Reika abriu a porta de seu apartamento fingindo que Hiro não estava seguindo-a, jogou a bolsa no sofá e caminhou até a cozinha. O lugar não era espaçoso, nem exagerado, era o suficiente para uma jovem de dezessete anos morar sozinha. Voltou da cozinha segurando uma xícara de café na mão, ele entendeu de primeira o que estava acontecendo e preparou-se para a longa conversa.

– O que foi Rei? – Perguntou sentando no espaço que sobrara no sofá, ele esperava essa reação de Reika, ela só optava por café quando estava irritada.

– Que foi o quê? – Ela disse enquanto sentava na poltrona, olhou para Hiro e percebeu a sobrancelha erguida do rapaz. – Para de me olhar com essa cara! Eu to irritada, e daí?

– Toda essa irritação só porque não conseguiu espancar o Yuki? – Hiro perguntou com um tom de indignação, como ela conseguia ser tão cabeça oca?!

– Pensei que me conhecesse mais do que isso... – Ela mostrou um sorrisinho que logo sumiu, Hiro sabia ser um idiota quando queria. – Não estou irritada por causa do idiota, o que me incomoda é saber que teremos que enfrentar os novatos por um mês inteiro!

– Você não pareceu se incomodar com as duas que vieram falar conosco depois do seu showzinho. – Disse vendo a garota revirar os olhos, ele sorriu de canto e suspirou em seguida. Hiro levantou dirigindo-se a porta, esperou por Reika e quando a garota decidiu segui-lo ele retornou a falar. – Olha sei que você detesta remoer coisas do passado e que se eu começar a falar sobre isso o máximo que vou receber é uma xícara de café na cara, mas fugir de novas experiências e se trancar para novas amizades só vai te prejudicar mais ainda.

– Tem razão, eu vou jogar essa xícara na sua cara! – Uma sensação estranha tomou conta de Reika, ela não gostava de falar de seus pais e para evitar novas perguntas acabou se transformando no que é hoje. Suspirou encostando-se na porta, sequer percebera que a havia aberto, podia ser o efeito das palavras de Hiroshi ou era apenas sua usual falta de atenção. – Detesto quando você toca nesse assunto, eu odeio falar sobre os meus pais e você sabe muito bem o porquê. Vai pra casa Hiro, a gente conversa depois.

– Não! – Empurrou a porta assim que Reika tentou fecha-la, estava cansado de todas aquelas desculpas esfarrapadas e iria arrancar umas verdades dela. – Porque toda vez que eu pergunto sobre o acidente ou sobre qualquer coisa que tenha ligação com seus pais você desconversa? – Encarou a expressão incomodada da garota, ela parecia esconder alguma coisa e era visível pela maneira como ela juntava as sobrancelhas. – Fala Reika!

– Não tem nada pra falar Hiro! – Reika tentou em vão sair de perto do rapaz, mas ele segurou seu braço e a forçou a encara-lo. – Me larga.

– Não.

– Vou ser obrigada a bater em você e eu não quero fazer isso. – Respirou fundo, tentou puxar seu braço, mas o rapaz ainda o segurava com bastante força. De onde ele tirava tanta força? Era quase inexplicável como um garoto magro como ele conseguia ter tanta força, encarou o rapaz com raiva e fechou sua mão direita em forma de punho. – Você não me deixa outra escolha.

Com um movimento rápido ela acertou um soco na face do rapaz, ele cambaleou e usou a parede como apoio para não ir de encontro ao chão. Reika massageava seu braço esquerdo, era possível ver a marca da mão que a segurava segundos atrás. Ele ergueu-se limpando o pouco sangue que escorria em seu nariz, encarou Reika com certa raiva e deu um passo a frente. Ela gelou, apesar da raiva que estava sentindo e dá vontade de socar Hiro até que ele desmaiasse, em momento nenhum a garota chegou a cogitar a possibilidade de ele revidar. Ela não fugiu, não recuou, muito menos desviou o olhar. Qualquer um sabia que o rapaz era uma bomba relógio, que aguentava socos e tapas sem revidar, que ouvia todos os insultos sem dizer nada em retorno, que acumulava todas as sensações e experiências esperando apenas o momento certo para deixa-las sair. Quando a distância entre eles era significativamente curta Reika pôde ver a raiva no olhar do rapaz, ela esperou por uma tapa ou por um soco, mas eles nunca vieram.

– Eu não vou perguntar de novo... – Hiro respirou fundo, fechou os olhos e contou mentalmente até dez. Quando os abriu ele encontrou uma cena que desarmaria qualquer pessoa de bom coração, apesar da expressão vazia e da pose de durona que carregava, o olhar de Reika demonstrava medo. – Não quero te machucar, mas juro por tudo o que for sagrado nessa maldita religião que seguimos que se você não me contar eu vou devolver o soco de agora a pouco.

– Eu... – Reika desviou o olhar colocando-o em sua mão, ela tremia e não era consequência da força que ele colocara ao apertar seu braço. Era medo. – Eu não lembro muita coisa... – Arriscou sem encarar o rapaz, talvez assim fosse mais fácil afinal de contas os pais dele também estavam naquele carro e ela era a única que sabia mais coisas do que realmente fingia saber. – Tudo o que eu sei é que seus pais e os meus estavam discutindo sobre uma espécie de ritual antes de o carro bater, eu não sei que espécie de ritual era ou porque eles estavam falando sobre isso.

– O que mais? – A voz de Hiro não demonstrava mais raiva e sim preocupação, ele notara que Reika começara a tremer conforme falava e isso o assustou. Tentou tocar na mão que massageava a marca vermelha, mas tudo o que recebeu em troca foi o afastamento da garota. – Reika?

– Eu não sei de mais nada, eu juro... – Uma grossa lágrima escorreu sobre a face da garota, aquelas memórias machucavam seu pobre coração e por causa dessa dor ela decidira bloquea-las. Suas pernas fraquejaram e ela caiu sentada no chão, seu corpo tremia e todas as lembranças que estavam trancadas a sete chaves voltaram à tona. – Parem de me atormentar... Faça parar, por favor, faça parar!

– Fazer o que parar? – Hiro ajoelhou-se e agarrou os ombros de Reika, ela chorava incessantemente e isso o apavorou. Ele nunca a vira desse jeito, muito pelo contrário, ela era a garota mais forte que já conhecera.

– Eu juro que não sei mais de nada, contei tudo o que sabia! – Sua voz era fraca, quase um sussurro. Sua cabeça girava e tudo o que ela conseguia fazer era dizer coisas sem sentido, tinha que se controla, precisava se controlar. Ela não era fraca, não chorava por nada e não seriam memórias ridículas que a fariam chorar. Mas como tomar controle de seu corpo? Como assumir a liderança de uma mente fragilizada pela dor da perda? – Saia daqui...

– Reika?

– Saia daqui agora Hiroshi! – Reika ergueu o olhar e encarou o rapaz, era tudo culpa dele. O descontrole, as lágrimas, as lembranças voltando como uma onda que junta forças apenas para quebrar na areia da praia. Empurrou as mãos que se encontravam em seus ombros, ergueu-se e caminhou até a porta, segurou a maçaneta esperando que o rapaz agisse. – Saia daqui antes que a situação fique pior, por sua culpa minha cabeça está cheia de lembranças que eu não queria lembrar!

– Rei, eu só queria respostas! – Hiro defendeu-se, ele a encarava com descrença. Agora a culpa era dele? Ergueu-se e caminhou até a jovem, ficou a frente a frente com ela e despejou umas verdades. – Como acha que me sinto sabendo que você sabe mais coisas que eu?

–...

– Durante as investigações a policia não me contou nada, tudo o que eu sei ou o pouco que sei provém de pedaços que os policiais deixavam escapar. – Os olhos do rapaz encheram-se de lágrimas, assim como a morena ele odiava falar sobre a morte de seus pais, mas esses anos todos sem respostas e repletos de dúvidas o estavam matando. – Em momento nenhum eu quis que você sofresse e que se lembrasse de algo que te machucasse, mas e eu? Os dias sem vida, as noites em claro sem saber como viver? – Hiro respirou fundo, era difícil falar aquilo tudo sem querer derramar uma única lágrima. Bufou passando pela garota, antes de sair completamente do apartamento ele virou-se e disse: - Você sofreu, mas sabia como as coisas aconteceram, o que mais me surpreendeu e ainda surpreende é o seu egoísmo em não querer partilhar esses fatos.

– Não é egoísmo, eu tive medo da-...

– Medo de quê Reika? – Hiroshi gritou, sua paciência estava no limite e até ele próprio se assustara com sua exaltação. Respirou fundo, passou a mão no rosto e tentou se acalmar. Ele sequer havia percebido que durante essa confusão toda sua bolsa não havia saído de seu ombro, como ele conseguia ser a pessoa mais anestesiada do mundo? Bufou. – Eu vou sair daqui antes que eu cometa uma loucura, vejo você amanhã na escola.

– Amanhã? – A garota sussurrou a pergunta, mas o rapaz não escutara e já estava adentrando no elevador. Ela fechou a porta, encostou-se na parede e escorregou sem forças. – O que diabos aconteceu aqui?

Ela não tinha forças para levantar, nunca em todos aqueles anos de convivência Reika o vira agir dessa maneira. Parecia outra pessoa, a marca em seu braço formigava e ela podia jurar que por milésimos de segundos viu ódio no olhar do rapaz. Uma lágrima escorreu solitária e foi questão de tempo para que outras surgissem, de repente seu apartamento parecia enorme e vazio. Sentiu um aperto no coração e dando-se por vencida ela desabou em um choro sofrido, uma dor que ela guardara por anos e que aos poucos roubava sua energia. “Porque eu não contei tudo isso antes?”, pensou enquanto deitava no chão. Durante anos Hiro fora sua única companhia e se a partir daquele dia ele decidisse nunca mais falar com ela? E se a raiva fosse maior que a amizade deles? “Amizade...?”, ela olhou para a marca em seu braço e lembrou-se da expressão do rapaz. “Hiro nunca escondeu que me amava, sempre disse que eu era a pessoa mais importante da vida dele, que eu era a irmã que ele nunca tivera.”, soluçou encolhendo-se no frio chão, abraçou suas pernas e chorou ainda mais. “Então por quê? Porque ele me machucou assim?”

Mal sabia ela que Hiro estava igualmente destruído, ele chorava desesperadamente dentro do elevador enquanto se culpava incansavelmente. Prometera a si mesmo que nunca machucaria Reika, então porque agira daquela forma? Onde estava com a cabeça quando por instinto (ou até mesmo por raiva) ele agarrara o braço da garota e a ameaçara? Quando a porta do elevador se abriu ele não chorava mais, sua expressão era indiferente e quem o visse diria que ele era um adolescente comum. Mas essas pessoas não perceberiam a força com a qual ele segurava a alça de sua bolsa, a forma como seus olhos pareciam sem vida e nunca perceberiam que a mão que estava em seu bolso apertava seu celular numa vã tentativa de apaziguar a vontade que ele sentia de ligar para a garota. Não voltaria para casa, até porque se o fizesse iria destruir o local sem pensar duas vezes. O mesmo temperamento explosivo escondido atrás de uma expressão calma e neutra, a mesma maneira de falar e agir, porque pessoas tão parecidas não conseguiam se dar bem. Caminhou sem rumo por alguns minutos até parar em um parque, o local estava vazio e estava perfeito para quem queria pensar. Sentou em um dos bancos, jogou a bolsa ao seu lado e cobriu o rosto com suas mãos. Seria difícil encarar Reika depois do que aconteceu, até porque ela poderia matá-lo sem pensar duas vezes.

– Eu sou um idiota mesmo... – Sussurrou para o nada, uma gota pingou em seu ombro, mas ele não se importou.

Uma por uma elas foram caindo, molhando as roupas e o rosto do rapaz. Misturando-se as lágrimas que eram poucas mais presentes, ergueu a face e encarou o nada. Viu uma silhueta encarar algo no lago, era uma jovem que parecia muito triste. Forçou um pouco mais a vista e percebeu que era Mika, ela estava com as roupas completamente encharcadas e em sua mão estava apenas à mochila escolar. Não se atreveu a falar com ela, quando queria Mika podia ser mais perigosa que Reika. Observou a garota caminhar até a saída e depois sumir no meio da multidão que fugia da chuva, franziu o cenho e pegou sua mochila. Precisava ir para casa antes que ficasse doente, abriu a mochila e encontrou apenas um casaco junto aos livros molhados. “Yamaguchi vai me matar quando souber o que aconteceu com os meus livros...”, sorriu com o pensamento, aquela mulher agia como se fosse sua mãe. Usou o casaco como proteção para a chuva e correu até o ponto de ônibus, alguns minutos depois ele chegava a sua casa e era recebido por uma onda de frio. “Droga, esqueci-me de ligar o aquecedor antes de sair!”, constatou enquanto corria para ligá-lo antes que congelasse. Um rápido banho, alguma coisa de rápido cozimento era tudo o que ele queria antes de deitar em sua cama e dormir. Cerca de meia hora depois ele estava em sua cama, mas o sono não chegava e ele estava cansado de tanto pensar nas coisas que fizera. Foi preciso mais vinte cansativos minutos para que enfim ele pudesse descansar, no entanto seus sonhos seriam atrapalhados por péssimas sensações e terríveis pesadelos.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.