira deverá ser interrogada. - Seus olhos vasculhavam a postura de Sean, dando ao "velho gagá e antiquado" um novo valor. - Pois, se o que diz for verdade, algumas atitudes deverão ser tomadas.

Ele virou-se para Caitlin, ainda cm sua expressão decidida, mas com um olhar mais afetuoso no rosto. Com menos severidade lhe ordenou:

—Procure a Major Fennick e peça para ela vir até a mim imediatamente. Em seguida, procure por Ronan e o peça para convocar o rei e a rainha para uma reunião urgente.

Não precisou que lhe dissesse duas vezes, ela lançou um olhar para Ali – incomodada por não poder ordenar que a selecionada se retirasse dali; e saiu apressada.

Liam se voltou uma última vez para o Conselheiro Sean.

—Imagino que esse documento deva também ser encontrado antes que qualquer coisa aconteça e pessoas fora da monarquia o tenham em mãos. O senhor tem alguma ideia de onde ele possa estar?

De repente, Sean se inclina sobre a mesa, puxa o diário de Sinead Hibernia para perto de si e o abre numa página na metade do caderno. Mas no lugar do marcador ele retira um papel que imediatamente desdobra diante dos olhos de Liam e Ali.

E um selo oficial brilha no final da folha, logo abaixo de três assinaturas. Do rei Enrich de Nova Irlanda, da advogada Valéria O'Dornan e do regente Phillip da Irlanda do Norte.

Há pouco mais de um século.

—A princesa Sinead encontrou e escondeu-o em seu diário. Quando o encontrei, compreendi o motivo das tantas buscas pelo Palácio que a Conselheira Almirena fazia. Obviamente, não deixei que isso caísse nas mãos dela. - O velho homem de noventa e dois anos de idade contou o fato com extrema simplicidade, mas para Liam Éire, aquela revelação parecia provar o porquê Nova Irlanda sustentava tantas crenças místicas.

Era como mágica.

♕ ♕ ♕

Major Fennick rapidamente executou a ordem de prisão preventiva da Conselheira Almirena. O Marechal Theodore, o homem de mais alto cargo no exército, foi informado da situação. Lady Sienna e a Princesa Eileen foram as responsáveis por transmitir a notícia e acalmar as famílias reais que, inconvenientemente estavam presentes naquele momento de profunda desordem na estruta da monarquia.

O julgamento de Almirena foi agendado para a manhã seguinte, logo às oito horas; e foi de responsabilidade de Gustav Walsh comunicar a mídia dessa medida.

Mesmo o jovem príncipe não gostando de atrair essa atenção da população, a Rainha Kiara reforçou que eles não poderiam ocultar uma informação como essa do povo. "O conhecimento era importante para se obter a confiança", dissera ela, e Liam não conseguiu deixar de associar com a história de Sinead Hibernia, que recorrera ao uso da Força Especial, que, por sua vez, resultara em toda a população se voltando contra ela.

Donavan e Kiara para o ligeiro reconforto de Liam também se mostraram surpresos com a traição de um de seus conselheiros.

Na reunião, Sean teve que recontar toda a sua história aos monarcas e o herdeiro não deixou de perceber que ele o fizera com muito mais detalhe e paciência.

Tendo em vista a prisão de Almirena, Charlotte se convenceu de que estaria segura ao contar o que lhe acontecera. Ela estava tremendo por ter que contar algo tão intimista aos monarcas, mas não ocultou nenhum detalhe, nem mesmo o telefonema com o seu namorado, Patrick. - Liam tentou ignorar essa parte, lembrando-se constantemente que toda a situação era importante e urgente, tentando minimizar o fato de que outra de suas selecionadas já amava outra pessoa e escondera isso dele. Porém, constantemente a lembrança da dança entre os dois e o quase beijo voltava a sua mente e o fazia se sentir profundamente deprimido.

Caitlin permaneceu ao lado da selecionada durante toda a reunião, mexendo-se desconfortavelmente quando a jovem dizia alguma coisa que pudesse "pegar mal" para a monarquia e remexendo-se com igual desconforto quando os monarcas lançavam, por vezes, alguns olhares céticos à história de Charlotte. Parecia à Liam que Caitlin não sabia de que lado se postar e defender naquela história. Mas a falante srta. Dublin não disse uma única palavra durante toda a reunião.

Nas primeiras horas da madrugada, a reunião chegou ao fim. A única certeza era de que o relato de Charlotte seria a peça principal para a acusação de Almirena e não os de Sean, quanto as vezes que encontrou a conselheira vasculhando pelo castelo. E o único reconforto permitido fora o de que a carta permaneceria segura nas mãos de Sean até que todos pudessem decidir o que fazer quanto àquele acordo e a situação conflituosa com a nação vizinha.

O Rei Donavan assegurou à Charlotte que imediatas medidas seriam tomadas para assegurar a segurança dela e de seus familiares. E quando ele saiu acompanhado de sua esposa, Liam Éire se viu sozinho com Charlotte por alguns minutos, enquanto Caitlin conversava com Ronan à porta da sala (Sean já havia se retirado há mais tempo).

—Eu espero que sua família possa ficar bem agora. - Foi o que ele conseguiu dizer.

E ela chorou ao ouvir suas palavras, atirou-se nos seus braços, soluçando e se afastou depois de um tempo, ligeiramente envergonhada.

—Você é uma grande pessoa, Liam. Eu sinto muito se lhe magoei.

Charlotte lhe esboçou um sorriso cansado, mas imensamente agradecido, quando se retirou, acompanhada de Caitlin.

Depois de observar os quatro cantos da sala de reunião vazia, Liam se lembrou de que precisava dormir. Faltava poucas horas até que tivesse que estar acordado de novo.

♕ ♕ ♕

Já acomodados em seu quarto, Kiara arrumou seus travesseiros sob a cabeça, mas sem sono. Sua cabeça estava tomada pela nova confusão que se somava a sua lista de preocupações.

Entretanto, quando Donavan voltou a tossir, tudo se dissipou imediatamente.

Dessa vez com mais intensidade, a crise durou longos segundos. A mulher amparou o marido como pôde pacientemente e buscou pelos remédios que uma criada havia separado para o rei, entregando-os a ele.

Ele tentou recusar, mas Kiara não cedeu.

—À essa altura você já deveria estar tomando os medicamentos há dias!

Donavan inspirou fundo, se recuperando.

—Eu estou bem. - Disse de modo automático e já se preparando para se fingir de adormecido.

—Não. - Kiara o cutucou na costela, fazendo-o se contrair e obrigando-o a dar atenção ao seu rosto sério e decidido. - Você vai começar a se cuidar, Don. Eu sei o que isso significa e você também sabe.

Ele parou, suspirando pesadamente. Tentava evitar aquele assunto há dias sem perceber o quanto não queria conversar sobre seu estado de saúde e muito menos aceitá-lo. Era um pensamento um tanto infantil, devido à teimosia, mas recorrente a ele fingir que algo não existia, acreditando que isso faria aquilo deixar de existir... como se aquela atitude dependesse dele.

Sua esposa notou em sua expressão que de compreendia. Querendo ele ou não, sabia que não era capaz de controlar o mundo todo.

—Eu não quero que você termine como seu irmão. - Kiara lhe sussurrou, deixando transparecer na voz o quão assustava estava com a condição do homem que amava.

Donavan a olhou nos olhos durante poucos segundos e logo suspirou novamente.

—Tudo bem. - Tranquilizou-a, puxando-a para perto de si.

Ele sabia que o sangue Hibernia estava "amaldiçoado" há muitas gerações. A imagem de seu irmão adoecido sempre ocupava seus pensamentos – fora uma dor muito grande perdê-lo e uma surpresa ainda maior ao ver a doença lhe acometer com tamanha velocidade.

Mas Donavan não havia começado os medicamentos, pois não queria acreditar que a sua vez havia, enfim, chegado.

♕ ♕ ♕

Dia 60

O café da manhã foi silencioso e rápido. As selecionadas logo voltaram ao Salão para assistir a transmissão ao vivo do julgamento da conselheira. Todas estava surpresas demais com a traição.

—Poxa, é o último dia do ano e último dia da Semana da Paz e ele começa desse jeito. - Lamentou-se Mirelle.

—Então ela não conseguiu esse documento? - Riley perguntou, curiosa o suficiente para não perceber o comentário de Elle.

—Aparentemente não. - Gwen murmurou, entretida demais no julgamento para desviar o olhar da televisão.

Veronika bufou, frustrada e entediada. Definitivamente não era uma fã de política e nem de dias que começavam com o "pé esquerdo". Ela olhou ao redor, procurando por Shawn Keyes, mas o jovem não estava lá. Parecia ter sido o único que não havia sido informado do escândalo ou decidira permanecer em seu quarto. Ou seu despertador simplesmente quebrara, Veronika pensou esperançosa.

Ela não fora a única que deixara passar despercebido o sumiço de Shawn. Caitlin Dublin, acomodada em uma das poltronas, sacudia o pé freneticamente e voltava seu olhar a porta do salão a cada três minutos, achando que ouvira alguém chegando.

Mas ele não apareceu durante toda a manhã.

Foi somente depois do almoço, com o julgamento finalizado e Almirena condenada culpada, que a assessora conseguiu recuperar a atenção das selecionadas. O salão foi invadido por dezenas de maquiadores, cabelereiros e manicures, assim como todas as criadas das jovens concursistas, que tomavam as medidas finais de seus vestidos para prepará-las para o baile da noite.

Isso sim, acalmou Caitlin e as meninas.

Baile era algo com o qual elas podiam lidar com mais tranquilidade.

♕ ♕ ♕

Lady Sienna havia se retirado do almoço, pedindo licença, para poder descansar antes de precisar se arrumar para o baile. Mas só notou que estava sendo seguida quando o corredor silencioso foi marcado pelos passos de alguém.

Atrás dela, o Príncipe Caleb Maddox tentava alcançar.

—Sienna, espere! - Pediu ele.

Ela evitara seu olhar durante toda a refeição e, se pudesse, evitaria ele em todos os lugares. Mas ela sabia que deveria permanecer com as aparências e, com a inesperada confusão, ela tinha a forte desconfiança de que noivado nenhum poderia ser rompido. Tudo já era caótico o suficiente sem que mais uma aliança fosse rompida. Assim, girou sobre os saltos para observar seu noivo se aproximar dela.

—Sim? - Perguntou desdenhosa.

—Eu acho... Acho que devíamos consertar as coisas entre nós.

Ela apenas apertou os olhos, observando o hematoma arroxeado no olho direito de Caleb com certo prazer. Iria esperar que ele falasse.

—O que fiz... A carta. - Completou revirando os olhos. - Não foi a melhor escolha naquele momento. Afinal, seria ruim se a mídia associasse o meu término com a sua renúncia. Nós e nossa relação pareceríamos superficiais. Por isso eu não contei a ninguém. Meu pai, irmão e a Isidora não sabem. Você... não contou a ninguém, certo?

Sienna respirou fundo para não perder a calma, mas não respondeu à pergunta e sim fez outra.

—Agora, já passado algum tempo, o término não seria visto com maus olhos? - Sua voz soou irônica e perceptivelmente irritada e Caleb ficou igualmente incomodado com isso.

—Não seja tola, Sienna. As coisas mudaram, mas as alianças ainda são importantes. - Ele respondeu com o olhar fixo nela. - É importante para nós também.

A atenção que recebeu a deixou nervosa. Assim tão perto, ela não podia fingir que ele não era bonito. Definitivamente era muito atraente. Mas a atmosfera no ar era de raiva e perceber isso fez com que ela se recuperasse do devaneio.

—Então continuamos noivos? Como se nada tivesse acontecido? - Ela disse um pouco alto demais e, após dizer, notou que sua pergunta soara estúpida. É claro que era isso que ele queria dizer.

—Bom, foi você que nos levou a essa posição! Talvez nunca "esquentaremos" as coisas entre nós, mas definitivamente seremos o "príncipe" e a "princesa" perfeitos para todos, está bem?! - Ele também reclamou, seus olhos azuis faiscando de raiva, numa intensidade perigosa.

E então, num movimento rápido, ele a tomou pela nuca e a empurrou para a parede. Seu corpo se chocou contra o dela e numa questão de segundos...

Ele grudou sua boca na dela num beijo urgente.

Sienna mal pensava quando reagiu ao gesto com a mesma vontade perigosa.

Deixou ele beijá-la, apertar sua cintura com força, enroscar os dedos na raiz de seus cabelos... Deixou o desejo tomar conta do momento. Sentiu seu coração acelerar como o dele. Quando seus lábios se desgrudavam por questão de segundos, tudo o que ela podia fazer era suspirar.

Era tão bom. Todo o seu corpo gritava por mais e mais.

Ela conhecia o cheiro dele muito bem, seu toque... Mas nunca daquele jeito, naquela proximidade. Era algo novo, como se seu corpo tivesse sido ligado numa voltagem diferente. E os dois se enroscavam um no outro vorazmente, como numa luta.

Nunca fora assim antes. Caleb sempre beijava mal...

Uma lembrança irrompeu sua mente. Era o Baile de Máscaras da recepção das selecionadas e Liam a convidara para uma dança.

"É claro que não, seu idiota! Eu não passo muito tempo a sós com Caleb e além disso... ele beija tão bem quanto uma porta.

Liam afrouxou o aperto na cintura dela, surpreso.

—É um casamento de fachada?"

Sua mente se clareou com alguma dificuldade. Com as mãos que agarravam a camisa bem passada dele, ela o empurrou um pouco, afastando-o. Seus lábios descolaram do dela com dificuldade.

Caleb beijava mal.

Não era mais assim.

Ainda próximos, Sienna tinha dificuldade em pensar com clareza, mas ela sabia que, antes, Caleb, com seu jeito exageradamente charmoso, não era um homem de uma mulher só. Casaram por conveniência política, a qual ambos estiveram completamente de acordo. Nunca fora um relacionamento afetivo, permaneciam juntos pois viam vantagens na união.

Ela nunca se incomodou com os casos de Caleb, ele sempre fora um tanto imaturo; embora o futuro guardasse a promessa de uma mudança nesse comportamento.

Porém, agora, que Caleb beija extremamente bem, Sienna continuava a não se incomodar com as entrelinhas que justificavam essa mudança - a prática que leva ao aprimoramento. E era esse o problema:

Ela não dava a mínima.

Ainda era um relacionamento burocrático, não sentimental.

—É esse seu plano de "esquentar" o clima entre nós? - Ela sussurrou, com os lábios pulsando pelo contato com os dele... que ainda estavam muito próximos. E com seu próprio coração ainda disparado, como se Caleb estivesse brincando com suas batidas num jogo muito perigoso.

Ele apertou os olhos, de repente exausto. Apoiou a mão na parede atrás dela e se afastou, ficando quase do outro lado do corredor.

—Por que você precisa complicar tudo? Por que não consegue ser mais fácil? - Pediu num lamento, alisando a camisa amassada.

Ainda colada à parede, ela respondeu:

—Porque eu não sou uma de suas garotas, Caleb. - Ela respirou fundo, tentando controlar os impulsos do corpo. - Eu sou a última descendente da família Hibernia. As coisas nunca são fáceis comigo. - Ela se afastou, com cuidado. Descolando-se da parede que lhe fornecia apoio, teve que confiar que suas próprias pernas conseguiriam mantê-la em pé sobre os saltos finos. Sentia-se decepcionada pelo fato de que a plenitude de seu relacionamento com o Príncipe Caleb tivesse que apelar para âmbitos de tão baixa moralidade, como se um beijo fosse capaz de sustentar seu matrimônio. Ela o olhou da mesma maneira que ele a olhava, cansado. Ela alertou: - Você terá que se esforçar mais. Bom, você ainda há muito estrago para ser reparado.

Respirando com dificuldade, ela se afastou sem olhar para trás.

♕ ♕ ♕

O cair da noite foi acompanhado por uma neve fina e sem pressa de cair. O Palácio Real outra vez destoava do cenário externo: Era quente e agitado. E o baile que encerraria a Semana da Paz, honrando os convidados e alegrando todos com uma boa comemoração, também era o último dia do ano, e muitos corações faziam desejos e criavam novas expectativas para o novo ano.

Os músicos começaram a tocar no instante em que os convidados entraram no Salão de Baile. Naquela noite memorável não havia um único lustre aceso no ambiente, ele fora inteiro iluminado com milhares de velas em elegantes candelabros. O brasão de cada uma das dinastias dos reinos presentes ali estava tecido em gigantescas tapeçarias penduras e alinhadas em uma das paredes. Para o reino de Nova Irlanda surpreendentemente fora exibido tanto o brasão de Hibernia quanto o dos Éire.

Liam não tinha certeza se fora ideia de Caitlin Dublin, Gustav Walsh ou mesmo do rei e da rainha, mas ele gostou.

Depois da madrugada complicada e do longo dia, a noite finalmente parecia promover um merecido descanso.

Mas não duraria muito.

O herdeiro participou de uma conversa animada entre Brianna e a Rainha Rowena e percebeu o quão bem as duas se entenderam. A monarca fez questão, no final da conversa, quando a selecionada já havia se afastado, de demonstrar o tamanho de seu afeto e simpatia pela jovem. Disse ainda, ousadamente, que, se pudesse decidir a Escolhida da Seleção sua resposta estava clara.

Em seguida, Liam conversou com o Príncipe Charles quanto à saúde do rei de Gales e propôs um brinde à melhoria dele.

Também interrompeu uma quase discussão entre a Princesa Eileen e a Lady Sienna, convidando a mais velha para uma dança, enquanto tentou, inúmeras vezes, mas sem sucesso, conquistar sua amizade e confiança. Eileen era definitivamente uma pessoa difícil e Liam compreendeu de quem viera a teimosia de Sienna.

Elogiou o Príncipe Maxwell de suas vitórias nos jogos do dia anterior; afastou-se dos cortejos da desesperada Princesa Suzanna; aceitou educadamente, porém relutante a dançar com a pequena Lady Alice de apenas seis anos de idade – ela lhe deixou bastante cansado com o seu estilo de dança agitado e irregular. Teve paciência para ouvir o Rei Arthur tagarelar sobre a Seleção de seu país natal, Illéa, e mais ainda para aguentar o Arquiduque Bernard, claramente alcoolizado, primeiro, provocando Liam quanto a baixa popularidade do jovem, lembrando dos tomates que lembrou no primeiro dia da Semana da Paz, e segundo, rindo da expressão envergonhada do garçom que veio lhes servir mais champanhe.

Por fim, encontrou com Mirelle Smith e se viu convidando-a para uma dança. Pareceu-lhe tão curta a melodia, que logo ele se viu rodopiando ela pela última vez conforme o silêncio se instalava entre o término de uma música e o começo da próxima.

Mirelle sorriu e se afastou.

—Você sabe que eu tenho que ir. - Ela disse, achando graça da expressão do príncipe.

E ele sabia que ela não se referia à dança.

Hesitante, ele assentiu.

—Eu sei. - Concordou, pois aquilo que ele mais admirava em Mirelle era sua liberdade e ele deveria respeitá-la, mas não deixava a despedida mais suave: - Você será a eliminação que mais difícil, Elle. Você é uma grande amiga. Eu realmente sentirei sua falta.

A jovem não se conteve, pulou no pescoço do herdeiro de Nova Irlanda, apertando-a num abraço apertado. Os dois ainda no meio da pista de dança.

—Você vai ser o melhor rei de todos, Liam! - Ela gritou no ouvido dele, por que Mirelle era assim: Quando estava feliz, ela emanava aquela felicidade e era movido por ela. Não importava onde estivesse, com quem estivesse, Mirelle Smith era livre para ser feliz. Ninguém poderia impedi-la disso.

Liam definitivamente sentiria falta dela.

♕ ♕ ♕

Foi a mais sorrateira que pode. Saiu em meio à comemoração, um minuto para a meia noite; ouviu os gritos quando o relógio chegou ao zero e começou um novo ano, o som das pessoas se divertindo a alcançou quando ela já estava bem longe. Por isso, foi o momento perfeito para sair às escondidas.

Riley O'Codagh esperava por essa oportunidade há muito tempo. Desde que entrara no castelo como selecionada.

E ela deveria agradecer Almirena – embora tivesse suas desavenças com ela. Pois, ousar, arriscar tudo e então perder feio deixara um claro caminho aberto para Riley. Ela mal conseguia acreditar em sua própria sorte.

Os corredores estavam vazios, todos em grande celebração e ninguém para impedi-la. Sozinha passou a caminhar mais rapidamente, uma animação crescente a impulsionando.

Até alguém entrar subitamente em sua frente. Ela teria caído se o sujeito não tivesse a segurado pelos braços.

—Uou. Onde você está indo? - Shawn Keyes questionou, ainda a segurando.

Ela tentou se desvencilhar, deixando claro em seu gesto que não queria aquele contato, como uma criança que não quer ser abraçada pela tia. Mas Shawn não a soltou e seu aperto – Ele podia ser magrelo, mas era bastante forte, Riley pensou.

—Tenho algumas coisas para resolver. - Respondeu de maneira tão esquiva como todos os seus comportamentos.

—Não, vocênão tem que resolver nada. Tem que estar na festa. - Ele insistiu.

Riley tentou novamente se livrar do aperto do assistente de Caitlin Dublin, estava ainda mais estressada ao ouvi-lo colocando limites em suas ações... e fisicamente impedindo-a de sair dali enquanto havia tempo para desaparecer sem ter sua ausência notada.

—Se eu não fizer, quem vai? Você? — A jovem provocou, cheia de ironia.

—Riley, eu... - Ele mudou a entonação da voz, cauteloso com a sua escolha de palavras, e transparecendo a preocupação que estava frente àquela situação. Ele fechou os olhos, respirou fundo e então os abriu de novo. - Você está arriscando demais. Ninguém está te obrigando a fazer isso. Você viu o que aconteceu com Almirena.

Ela o observou em silêncio durante três segundos. "Você viu o que aconteceu com Almirena" não fora uma pergunta, fora uma afirmação. Ele queria que ela entendesse além dos fatos, que conhecesse os riscos.

Logo ela quebrou o silêncio com uma súbita fúria. Ele era um covarde. Ele não compreendia a necessidade por trás dos riscos.

Você está me obrigando a fazer o que não quero! É você que está tomando minha liberdade! - Ela gritou, sem se importar mais em ser discreta. - Não inverta o jogo! Eu tenho total consciência do que estou arriscando!

—Você vai acabar morta! — Ele gritou, preocupado, nervoso e com medo. Ele estava com medo e era uma reação compreensiva de se ter visto ao que ele já passou em sua vida, e que não queria passar de novo. Mas Riley vivera aquela mesma situação e isso não parecia lhe provocar nenhum efeito de "juízo" nela.

Ele a chacoalhou como se a compreensão que ele desejava que ela tivesse encaixa-se na mente teimosa de Riley.

—Por que? Você vai matá-la? - Veronika Égan estava parada ali ao lado, no mesmo corredor que Shawn havia vindo. Ela o seguira? Suas mãos estavam fechadas em punhos e o rosto empalidecido como o de um fantasma. - Vai matá-la se ela te desobedecer?

Shawn olhou para ela surpreso - não esperava que alguém tivesse ouvindo. Depois ficou sem entender. Bastou que se lembrasse das últimas palavras que dissera e observar a situação em que estava – suas mãos agarrando os braços de Riley com força - foi que entendeu a interpretação de Veronika do cenário.

Agressão. Dominação.

Ele se afastou de Riley imediatamente. Ela olhou para os dois sem entender nada; bufou alto e saiu antes que pudesse ser impedida novamente.

O sr. Keyes movimentou-se na direção dela ao mesmo tempo que Veronika se afastou, hesitante e trêmula. Ele se virou para ela e se aproximou devagar.

—Veronika, espera. Calma. Não é o que você está pensando.

Ela abriu a boca, mas não emitiu qualquer som. Deu outro passo para trás e Shawn e inclinou em sua direção, como se fosse pegá-la caso ela fugisse. O movimento só intensificou a interpretação da selecionada quanto a situação. Ele iria agarrá-la também? E não a deixaria partir?

—Veronika... - Ele tentou chamá-la num tom de desculpas. Não sabia ao certo o que fizer ou como agir. Faltava aquele impulso que, em outra noite, movimentou os dois em direção ao outro, que favoreceu a aproximação... que desencadeou o beijo.

Naquela noite, nos primeiros minutos do novo ano, Veronika mal sentiu suas pernas quando começou a correr para longe dali.

Os pesadelos vieram quando ela ainda estava acordada.

Os sons, as imagens, os sentimentos tudo estava ali, voltara à superfície com tamanha intensidade que lhe tirou o fôlego. Parecia estar vivenciando tudo de novo.

Sua mãe saíra do quarto em um lindo vestido decotado. Era novo, ela havia comprado há pouco tempo. A filha, quando a viu, suspirou de alívio, estava louca para sair de casa e só faltava a mãe para eles entrarem no carro. Mas o pai teve uma reação diferente.

A filha do casal não conseguiu acompanhar a sequência dos acontecimentos que levaram à discussão.

Ela quase caiu, tomada por um grande susto, quando o homem bateu em sua mãe.

Era por causa do vestido? Ela havia se perguntando quando se trancara em seu quarto logo em seguida, ainda com a roupa que havia vestido para o passeio, pois eles não iriam mais sair aquela noite. Era por que ela demorou? Por ter respondido?

A jovem viveu essa dúvida durante muitos meses em que nada tão drástico quanto aquele evento voltou a acontecer. Ela, todo dia, se perguntava qual era o motivo do pai. Ele havia tido um dia ruim? Ele já havia bebido antes do passeio?

A voz de sua mãe voltou fácil à consciência, clara e límpida como se a estivesse escutando pessoalmente.

"A culpa foi minha. Fui eu que deixei seu pai bravo".

Entretanto, no mesmo ano, o episódio voltou a acontecer. Daquela vez por uma cama desarrumada. Na mesma semana, aconteceu de novo. Por fazer perguntas "desnecessárias". Por sair sem avisar, por queimar a comida, por gastar dinheiro no cabelo...

Para a jovem era como viver num inferno – a escola era um intervalo de todo esse sofrimento. Olhar para o homem poderia desencadear sua ira e vivenciar novamente aquele mesmo resultado agressivo e dominador. A qualquer momento, em qualquer circunstância aquilo poderia acontecer de novo. As imagens, os sons, nunca sairiam de sua memória. Era como viver na tensão de um filme de terror em que o monstro poderia aparecer em qualquer momento.

Não havia padrão para o comportamento do pai. Não haviam mais motivos que justificassem aquilo. Era errado, totalmente errado.

E as respostas da mãe eram sempre piores que os sons da briga.

"Não, foi minha culpa, não dele. Eu errei de novo".

"Eu fiz errado. Ele está certo em me punir".

"O que? Denunciá-lo? Fui eu que errei, Veve. Iríamos os dois presos e você iria ficar como? Não temos como sobreviver sem ele."

—Não! - Veronika Égan gritou. Lutava para sair do pesadelo de suas lembranças.

Saiu há muito tempo de sua casa, para fugir daquela rotina de tensão e cega ilusão, mas uma parte dela sabia – e se culpava – por ter deixado a mãe com o pai ainda naquela casa, nas mesmas situações frequente de abuso. Ela poderia fugir, mas sua mãe ainda estava lá.

Mas quando Veronika fugira, ela fugira de tudo. Da agressão, da dominação, da instabilidade, da incoerência... e do amor.

Para ela, não existe tal coisa como o amor. Só existia ilusão.

Nunca entendera como sua mãe aceitava o comportamento de marido, como ela podia culpar a si mesma pela ira dele. Veronika tentara trazer luz as ideias enevoadas da mente de sua mãe, fazê-la ver com uma lente mais realista o seu relacionamento. Mas nada adiantara. Se ela ficava com o rosto roxo depois de ter apanhado, dizia que escorregara, caíra da cama e não deixava ninguém saber da verdade. Protegia o homem.

A única coisa que Veronika Égan conseguiu extrair de bom nesses anos em que morou com os pais no início de sua adolescência fora um conhecimento, uma associação: O amor não existe. E o amor só machuca.

Era a verdade mais importante em sua vida, aquela que seguia à risca.

E então ela conheceu Shawn Keyes.

Ainda caída no chão de seu quarto, Veronika soluçou e soluçou, buscando por ar. Pensar em Shawn era ainda mais doloroso. Pois os sentimentos de encantamento, de curiosidade, de divertimento que sentia em relação a ele misturavam-se com a imagem dele gritando e agarrando a outra selecionada, com as imagens de seu próprio pai erguendo a mão para bater em sua mãe.

—Você sabia! Você sabia! - Ela chorou, lamentando-se, cambaleante, para olhar sua imagem no espelho, o rímel que escorria dramaticamente pelo rosto e as bochechas e o nariz claros bastante avermelhados, assim como seus olhos. - Você sabia! - Ela gritou com o reflexo.

Você sabia que isso ia acontecer quando deixou-se se apaixonar!

♕ ♕ ♕

O herdeiro Liam Éire ergueu a sua taça de champanhe ao alto, comemorando na companhia de muitos amigos, familiares e convidados importantes.

Sentia-se bem naquele momento, por ter finalizado a Semana da Paz com uma grande noite, por ter vencido alguns recentes desafios.

Mas quando bebeu o primeiro gole já estava pensando nos próximos passos a serem tomados.

E não conseguiu deixar de sentir uma pontada mais forte no coração quando lembrou que na manhã seguinte metade das selecionadas iriam embora.

... e a Elite estaria formada.

♕ ♕ ♕

Ao entrar no próprio quarto parou um segundo para observá-lo. Tudo era de extremo requinte e riqueza. Ela nunca se acostumara a tanto luxo, mas Nova Irlanda viviam com esses caros privilégios há anos. Era uma nação forte e rica, ela teve certeza disso quando entrou para a Seleção.

Bom, Liam Éire ter sido anunciado como novo herdeiro enfraquecera ligeiramente o apoio social que a monarquia recebia de seu povo. Era uma situação delicada e definitivamente de adaptação.

Períodos de adaptação, para Riley O'Codagh, era uma oportunidade igualmente valiosa às comemorações de Ano Novo, em que todos ficavam distraídos.

Ela não perdeu tempo, correu até sua cama e se enfiou em baixo dela, observou os engradados de madeira que sustentavam o colchão e logo encontrou aquele que escondia o que procurava.

Saiu dali e ergueu o pequeno frasco de vidro frente à luz. O líquido dançou dentro do recipiente. O sonífero.

Havia o suficiente para um último alvo.